Demência é uma palavra
geralmente usada para
ofender alguém,
mas na realidade demência
É de fato uma situação clínica,
o declínio das faculdades mentais
de uma pessoa
Demência é uma palavra
geralmente usada para
ofender alguém,
mas na realidade demência
É de fato uma situação clínica,
o declínio das faculdades mentais
de uma pessoa.
Meu pai depois dos setenta anos
começou a manifestar alguns
comportamentos estranhos,
às vezes se comportava
como se fosse uma criança
e às vezes não reconhecia
os membros da família,
a primeira vista eu pensei
que era Alzheimer mas depois
de muitos exames e consultas
o resultado veio dizendo que
meu pai estava com demência
causada pela idade.
O nome dele era Valdomiro
e toda a vida foi o melhor
pai do mundo,
minha mãe morreu muito cedo
e ele que acabou criando a gente,
quando eu abri o meu
terreiro de umbanda
ele mesmo sendo católico acabou
sendo o fiador para que eu
alugasse a primeira casa e
depois me fez um
empréstimo pessoal para que
eu comprasse o terreno definitivo
no qual eu toco minha gira
até os dias de hoje.
Então eu quero contar para vocês
o que aconteceu quando
meu pai já estava doente,
que foram os dias em
que ele conheceu
Dama da Noite.
Minha casa era nos fundos
do terreiro e agora meu pai
morava comigo,
não tinha mais condições de ele
morar sozinho então alugamos
a casa dele e ele veio ocupar
o quarto que era antes do meu
filho mais velho que agora
tinha se casado e ido embora.
Contratamos uma cuidadora
e tudo ia bem com meu pai
vivendo daquele jeito
às vezes olhando para mim
e me chamando pelo nome
mas muitas vezes me chamando
de Marta, que no caso era
minha tia já falecida.
Foi em uma sexta-feira à noite
que a cuidadora antes de vir
para o turno noturno me ligou
dizendo que havia batido o carro
e que não teria como
chegar a tempo.
Fiquei desesperada pois
naquela noite eu estava sozinha
com meu pai e já tinha marcado
uma gira de pombagira
no meu terreiro e o povo
já estava chegando,
então olhei para o meu pai
que estava ali na sala
quietinho assistindo televisão
e Pensei que talvez se eu fosse
para o terreiro eu conseguiria
coordenar as coisas lá
e sempre voltar para dar
uma olhadinha nele.
Uma das minhas filhas de Santo
trabalha com Dama da Noite
e aquela gira era especial para ela,
estavam vindo pessoas de vários
lugares da cidade para ter
a consulta tão esperada.
Toda hora eu estava no salão
ajudando Dama da Noite com
alguma coisa e depois voltava
para casa para ver meu pai
que continuava assistindo
a televisão tranquilamente,
mas em um momento quando
eu estava no terreiro
Dama da Noite parou de atender
uma das consulentes e olhou
para mim e sorriu
só que eu percebi que ela
não estava olhando diretamente
nos meus olhos e sim
como se visse atrás de mim,
quando eu virei de costas
Lá estava meu pai na porta do terreiro
de boca aberta olhando para
Dama da Noite como se nunca
tivesse visto algo
daquele tipo na vida.
Corri até ele já o levando
de volta para casa mas meu pai
pediu para ficar,
queria olhar para a Dama.
Coloquei um banquinho perto
da porta e ele ficou ali sentado
observando as consultas,
toda hora eu virava para trás
e via ele ali que olhava para
Dama da Noite com
os olhos vidrados parecendo ver
algo majestoso.
Quando a última consulta estava
Já acabando eu fui até ele
e disse que podia voltar para casa
porque a Dama agora já
estava indo embora,
então ele cochichou:
— Marta, Por que a Filha do Presidente tá aqui?
Não entendi o que ele quis dizer
mas depois de muito tempo
um dos meus tios me explicou
que quando o meu pai era jovem
a moça mais bonita da região
era a Filha do Presidente
da tecelagem que eles trabalhavam,
uma moça tão bonita que
chegou até a participar de
Concurso de Miss Brasil.
Conversei com meu pai
explicando para ele que Dama
era um espírito e que ia embora
mas ele parecia me ignorar totalmente,
então Dama da Noite se despediu
das últimas pessoas e
se levantou já pronta para
que eu a levasse para dentro
do quarto afim dela partir,
mas para minha surpresa
em vez de ir para o quarto
ela veio na minha direção e
quando ficou ao meu lado
estendeu a mão para meu pai,
ele se ajoelhou e beijou a mão dela.
Lá em casa nós tínhamos um
jeito próprio de cumprimentar
as entidades mas dama da noite
se colocou de um jeito
a cumprimentar meu pai
com aquele beijo na mão
que parecia quase
um filme de época.
— A senhorita é a filha do presidente?
Dama da Noite sorriu
— Não meu querido, só pareço um pouquinho com ela.
Meu pai sorriu com os
olhos úmidos e fez a pergunta
mais doida que já viu alguém
fazer uma pombagira:
— a Senhorita gostaria de ir comigo amanhã na gafieira?
Parecia uma piada
mas meu pai estava de fato
convidando Dama da Noite
para ir com ele em um baile,
suspirei e tentei explicar
para Dama que ele estava doente
E que não falava coisa com coisa
mas ela só acenou com a mão
mostrando que eu não precisava
explicar nada que ela
já tinha entendido tudo.
Ela anuiu com a cabeça
e falou com uma voz aveludada
muito diferente da voz aguda
que usava nas consultas:
— Fico muito grata pelo convite, mas não é de bom tom uma Dama sair com um cavalheiro assim sem ter muita intimidade.
Meu pai balançou a cabeça
várias vezes em compreensão
e perguntou para ela se poderiam
se ver de novo,
Dama sorriu mais uma vez e
disse que sim que em breve
ele a veria mais uma vez
Então deu meia volta
e foi embora para dentro do
quarto onde meus filhos de Santo
A ajudaram a ir embora.
Naquela noite meu pai
parecia eufórico,
quando fui colocá-lo na cama
ele por várias vezes
repetiu para mim:
— Marta você não tem ideia da moça que eu conheci hoje! Ela é tão bonita... da próxima vez eu vou perguntar se posso fazer a côrte...
Eu apenas ria com a ideia
do meu pai cortejando uma entidade,
então eu imaginei que no
dia seguinte ele já teria
esquecido totalmente daquilo
pois sempre que dormia ele
geralmente esquecia de tudo
que tinha acontecido
no dia anterior,
Mas quando cheguei em casa
à noite a cuidadora me perguntou
várias vezes
Quem era a tal moça
que parecia filha de presidente
e que ele tinha conhecido
pois meu pai havia repetido
sobre aquela história
o dia inteiro.
Alguns dias depois houve
outra gira na minha casa
e dessa vez a Dama da Noite
não viria pois era uma gira
para alguns malandros,
então levei meu pai para
conhecer Maria,
Maria era minha filha médium
De Dama da Noite.
Meu pai a cumprimentou
mas não demonstrou reconhecimento
e quando eu disse a ele que
aquela era a tal moça
Ele olhou para mim rindo e falou:
— Não querendo ofender essa senhora, mas ela já é muito velha e muito passada para ser aquela beldade.
Fiquei com uma pulga
atrás da orelha e com a sensação
de que meu pai tinha visto
na verdade a verdadeira
Dama da Noite através
de Maria naquele dia.
O tempo foi passando e
ele nunca se cansava de
perguntar até que chegou
a noite de fazer a gira de
todas as moças,
eu avisei meu pai
que ele se comportasse
eu iria sim levá-lo
para ver a Dama.
Fui para o terreiro e avisei
antes a cuidadora de que
depois de uma meia hora
ela podia deixar o meu pai ir
para o barracão,
e assim foi, mas quando meu pai
entrou até eu tomei um susto
com ele enfiado em um paletó,
o cabelo dividido no meio
cheio de gel e trazendo na mão
um buquê de flores
que havia pedido para a
cuidadora pegar do arranjo
De rosas que eu deixava
Na mesinha de centro da
Sala de casa.
Ele foi entrando
de forma Galante e Dama já
estava ali conversando com
várias pessoas e quando se virou
para ele abriu um sorriso e
aceitou as flores que ele
lhe ofertava.
— que alegria ver a senhorita aqui na gafieira...
Tentei explicar a ele que ali
era meu terreiro de umbanda
e não um salão de gafieira,
mas a própria Dama da Noite
me cortou no assunto
pedindo que não o contrariasse.
Ela foi conversando com muitas
pessoas e o meu pai sempre
A seguindo pelo salão
e vira e mexe ela Virava para
conversar com ele alguma coisa
mas sempre que falava com ele
Eu ficava muito Surpresa
porque ela não usava aquele
tom de voz espiritual e sim
conversava como se fosse
uma mulher comum,
usava até algumas expressões
antigas que com certeza na
juventude do meu velho
eram corriqueiras.
No fim da noite ele foi até ela
e fez a pergunta:
— Se a senhorita for descomprometida... eu gostaria muito que me permitisse lhe acompanhar até em casa hoje.
Dama da Noite desconversou
e disse que não seria possível
pois ela morava muito longe
mas que se ele quisesse poderia
na semana seguinte e
voltar a vê-la ali.
Meu pai ficou Radiante
com a notícia de ter sido convidado
pela própria a estar na
presença dela mais uma vez.
A semana passou e ele acabou
sendo hospitalizado por
alguns dias por ter entrado
em um estado de confusão,
coisa que às vezes acontecia,
mas no fim de semana ele
estava lá Pronto e novamente
vestido naquele terno,
perfumado e dessa vez ele ficava
toda hora batendo a mão sobre
o peito enquanto
Me esperava para
Que eu o levasse até o barracão.
Quando chegamos lá Dama da Noite
estava novamente atendendo
o povo mas ele chegou bem
perto dela e pediu que assim
que fosse possível se ela podia
dar a ele um minutinho de atenção.
Logo que pôde ela de fato foi
conversar com meu pai em
um canto do Barracão
E eu observando de longe,
então quando eu vi o meu pai
se ajoelhando e tirando do bolso
do paletó uma caixinha vermelha
tive que correr para junto
para ver o que estava acontecendo,
E sim, meu pai estava oferecendo
a Dama da Noite e um anel de noivado.
No caso aquele anel era aliança
que minha mãe usava
quando era viva.
Fiquei muito constrangida
achando que Dama da Noite
iria dizer a ele algum absurdo
mas não, ela estendeu a mão e
deixou que ele colocasse em
seu dedo anelar o anel.
Então ficou marcado entre os
dois de se ver mais uma vez
no próximo fim de semana.
No momento que Dama da Noite
estava já para ir embora
ela pediu para falar comigo:
— Aproveite esses dias com ele, falta muito pouco até que chegue a hora derradeira.
Aquilo não me surpreendeu
em nada, por mais que tivesse
deixado o meu coração muito apertado,
eu sabia que meu pai não
estava nada bem e sabia também
que já estava beirando os oitenta anos
e que uma hora ou outra
ele iria falecer.
A semana passou e novamente
meu pai passou três dias
no hospital pois havia tido
uma crise renal aguda,
e o médico havia recomendado
que ele permanecesse internado
por mais algum tempo
mas o meu pai reclamou muito
e disse que não podia deixar
de ver sua noiva
na data marcada.
Os médicos geriatras já são
acostumados com a energia
do paciente e sabem quando a
hora está chegando
então mesmo que fosse ideal
que o meu pai ficasse lá
o próprio médico liberou
que ele fosse embora e me disse
que desse ao meu velho
o máximo de alegria que
fosse possível naquela última hora.
A gira iria acontecer no
sábado à noite mas na sexta-feira
à tarde Maria chegou em casa
dizendo que havia sentido
no coração que precisava
ir ali urgentemente,
e eu também já havia
sentido no meu coração que
precisava de Dama da Noite
naquele dia.
Sem dar muitas explicações
fomos logo vestindo Maria
com a roupa mais bonita
de Dama e lá dentro do quarto
de Santo nós chamamos a pombagira
na cabeça dela.
Naquele dia meu filho
veio nos visitar e por
sorte trouxe minha nora.
Não vou dizer que foi apenas sorte
talvez fosse a própria Dama da Noite
ajustando as coisas pois a minha nora
sabia tocar violão e tinha
acabado de vir com o instrumento
dentro do carro,
meu pai logo foi chamando
minha nora pelo nome de uma
outra irmã dele que também
tocava violão e pediu se ela
podia tocar uma valsa.
Minha nora concordou
pois ela sabia algumas músicas
mais clássicas então lá fomos
nós para o terreiro
com meu pai todo enfiado
naquele terno antiquado e
quando chegamos lá
Dama da Noite parecia uma princesa,
com seu vestido preto e dourado
e o cabelo arrumado com
um penteado cravejado de
rosas brancas
ela de fato não
parecia nada com Maria
e sim uma Dama da alta sociedade.
Meu pai de forma respeitosa
conversou com ela por
alguns tempo, os dois sentadinhos
em poltronas afastadas
então acabou convidando
dama para dançar uma valsa.
Maria nunca soube dançar nem mesmo
Um samba sequer
e por isso fiquei um pouco apreensiva
pois talvez não desse muito certo
mas quando Dama se colocou no
meio do salão não tive como duvidar
que aquela Jamais seria
minha filha Maria,
meu pai colocou a mão na
cintura de Dama e a outra
mão juntou a dela
então minha nora tocava
no violão uma valsa
com acordes muito antigos
na época dos salões de baile,
o meu pai e a Dama dançavam
pelo salão com a saia dela
se abrindo em Leque
toda vez que ele a girava.
Aquilo Não durou muito tempo
a dança deles não chegou
nem a uma hora,
logo Dama pediu para parar
e falou que precisava ir
retocar a maquiagem,
e ele falou que precisava
Se sentar um pouco mas
que assim que ela voltasse
eles iam dançar mais uma vez.
Ele se aproximou de modo tímido
E a beijou na bochecha.
— Hoje eu posso te acompanhar até em casa?
— Hoje sim meu querido.
Ele então foi indo para casa
com passinhos curtos e rápidos
como um garotinho muito animado.
Dama olhou para mim e disse:
— Vai se despedir dele.
Eu que sou chorona como
uma boa filha de Oxum
já logo enchi os ueus Olhos de Água
e fui seguindo meu pai,
para chegarmos na minha casa
nos fundos tinha que passar
por um longo corredor
E enquanto meu pai ia
de repente ele bambeou
para o lado e bateu o corpo
contra a parede.
Consegui segurá-lo e meu filho
veio me ajudar então carregamos
ele para dentro de casa
e o colocamos na cama,
e ele ficava dizendo que
talvez tivesse bebido um pouco demais
e por isso estava meio torto,
E é claro que meu pai não
havia provado uma gota
de álcool se quer mas a mente
dele parecia mais embaralhada
do que nunca, porém mesmo
daquele jeito o sorriso que ele
nos dava toda vez dizendo
que iria descansar só um pouquinho
para voltar ao salão para dançar
com a Dama era um sorriso
tão sincero que mesmo
naquele momento
nós fazia sorrir
de volta para ele.
A voz dele foi ficando mais fraquinha
e mais baixa quando me perguntava
se Dama já tinha voltado e eu dizia
A ele várias vezes que ela ainda
estava arrumando os cabelos
na frente do espelho
e que logo o chamaria.
Então meu pai acabou fechando
os olhos e a sua respiração
era muito profunda,
e ali comigo sentada do ladinho dele
na cama segurando sua mão
ele me disse uma última vez:
— Você... você não é a minha irmã Marta, é?
E eu segurando o choro respondi:
— Não pai, eu sou sua filha Clarice.
— Ah minha filha... foi muito bom ter ficado na sua casa... foi muito bom mesmo... agora eu vou ali dançar um pouquinho mais com aquela bela moça, tudo bem?
Então o peito dele subiu
E desceu uma última vez em
uma última lufada de respiração,
e ali comigo ainda segurando
sua mão foi que meu pai
deixou esse mundo.
Imediatamente minha casa
virou aquele pandemônio
que é quando uma pessoa amada
falece Pois todos ali dentro
choravam e iam se despedir
daquele velhinho todo enfeitado
deitado na cama.
Mas eu fui até o barracão
onde Dama da Noite estava
lá sozinha me esperando.
— Agora eu tenho que ir, tem um cavalheiro que ainda me espera para uma última dança.
— a Senhora Cuida dele?
— Cuido sim.
Então Dama da Noite se foi
E muito tempo depois me disse
que o meu pai e ela dançaram
uma valsa longa e lenta e
enquanto dançavam ela o levou
para um bom lugar onde ele
hoje está tendo o seu
merecido descanso.
Nós sempre temos a ideia de que
as pomba giras são mulheres
ácidas ou às vezes até perversas
Mas mesmo eu sendo uma
mãe de santo e trabalhando
muito com as entidades,
Jamais poderei agradecer
o carinho que Dama da noite teve
com o meu pai até o fim.
Arte e texto por Felipe Caprini
Espero que tenham gostado!
Não copie o texto ou reposte a arte sem dar os créditos! Seja Honesto!
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geralmente usada para
ofender alguém,
mas na realidade demência
É de fato uma situação clínica,
o declínio das faculdades mentais
de uma pessoa.
Meu pai depois dos setenta anos
começou a manifestar alguns
comportamentos estranhos,
às vezes se comportava
como se fosse uma criança
e às vezes não reconhecia
os membros da família,
a primeira vista eu pensei
que era Alzheimer mas depois
de muitos exames e consultas
o resultado veio dizendo que
meu pai estava com demência
causada pela idade.
O nome dele era Valdomiro
e toda a vida foi o melhor
pai do mundo,
minha mãe morreu muito cedo
e ele que acabou criando a gente,
quando eu abri o meu
terreiro de umbanda
ele mesmo sendo católico acabou
sendo o fiador para que eu
alugasse a primeira casa e
depois me fez um
empréstimo pessoal para que
eu comprasse o terreno definitivo
no qual eu toco minha gira
até os dias de hoje.
Então eu quero contar para vocês
o que aconteceu quando
meu pai já estava doente,
que foram os dias em
que ele conheceu
Dama da Noite.
Minha casa era nos fundos
do terreiro e agora meu pai
morava comigo,
não tinha mais condições de ele
morar sozinho então alugamos
a casa dele e ele veio ocupar
o quarto que era antes do meu
filho mais velho que agora
tinha se casado e ido embora.
Contratamos uma cuidadora
e tudo ia bem com meu pai
vivendo daquele jeito
às vezes olhando para mim
e me chamando pelo nome
mas muitas vezes me chamando
de Marta, que no caso era
minha tia já falecida.
Foi em uma sexta-feira à noite
que a cuidadora antes de vir
para o turno noturno me ligou
dizendo que havia batido o carro
e que não teria como
chegar a tempo.
Fiquei desesperada pois
naquela noite eu estava sozinha
com meu pai e já tinha marcado
uma gira de pombagira
no meu terreiro e o povo
já estava chegando,
então olhei para o meu pai
que estava ali na sala
quietinho assistindo televisão
e Pensei que talvez se eu fosse
para o terreiro eu conseguiria
coordenar as coisas lá
e sempre voltar para dar
uma olhadinha nele.
Uma das minhas filhas de Santo
trabalha com Dama da Noite
e aquela gira era especial para ela,
estavam vindo pessoas de vários
lugares da cidade para ter
a consulta tão esperada.
Toda hora eu estava no salão
ajudando Dama da Noite com
alguma coisa e depois voltava
para casa para ver meu pai
que continuava assistindo
a televisão tranquilamente,
mas em um momento quando
eu estava no terreiro
Dama da Noite parou de atender
uma das consulentes e olhou
para mim e sorriu
só que eu percebi que ela
não estava olhando diretamente
nos meus olhos e sim
como se visse atrás de mim,
quando eu virei de costas
Lá estava meu pai na porta do terreiro
de boca aberta olhando para
Dama da Noite como se nunca
tivesse visto algo
daquele tipo na vida.
Corri até ele já o levando
de volta para casa mas meu pai
pediu para ficar,
queria olhar para a Dama.
Coloquei um banquinho perto
da porta e ele ficou ali sentado
observando as consultas,
toda hora eu virava para trás
e via ele ali que olhava para
Dama da Noite com
os olhos vidrados parecendo ver
algo majestoso.
Quando a última consulta estava
Já acabando eu fui até ele
e disse que podia voltar para casa
porque a Dama agora já
estava indo embora,
então ele cochichou:
— Marta, Por que a Filha do Presidente tá aqui?Não entendi o que ele quis dizer
mas depois de muito tempo
um dos meus tios me explicou
que quando o meu pai era jovem
a moça mais bonita da região
era a Filha do Presidente
da tecelagem que eles trabalhavam,
uma moça tão bonita que
chegou até a participar de
Concurso de Miss Brasil.
Conversei com meu pai
explicando para ele que Dama
era um espírito e que ia embora
mas ele parecia me ignorar totalmente,
então Dama da Noite se despediu
das últimas pessoas e
se levantou já pronta para
que eu a levasse para dentro
do quarto afim dela partir,
mas para minha surpresa
em vez de ir para o quarto
ela veio na minha direção e
quando ficou ao meu lado
estendeu a mão para meu pai,
ele se ajoelhou e beijou a mão dela.
Lá em casa nós tínhamos um
jeito próprio de cumprimentar
as entidades mas dama da noite
se colocou de um jeito
a cumprimentar meu pai
com aquele beijo na mão
que parecia quase
um filme de época.
— A senhorita é a filha do presidente?Dama da Noite sorriu
— Não meu querido, só pareço um pouquinho com ela.Meu pai sorriu com os
olhos úmidos e fez a pergunta
mais doida que já viu alguém
fazer uma pombagira:
— a Senhorita gostaria de ir comigo amanhã na gafieira?Parecia uma piada
mas meu pai estava de fato
convidando Dama da Noite
para ir com ele em um baile,
suspirei e tentei explicar
para Dama que ele estava doente
E que não falava coisa com coisa
mas ela só acenou com a mão
mostrando que eu não precisava
explicar nada que ela
já tinha entendido tudo.
Ela anuiu com a cabeça
e falou com uma voz aveludada
muito diferente da voz aguda
que usava nas consultas:
— Fico muito grata pelo convite, mas não é de bom tom uma Dama sair com um cavalheiro assim sem ter muita intimidade.Meu pai balançou a cabeça
várias vezes em compreensão
e perguntou para ela se poderiam
se ver de novo,
Dama sorriu mais uma vez e
disse que sim que em breve
ele a veria mais uma vez
Então deu meia volta
e foi embora para dentro do
quarto onde meus filhos de Santo
A ajudaram a ir embora.
Naquela noite meu pai
parecia eufórico,
quando fui colocá-lo na cama
ele por várias vezes
repetiu para mim:
— Marta você não tem ideia da moça que eu conheci hoje! Ela é tão bonita... da próxima vez eu vou perguntar se posso fazer a côrte...Eu apenas ria com a ideia
do meu pai cortejando uma entidade,
então eu imaginei que no
dia seguinte ele já teria
esquecido totalmente daquilo
pois sempre que dormia ele
geralmente esquecia de tudo
que tinha acontecido
no dia anterior,
Mas quando cheguei em casa
à noite a cuidadora me perguntou
várias vezes
Quem era a tal moça
que parecia filha de presidente
e que ele tinha conhecido
pois meu pai havia repetido
sobre aquela história
o dia inteiro.
Alguns dias depois houve
outra gira na minha casa
e dessa vez a Dama da Noite
não viria pois era uma gira
para alguns malandros,
então levei meu pai para
conhecer Maria,
Maria era minha filha médium
De Dama da Noite.
Meu pai a cumprimentou
mas não demonstrou reconhecimento
e quando eu disse a ele que
aquela era a tal moça
Ele olhou para mim rindo e falou:
— Não querendo ofender essa senhora, mas ela já é muito velha e muito passada para ser aquela beldade.Fiquei com uma pulga
atrás da orelha e com a sensação
de que meu pai tinha visto
na verdade a verdadeira
Dama da Noite através
de Maria naquele dia.
O tempo foi passando e
ele nunca se cansava de
perguntar até que chegou
a noite de fazer a gira de
todas as moças,
eu avisei meu pai
que ele se comportasse
eu iria sim levá-lo
para ver a Dama.
Fui para o terreiro e avisei
antes a cuidadora de que
depois de uma meia hora
ela podia deixar o meu pai ir
para o barracão,
e assim foi, mas quando meu pai
entrou até eu tomei um susto
com ele enfiado em um paletó,
o cabelo dividido no meio
cheio de gel e trazendo na mão
um buquê de flores
que havia pedido para a
cuidadora pegar do arranjo
De rosas que eu deixava
Na mesinha de centro da
Sala de casa.
Ele foi entrando
de forma Galante e Dama já
estava ali conversando com
várias pessoas e quando se virou
para ele abriu um sorriso e
aceitou as flores que ele
lhe ofertava.
— que alegria ver a senhorita aqui na gafieira...Tentei explicar a ele que ali
era meu terreiro de umbanda
e não um salão de gafieira,
mas a própria Dama da Noite
me cortou no assunto
pedindo que não o contrariasse.
Ela foi conversando com muitas
pessoas e o meu pai sempre
A seguindo pelo salão
e vira e mexe ela Virava para
conversar com ele alguma coisa
mas sempre que falava com ele
Eu ficava muito Surpresa
porque ela não usava aquele
tom de voz espiritual e sim
conversava como se fosse
uma mulher comum,
usava até algumas expressões
antigas que com certeza na
juventude do meu velho
eram corriqueiras.
No fim da noite ele foi até ela
e fez a pergunta:
— Se a senhorita for descomprometida... eu gostaria muito que me permitisse lhe acompanhar até em casa hoje.Dama da Noite desconversou
e disse que não seria possível
pois ela morava muito longe
mas que se ele quisesse poderia
na semana seguinte e
voltar a vê-la ali.
Meu pai ficou Radiante
com a notícia de ter sido convidado
pela própria a estar na
presença dela mais uma vez.
A semana passou e ele acabou
sendo hospitalizado por
alguns dias por ter entrado
em um estado de confusão,
coisa que às vezes acontecia,
mas no fim de semana ele
estava lá Pronto e novamente
vestido naquele terno,
perfumado e dessa vez ele ficava
toda hora batendo a mão sobre
o peito enquanto
Me esperava para
Que eu o levasse até o barracão.
Quando chegamos lá Dama da Noite
estava novamente atendendo
o povo mas ele chegou bem
perto dela e pediu que assim
que fosse possível se ela podia
dar a ele um minutinho de atenção.
Logo que pôde ela de fato foi
conversar com meu pai em
um canto do Barracão
E eu observando de longe,
então quando eu vi o meu pai
se ajoelhando e tirando do bolso
do paletó uma caixinha vermelha
tive que correr para junto
para ver o que estava acontecendo,
E sim, meu pai estava oferecendo
a Dama da Noite e um anel de noivado.
No caso aquele anel era aliança
que minha mãe usava
quando era viva.
Fiquei muito constrangida
achando que Dama da Noite
iria dizer a ele algum absurdo
mas não, ela estendeu a mão e
deixou que ele colocasse em
seu dedo anelar o anel.
Então ficou marcado entre os
dois de se ver mais uma vez
no próximo fim de semana.
No momento que Dama da Noite
estava já para ir embora
ela pediu para falar comigo:
— Aproveite esses dias com ele, falta muito pouco até que chegue a hora derradeira.Aquilo não me surpreendeu
em nada, por mais que tivesse
deixado o meu coração muito apertado,
eu sabia que meu pai não
estava nada bem e sabia também
que já estava beirando os oitenta anos
e que uma hora ou outra
ele iria falecer.
A semana passou e novamente
meu pai passou três dias
no hospital pois havia tido
uma crise renal aguda,
e o médico havia recomendado
que ele permanecesse internado
por mais algum tempo
mas o meu pai reclamou muito
e disse que não podia deixar
de ver sua noiva
na data marcada.
Os médicos geriatras já são
acostumados com a energia
do paciente e sabem quando a
hora está chegando
então mesmo que fosse ideal
que o meu pai ficasse lá
o próprio médico liberou
que ele fosse embora e me disse
que desse ao meu velho
o máximo de alegria que
fosse possível naquela última hora.
A gira iria acontecer no
sábado à noite mas na sexta-feira
à tarde Maria chegou em casa
dizendo que havia sentido
no coração que precisava
ir ali urgentemente,
e eu também já havia
sentido no meu coração que
precisava de Dama da Noite
naquele dia.
Sem dar muitas explicações
fomos logo vestindo Maria
com a roupa mais bonita
de Dama e lá dentro do quarto
de Santo nós chamamos a pombagira
na cabeça dela.
Naquele dia meu filho
veio nos visitar e por
sorte trouxe minha nora.
Não vou dizer que foi apenas sorte
talvez fosse a própria Dama da Noite
ajustando as coisas pois a minha nora
sabia tocar violão e tinha
acabado de vir com o instrumento
dentro do carro,
meu pai logo foi chamando
minha nora pelo nome de uma
outra irmã dele que também
tocava violão e pediu se ela
podia tocar uma valsa.
Minha nora concordou
pois ela sabia algumas músicas
mais clássicas então lá fomos
nós para o terreiro
com meu pai todo enfiado
naquele terno antiquado e
quando chegamos lá
Dama da Noite parecia uma princesa,
com seu vestido preto e dourado
e o cabelo arrumado com
um penteado cravejado de
rosas brancas
ela de fato não
parecia nada com Maria
e sim uma Dama da alta sociedade.
Meu pai de forma respeitosa
conversou com ela por
alguns tempo, os dois sentadinhos
em poltronas afastadas
então acabou convidando
dama para dançar uma valsa.
Maria nunca soube dançar nem mesmo
Um samba sequer
e por isso fiquei um pouco apreensiva
pois talvez não desse muito certo
mas quando Dama se colocou no
meio do salão não tive como duvidar
que aquela Jamais seria
minha filha Maria,
meu pai colocou a mão na
cintura de Dama e a outra
mão juntou a dela
então minha nora tocava
no violão uma valsa
com acordes muito antigos
na época dos salões de baile,
o meu pai e a Dama dançavam
pelo salão com a saia dela
se abrindo em Leque
toda vez que ele a girava.
Aquilo Não durou muito tempo
a dança deles não chegou
nem a uma hora,
logo Dama pediu para parar
e falou que precisava ir
retocar a maquiagem,
e ele falou que precisava
Se sentar um pouco mas
que assim que ela voltasse
eles iam dançar mais uma vez.
Ele se aproximou de modo tímido
E a beijou na bochecha.
— Hoje eu posso te acompanhar até em casa?— Hoje sim meu querido.Ele então foi indo para casa
com passinhos curtos e rápidos
como um garotinho muito animado.
Dama olhou para mim e disse:
— Vai se despedir dele.Eu que sou chorona como
uma boa filha de Oxum
já logo enchi os ueus Olhos de Água
e fui seguindo meu pai,
para chegarmos na minha casa
nos fundos tinha que passar
por um longo corredor
E enquanto meu pai ia
de repente ele bambeou
para o lado e bateu o corpo
contra a parede.
Consegui segurá-lo e meu filho
veio me ajudar então carregamos
ele para dentro de casa
e o colocamos na cama,
e ele ficava dizendo que
talvez tivesse bebido um pouco demais
e por isso estava meio torto,
E é claro que meu pai não
havia provado uma gota
de álcool se quer mas a mente
dele parecia mais embaralhada
do que nunca, porém mesmo
daquele jeito o sorriso que ele
nos dava toda vez dizendo
que iria descansar só um pouquinho
para voltar ao salão para dançar
com a Dama era um sorriso
tão sincero que mesmo
naquele momento
nós fazia sorrir
de volta para ele.
A voz dele foi ficando mais fraquinha
e mais baixa quando me perguntava
se Dama já tinha voltado e eu dizia
A ele várias vezes que ela ainda
estava arrumando os cabelos
na frente do espelho
e que logo o chamaria.
Então meu pai acabou fechando
os olhos e a sua respiração
era muito profunda,
e ali comigo sentada do ladinho dele
na cama segurando sua mão
ele me disse uma última vez:
— Você... você não é a minha irmã Marta, é?E eu segurando o choro respondi:
— Não pai, eu sou sua filha Clarice.— Ah minha filha... foi muito bom ter ficado na sua casa... foi muito bom mesmo... agora eu vou ali dançar um pouquinho mais com aquela bela moça, tudo bem?Então o peito dele subiu
E desceu uma última vez em
uma última lufada de respiração,
e ali comigo ainda segurando
sua mão foi que meu pai
deixou esse mundo.
Imediatamente minha casa
virou aquele pandemônio
que é quando uma pessoa amada
falece Pois todos ali dentro
choravam e iam se despedir
daquele velhinho todo enfeitado
deitado na cama.
Mas eu fui até o barracão
onde Dama da Noite estava
lá sozinha me esperando.
— Agora eu tenho que ir, tem um cavalheiro que ainda me espera para uma última dança.— a Senhora Cuida dele?— Cuido sim.Então Dama da Noite se foi
E muito tempo depois me disse
que o meu pai e ela dançaram
uma valsa longa e lenta e
enquanto dançavam ela o levou
para um bom lugar onde ele
hoje está tendo o seu
merecido descanso.
Nós sempre temos a ideia de que
as pomba giras são mulheres
ácidas ou às vezes até perversas
Mas mesmo eu sendo uma
mãe de santo e trabalhando
muito com as entidades,
Jamais poderei agradecer
o carinho que Dama da noite teve
com o meu pai até o fim.
Arte e texto por Felipe Caprini
Espero que tenham gostado!
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