quarta-feira, 25 de maio de 2022

A Mulher, o Divino e a Criação

 

A Mulher, o Divino e a Criação

Desde tempos imemoriais que os nossos antepassados nos deixaram imagens (sagradas?) das formas femininas. Na arte e nos artefactos do Paleolítico e Neolítico que representam os mais primitivos impulsos da génese do mito humano, estas imagens indicam uma profunda tomada de consciência do elemento criador do ser feminino. Aquando do aparecimento dos mitos de criação em inúmeras civilizações, o princípio feminino aparece como criador do mundo e do homem.

Até meados do século XX o interesse pelo papel desempenhado pelas deusas nas mitologias era ligeiro já que o interesse de pesquisa estava orientado para os deuses. Mas, nos meados dos anos 70 há uma mudança de atitude parcialmente inspirada pelo desabrochar dos movimentos feministas. A tomada de consciência do papel desempenhado pela mulher na sociedade expande-se durante esta época e começa a integrar tradições espirituais do Ocidente e do Oriente. A luta pela igualdade do homem e da mulher expandiu-se para além do social, político e económico para entrar na esfera do sagrado. Inúmeros livros e artigos vão revolucionar o modo como as pessoas viam as raízes da sua herança espiritual. Não podemos, no entanto, deixar de mencionar um autor que já no século passado tinha chamado a atenção para a existência de um período da história da humanidade em que os valores morais, jurídicos e políticos eram estruturados em torno da Mulher e da Mãe. Trata-se de J. J. Bachofen. A sua obra intitulada o Matriarcado não foi bem acolhida na época. María del Mar Llinares García [1] diz-nos que “ só quando F. Engels lhe presta atenção ao considerar que confirmava a sua teoria do carácter histórico da família é que a obra se revaloriza e consolida com o desenvolvimento da antropologia e da arqueologia pré-histórica desde os fins do século XIX “. Hoje é uma das obras fundamentais para o estudo do tema; no entanto, alguns especialistas do mito, como J.- P. Vernant e M. Detienne, não o consideram como um dos estudiosos do mito durante o século XIX. É mencionado, no entanto, por J. de Vries mas sem que este valorize a sua obra. Actualmente as obras que mais impacto causaram no grande público na defesa da existência de um princípio de matriarcado, são The Goddesses and Gods of Old Europe, Myths and Cult Images, 6500- 3500 B C de Marija Gimbutas [2] e as publicações de James Mellaart sobre as suas escavações na Anatólia, nomeadamente em Çatal Hüyük e Hacilar. As justificações científicas destes arqueólogos sobre a existência de um culto à Deusa-Mãe na Anatólia e que se teria estendido até à Europa Antiga são bastante convincentes. Quando o livro de Riane Eisler, O Cálice e a Espada [3] surgiu, a sua obra fundamental sobre o tema do matriarcado, para além de outras que já tinha escrito, foi saudada por todos os defensores da existência de um matriarcado na Velha Europa . Os testemunhos da arqueologia, linguística e mitologia indicavam que em muitas culturas da Europa antiga o primeiro impulso das sociedades na esfera do religioso, para além dos sepultamentos, era uma profunda veneração pela Terra, que era Mãe, pois tal como da mulher nasciam os filhos, assim dela Terra brotava vida. Será talvez essa a explicação para o aparecimento no período do Paleolítico e Neolítico de numerosas estatuetas femininas formadas inicialmente a partir de argila e cinza e depois já cozidas no forno, e, estatuetas esculpidas a partir do osso, chifre e marfim ou mesmo na própria rocha. Existe uma grande polémica sobre a intenção original que esteve por detrás destas imagens. Desde serem consideradas como mulheres reais, cânones de beleza ou objectos pornográficos ou eróticos até terem sido usadas para ilustrar o processo do nascimento às mães da época. No entanto, a opinião mais generalizada identifica-as como símbolos da fertilidade. De notar que são representadas sem acompanhante masculino o que pode indicar que os seres humanos da época estavam convencidos de que os homens não tomavam parte na reprodução. Assim, qualquer nascimento seria um exemplo de partenogénese, o que vai dar origem ao culto da Deusa-Mãe. Culto esse que teria englobado a zona circundante do mar Egeu, os Balcãs, a região oriental da Europa Central, o Mediterrâneo Central e a Europa do Ocidente.

Na generalidade da comunidade científica considera-se que as Vénus do paleolítico foram feitas por homens num acto de veneração pelas mulheres enquanto fonte da vida. No entanto, é de assinalar uma opinião diferente: Le Roy Mc Dermott, professor de Arte na Universidade Estadual do Missouri nos Estados Unidos, sugeriu que as distorções características desta figuras (ventres inchados, seios e nádegas volumosas, pernas curtas e pés pequenos) eram devidas ao facto de terem sido esculpidas por mulheres grávidas que representavam o seu próprio corpo. A visão que uma mulher grávida tem do seu corpo, num mundo sem espelhos, assemelha-se porventura a estas estatuetas. Talvez que um dos melhores exemplos seja a Vénus de Lespugne. Se assim tiver acontecido podemos deduzir que a maior parte das esculturas femininas do Paleolítico, e não só, foi feita por mulheres. A aceitação desta teoria vem introduzir um dado novo nas capacidades da mulher da época: também foi artífice.

Estas estatuetas mostram uma consistência de forma e de tema: descrevem a capacidade corpórea da mulher para dar à luz, amamentar, perder sangue e curar-se a ela própria todas as luas. Das muitas estatuetas desta época queremos destacar pela sua carga iconográfica a Vénus de Laussel. Esta estatueta, como muitas outras, apresenta-se com seios pendentes, barriga e triângulo púbico bem marcados. A particularidade que queremos destacar é que esta estatueta segura numa mão um crescente lunar com a forma de um chifre de bisão manchado com ocre vermelho. No chifre foram esculpidos treze entalhes, o que poderá significar que a concepção tem lugar no 14º dia após o período da lua da mulher. Um atributo lunar onde quer que apareça tem sempre o mesmo significado, qualquer que seja o número de sínteses religiosas que tenham colaborado na constituição dessas formas: é o prestígio da fertilidade, da criação periódica, da vida inesgotável. Os chifres de bovídeo que caracterizam as grandes divindades da fecundidade são um emblema da Deusa-Mãe. Onde quer que apareçam nas culturas neolíticas, quer na iconografia quer nos ídolos de forma bovina, eles marcam a presença da deusa da fertilidade. O chifre não é mais do que a imagem da Lua Nova. A lua é fonte de toda a fertilidade e dirige ao mesmo tempo o ciclo menstrual. Através da observação dos seus próprios ciclos e do crescimento sazonal das plantas é natural que as mulheres tivessem sido as primeiras a observar as periodicidades da natureza, e o registo destes ritmos internos e externos poderiam ter servido para formar as mais primitivas raízes da ciência e da religião. Com este conhecimento crescente da vida veio uma relação igualmente intensa com a morte. O homem de Neanderthal e o de Cro-Magnon enterravam os seus mortos cerimonialmente e usavam ocre vermelho para adornar os mortos. O ocre vermelho é representativo das qualidades de afirmação de vida do sangue. As pessoas perdem sangue só enquanto são vivas. Mas as mulheres perdem sangue menstrual e durante o parto. Não há talvez outro período no qual a mulher mostre estar mais ligada ao feminino sagrado do que no acto do parto. É apesar de tudo o processo do nascimento e da morte que sustenta a crença na Deusa-Mãe, já que o nascimento sempre contém a semente da morte. O vermelho do sangue do nascimento é a primeira cor que cada um de nós vê quando presenciamos um parto. O sangue é sagrado e o ocre vermelho simula a energia vital da vida e da renovação. É possível que os primitivos humanos ao cobrir o defunto com ocre vermelho pensassem que o morto pudesse ressurgir numa outra vida.

Para além do simbolismo do sangue a mulher é como vimos intensamente influenciada pela Lua. Enquanto o Sol permanece igual a si próprio, a Lua em contrapartida é um astro que cresce, decresce e desaparece, um astro cuja vida está submetida à lei universal do devir, do nascimento e da morte. Mas esta “morte” é seguida de um renascimento: a Lua Nova. O desaparecimento da Lua na obscuridade nunca é definitivo. Este eterno retorno às suas formas iniciais faz com que a Lua seja por excelência o astro dos ritmos da vida. Tal como a Lua a mulher segue o mesmo ritmo.

Um outro símbolo ligado à mulher e à fertilidade é a serpente. A serpente tem significados múltiplos; de entre eles o mais importante é o da sua regeneração. Como atributo da Grande Deusa a serpente conserva o seu carácter lunar – o da regeneração cíclica. Animal telúrico e ctónico, feminino por excelência, é uma hierofania do sagrado. Sob a forma de Ouroboros, a serpente que morde a cauda, simboliza um ciclo de evolução fechado sobre si próprio. Este símbolo abrange as ideias de continuidade, de autofecundação e em consequência, de eterno retorno. Mas a forma circular da imagem dá lugar a outra interpretação: a união do mundo ctónico figurado pela serpente e do mundo celeste figurado pelo círculo, significa a união de dois princípios opostos – a terra e o céu, a noite e o dia. Todas as grandes deusas da natureza que se revêem no Cristianismo sob a forma de Maria têm, como dissemos, a serpente como atributo. Mas se há figura da Deusa-Mãe que mais se possa aproximar a Maria é Ísis, que embora sendo “ Senhora do Ocidente “ ( o que significa Senhora no mundo dos mortos, onde assiste a Osíris ) é também uma deusa solar que ilumina as Duas Terras com os seus raios, enviando a luz a todos os homens. Ísis sustenta sobre a fronte a cobra real, uraeus de ouro puro, símbolo de soberania, de conhecimento, de vida e de Juventude Divina.

A árvore é outro dos símbolos que está ligado à mulher na iconografia e mitologias arcaicas porque a árvore é fonte inesgotável de fertilidade, dá frutos e regenera-se periodicamente. A epifania de uma divindade numa árvore é corrente e podemos assinalá-la nas civilizações hindu, mesopotâmica, egípcia e egeia. Na iconografia egípcia, por exemplo, encontrámos o motivo da Árvore da Vida de onde saem os braços divinos carregados de dons e despejando com um vaso a água da vida. Na parede do túmulo de Tutmósis III em Tebas vemos o faraó a receber a seiva da árvore directamente de um ramo. Inúmeros exemplos poderiam ser dados, comprovativos de que as árvores foram desde há muito sagradas para a Deusa e são uma epifania dela própria.

A água é um outro símbolo da vida, um dos mais importantes. Segundo Mircea Eliade “ Na cosmogonia , no mito, no ritual, na iconografia, as águas desempenham a mesma função, qualquer que seja a estrutura dos conjuntos culturais nos quais se encontram: elas precedem qualquer forma e suportam qualquer criação “ [4]. Justifica-se plenamente a ideia do autor se nos debruçarmos sobre a cosmogonia egípcia. A criação do mundo, por quem e como foi criado era matéria de constante interesse para os Egípcios. Os mais antigos textos religiosos conhecidos reflectem uma amálgama de cosmogonias locais elaboradas provavelmente nos tempos pré-históricos mas que se vão diferenciar nos tempos históricos. Todas, no entanto, estão de acordo ao afirmar que o mundo não é obra de um demiurgo atemporal. Segundo os Egípcios no princípio era o Caos e o Demiurgo encontrava-se diluído no Caos onde jazia inerte, como que privado de existência.Todos os sistemas religiosos concebem o Caos como um Oceano primordial que contém todos os gérmens e todas as possibilidades da Criação. Esta água é o Nun o “ pai dos deuses “. O Demiurgo aparece mais tarde na superfície das águas e adopta aspectos diferentes em cada sistema cosmogónico. A importância das águas primordiais era tão grande para os Egípcios que todos os templos possuíam lagos sagrados que simbolizavam as águas primordiais, origem de toda a Criação (…).

O desaparecimento do culto da Deusa na Europa foi ocasionado segundo os defensores do princípio do matriarcado pela vaga de indo-europeus,os Kurgan, que se estenderam por vagas sucessivas desde as estepes asiáticas e destruíram as pacíficas civilizações da Europa Antiga e as assimilaram. Portadores de armas, domesticadores do cavalo, exaltavam os deuses guerreiros e heróicos. Os seus deuses principais eram uranianos: o deus da tempestade ( cujos emblemas eram o raio e o trovão,o machado, a maça e o arco ) e o deus solar, o deus do sol que empunhava a adaga e a espada e em algumas ocasiões apresentava-se com um carro. Gerda Lerner [5] relaciona a subordinação das mulheres e a degradação da Deusa com as mudanças políticas ocorridas no III milénio quando uma sociedade baseada nos vínculos do parentesco deu lugar ao estado arcaico. Como resultado desta transformação sociopolítica, a figura da Deusa foi suplantada por um panteão de deuses e deusas. Lerner chama também a atenção para uma alteração do simbolismo. A simbologia para aludir às potências da criação passou da “ vulva da Deusa à semente do Varão “ [6]. Por outro lado, a árvore da vida símbolo da capacidade criativa da natureza foi suplantada pela árvore do conhecimento.

Sem pretender fazer uma análise sóciopsicológica das populações do Paleolítico e do Mesolítico, idades que precedem a organização da vida sedentária, podem graças à arqueologia e ao estudo dos mitos fundamentais retirar-se hipóteses a propósito desta mudança de tendência. É praticamente tido como certo que os primeiros humanos ignoravam o papel exacto do homem na procriação. Os homens mantinham uma atitude ambígua face às mulheres, aparentemente mais fracas do que eles mas capazes de dar misteriosamente a vida. Daí um profundo respeito para não dizer veneração e ao mesmo tempo uma espécie de terror perante os poderes incompreensíveis, senão mágicos ou divinos. É infinitamente provável que a humanidade primitiva tenha considerado a divindade, qualquer que ela fosse, como de natureza feminina. Tudo mudou quando o homem compreendeu a sua participação no acto sexual como condição necessária à procriação. Isto deve ter-se passado nas épocas da sedentarização quando as técnicas rudimentares da agricultura se sucederam à recolecção e à caça de animais selvagens. É preciso ter em conta no entanto, que esta alteração não se efectuou rapidamente porque os costumes ancestrais são tenazes e não se modificam senão lentamente na mentalidade colectiva. Com a domesticação dos animais e o desenvolvimento dos rebanhos, a função do homem no processo de criação tornou-se mais evidente e compreendeu-se melhor. Em consequência desta situação encontramos a Deusa-Mãe acompanhada de um ser masculino, um filho ou um irmão que a acompanha nos ritos da fertilidade e com os quais se une. Nos mitos e ritos trata-se de um deus jovem que há-de morrer para logo renascer. No entanto, é a Grande Deusa quem cria a vida e governa a morte, mas agora reconhece-se muito melhor a participação masculina na procriação. As núpcias sagradas ( hierogamias ) e outros ritos similares festejados durante o quarto e terceiro milénios expressavam estas crenças. Até que a deusa se tivesse unido ao jovem deus e houvesse tido lugar a morte e o renascimento deste, não podia recomeçar o ciclo anual das estações. A sexualidade da Deusa é sagrada.

A grande mudança seguinte aparece simultaneamente com o nascimento dos estados arcaicos sob reis poderosos. Nos começos do terceiro milénio a figura da Deusa-Mãe é deposta da sua liderança no panteão divino. Cede lugar a um deus masculino. No panteão Sumério a deusa da terra Ki e o deus do céu An presidem aos outros deuses. Da sua união nascerá o deus do ar Enlil. Por volta de 2400 os principais deuses sumérios aparecem enumerados da seguinte forma: An (ceú), Enlil (ar), Ninhursag ( rainha das montanhas ), Enki ( senhor da terra ). A deusa da terra Ki está agora afastada e em textos mais tardios aparece mencionada em último lugar depois de Enki. Nammu, a Deusa-Mãe dos Sumérios que deu nascimento ao céu e à terra e foi criadora da humanidade desaparece do panteão. Na Mesopotâmia assistimos à mesma situação. O Enuma Elis conta-nos que a deusa primordial é Tiamat, o mar. Às vezes tranquila às vezes caprichosa. É a natureza primordial indiferenciada que possui nela toda a força e o poder do que é selvagem. Tem por esposo Apsu, o deus das águas doces sobre as quais repousa o mundo. De ambos nascerão os deuses que compõem o panteão mesopotâmico. O Enuma Elis narra toda a história da luta entre os deuses da primeira geração com os da geração seguinte que culmina com a destruição de Tiamat por Marduk ( filho de Damkina, senhora da terra e de Enki/ Ea ) um deus de uma nova geração que representa a vida, a civilização e o progresso, enquanto que os deuses primitivos são conotados com o caos, a natureza desorganizada, a força bruta sem inteligência. É acompanhando talvez a par e passo a evolução da importância dos deuses sumérios, acádicos e a formação final do panteão mesopotâmico que verificámos como a deusa primordial foi perdendo lentamente a sua importância até desaparecer do panteão. É o caso da Nammu suméria de que se perdeu a memória, da Tiamat mesopotâmica que foi transformada num monstro, numa serpente que é necessário abater porque representa as forças do caos, tal como é preciso que seja abatido o Yam ugarítco que será derrotado por Baal, outro deus das novas gerações que se transformou em deus principal, deus da tempestade e do trovão, deus fertilizador dador de vida. Não esqueçamos também Leviatã, a serpente, que Javé tenta destruir como lemos em Isaías 27,1 “ Naquele dia o Senhor ferirá com a sua espada pesada temperada e forte a Leviatã, a serpente tortuosa e matará o monstro do mar “

A Deusa é, já no período histórico, personificada com o mal que é preciso destruir. O episódio do pecado original no Génesis pode, como sabemos, revestir-se de vários significados. A serpente do Génesis é a representação da tentação, do mal. Eva cometeu a falta sob a influência da serpente. Mas a serpente é um símbolo da Deusa assim como a arvore se identifica com a deusa. André Smet [7] diz-nos que Eva transgride a proibição patriarcal que é representada por Javé: “ O pecado original da Bíblia pode ser considerado como o primeiro acto desta longa luta de Deus Pai contra a Deusa-Mãe. Esta primeira queda, que será seguida de muitas outras, será como todas as outras severamente punida pelo Deus Pai. A inimizade é lançada entre a serpente e a mulher o que significa que a mulher não terá mais o direito de honrar a deusa e de lhe obedecer mas antes deverá lutar contra ela “. Javé pune também a mulher precisamente naquilo que fazia a sua glória: a gravidez e a maternidade, quando lhe diz “ Aumentarei os sofrimentos da tua gravidez, os teus filhos hão-de nascer entre dores “ . E em seguida “ procurarás com paixão a quem serás sujeita, o teu marido “. Em vez de suscitar o desejo dos homens, símbolo do culto sexual rendido à Deusa, a mulher é a eles subjugada. E por fim Javé ordena “ maldita seja a terra por tua causa “ [8].

Há quem veja nesta atitude uma mudança radical na história das mentalidades. É uma outra civilização que começa onde a predominância será do homem, enquanto que até aqui pertenceu primeiro à mulher, em seguida foi partilhada por ambos e agora o poder cabe exclusivamente ao homem. Mas a atitude de Adão não deixa de ser curiosa ao pôr o nome de Eva à sua mulher porque ela iria ser a Mãe de todos os homens. Significará esta uma maneira oculta de homenagear a Deusa -Mãe através de Eva?

Não temos documentos relativos à passagem da religião da Deusa da Europa antiga para a religião grega. No entanto, alguns investigadores vêem na trilogia de Ésquilo, Oresteia uma recordação da época em que a sexualidade feminina era objecto de veneração: Orestes é julgado pela acusação de matricídio. Defendiam-no Apolo e os outros deuses celestes gregos. Contra eles pronunciavam-se as Fúrias ou Erínias, antigas deusas relacionadas com a terra. Orestes tinha matado a mãe por esta ter assassinado o seu pai, Agamémnon, pelo facto de este ter sacrificado a filha com o objectivo de assegurar a vitória na batalha. As fúrias discutem com Apolo, mas este baseia-se em considerações nas quais a mãe não é a verdadeira progenitora do filho, porque é a semente do pai a portadora da energia geradora de vida, a que produz nova vida ao ser colocado no seio da mãe. A força geradora está na sexualidade masculina, não na feminina, segundo Apolo.

A teoria dos filósofos pré-socráticos Empédocles, Anaxágoras e Demócrito afirmava a existência das sementes masculina e feminina, mas as suas ideias foram repelidas por Aristóteles. Aristóteles tentou dar uma base científica acerca da potencialidade da sexualidade masculina e da possibilidade das funções sexuais femininas em dois tratados: Espécie dos animais e As partes dos animais. Em síntese diz-nos que “ Masculino é o que possui a capacidade de condensar, tornar mais denso, fazer que tome forma e descarregar o sémen, que possui o princípio da forma. Feminino é o que recebe o sémen, mas é incapaz de fazer que tome forma ou de descarregá-lo (…) . O sémen contém em si mesmo o princípio da actividade e da organização efectiva para a organização do embrião. Posto que o sémen masculino era portador da capacidade de gerar, procriar, o ovo feminino não podia ter esse mesmo poder “. A ideologia grega acerca da sexualidade em termos de princípio activo e passivo terminou por impor-se até ao século XVIII.

Mas Hesíodo na Teogonia dizia: “ Primeiro de tudo foi o Caos, depois a Terra, de amplo seio, sólida e eterna morada de todos os seres, e Eros o mais formoso dos deuses imortais ( …). Do Caos nascem as Trevas e a Noite negra, e da Noite nascem a Luz e o Dia , filhos seus concebidos depois da sua união amorosa com as Trevas. A Terra criou primeiro o Céu estrelado, tão grande como ela, para a envolver por todos os lados. Depois criou as altas montanhas, moradas agradáveis dos deuses, e deu também o ser às águas estéreis, o mar com as suas altas ondas, tudo isto sem paixão amorosa “ . Já no mito platónico da criação, a passividade feminina é um facto: “ A mãe e receptáculo de todas as coisas criadas e visíveis e de algum modo sensíveis não há-de ser chamada terra ou ar ou fogo ou água ou qualquer dos seus compostos, senão que é um ser invisível e informe que recebe todas as coisas e de algum modo misterioso participa do inteligível e é absolutamente incompreensível.” Podemos referir que quanto mais se caminha à frente no tempo mais se desvanece a importância da mulher.

Ao atravessarmos toda a história da Europa e do Próximo Oriente Antigo desde a Idade do Bronze até aos nossos dias verificámos que a mulher perdeu muito da dignidade que possuiu. O Cristianismo tentou suavizar a imagem da mulher com o culto de Maria. No entanto, o inconsciente colectivo da comunidade cristã via em Maria, Mãe de Deus, a Mãe Universal, a Mãe de todos nós. Não podemos deixar de referir que foi devido à grande pressão popular desde os primeiros séculos do Cristianismo que a Igreja proclamou Maria, no Concílio de Éfeso em 431, Theotokos. Mas só em 1854 foi proclamado o Dogma da Imaculada Conceição, após séculos de divergências no seio da Igreja principalmente entre franciscanos e dominicanos. Finalmente Pio XII, em 1950, proclamou o Dogma da Assunção.

O modelo mítico de Maria, Mãe de um deus encarnado que morreu pela salvação da humanidade e ressuscitou ao terceiro dia perpassa por inúmeras Deusas-Mãe da Antiguidade. Mas, Maria não é a Grande Deusa das religiões que precederam o Cristianismo, a Grande Deusa dadora da vida e da morte, a deusa da terra, a deusa das forças telúricas. A Virgem Maria é a Deusa dos Céus que sendo Virgem deu à luz o filho de Deus. Tiepolo entre 1767-69 pintou a Imaculada Conceição. Inspirando-se em Apocalipse 12,1 representou-a rodeada de querubins, de pé sobre o Quarto Crescente da Lua, pisando uma serpente dragão que tem na boca um fruto. A serpente é trespassada na cauda por um lírio símbolo da pureza de Maria. Por cima da sua cabeça paira uma pomba, símbolo do Espírito Santo que lhe concedeu o dom da concepção. Esta iconografia é totalmente reveladora da distinção entre a Deusa- Mãe da Terra e da Deusa -Mãe dos Céus.

De tudo o que foi dito concluímos que a Criação seja do mundo ou do homem está intrínseca e profundamente ligada ao princípio feminino e à mulher. A investigação científica diz-nos que a origem da vida na terra surgiu nas águas primordiais. A Ciência hoje, com todo o seu avanço científico e tecnológico quer na fertilização in uitro quer no processo de clonagem não conseguiu substituto do suporte feminino. Nós continuamos a nascer de uma mulher. E, até Deus, para se tornar humano precisou de um corpo de Mulher.

[1] Introdução à publicação em língua castelhana por María del Mar Llinares García, da obra de J.J. Bachofen, El Matriarcado , Ediciones Akal, 2ª edición, Madrid, 1992, p. 6.

[2] GIMBUTAS, M. The Goddesses and Gods of Old Europe, Myths and Cult Images , 6500- 3500 B. C. Thames and Hudson Ltd, London, 1996.

[3] EISLER, R. O Cálice e a Espada, Colecção Diversos Universos, Via Optima, Porto, 1998.

[4] ELIADE, M. Tratado da História das Religiões, Edições ASA, Porto, 1992, p.244.

[5] LERNER, G. The Creation of Patriarchy, Oxford University Press, Inc., New York, 1986.

[6] Idem, p. 146.

[7] SEMET, A. La grande Deésse n´est pas mort, Paris 1983, p.81.

[8] Gn 3, 14-18.

Ana Maria Mendes Moreira