Trabalhando de doméstica.Um dia ela chegou em casa
Pegou as estátuas de santa Bárbara
E jogou tudo em um saco de lixo
Hoje eu acordei cedo,
Minhas filhas já tinham ido
Para a escola,
Então antes de fazer qualquer coisa
Eu me entortei na cama
Enfiei o braço em baixo dela
E puxei aquela velha caixa de sapato.
Abri e peguei aqueles colares de miçanga,
A miçanga marrom ainda é vivida mesmo
Após mais de quarenta anos.
Aqueles fios de conta eram de minha mãe.
As minhas memórias eram de criança
Ir com minha mãe para o terreiro,
Ela era filha de Iyansan,
Parecia uma princesa quando a vestiam
Com aquela saia cor de rosa.
A festa varava a noite e eu acabava
Adormecendo em um sofa no fundo,
então na hora de ir embora ela me acordava
Com um carinho que sempre fazia,
Passava as pontas dos dedos desde a minha testa
Ate o queixo, e eu ria e abria os olhos.
Um dia minha mãe parou de ir ao terreiro,
Ela estava doente.
Hoje nós sabemos que foi câncer
Mas na época até essa palavra era banida
Então só dizíamos "ela não está boa".
Um dia ela parou de ir ao terreiro,
Uma vizinha crente enfiou na cabeça dela
Que a doença era culpa de ela ser macumbeira
E então ela dizia
"Você ja teve o azar de nascer preta, ser macumbeira já é demais".
E minha mãe que estava muito fragilizada
Foi dando ouvido aquele mulher ruim,
Foi se deixando levar.
Minha mãe era sozinha,
Viúva, tinha duas filhas pra criar
Trabalhando de doméstica.Um dia ela chegou em casa
Pegou as estátuas de santa Bárbara
E jogou tudo em um saco de lixo,
Juntou as roupas de santo
E atirou tudo fora.
Fomos juntas até o terreiro
E ela falou coisas muito feias
Para o Pai Francisco,
Eu não entendia aquilo
Pois ele sempre fora muito bom
Com a gente
Mas minha mãe o xingou
E atirou nele o saco com as roupas
E os cacos das estátuas.
Pai Francisco só olhava,
Não retrucou nada,
Deixou ela apontar o dedo
E gritar as grosserias que queria.
No meio da rusga minha mãe passou mal
E caiu desmaiada,
Pai Francisco a pegou e deixou em uma esteira
E rezou por ela.
Enquanto ela estava descordada
Ele me entregou um saquinho
Com os fios de conta dela
E pediu para eu guardar
Na minha lancheira.
Guardei e esqueci que estavam lá.
Quando minha mãe acordou
Falou mais umas grosseiras
Cuspiu no chão
E foi embora.
Dali por diante em casa só tinha bíblia
E joelho no chão,
E minha mãe rezando para ser curada.
Um ano se passou e minha mãe
Ficou cada vez mais doente,
O tratamento do hospital era mesmo que nada.
Ela decidiu então se batizar na igreja
Como uma última esperança de melhorar.
De madrugada os crentes a enfiaram
Em uma Kombi e levaram lá para Mairiporã
Eu nunca soube o que aconteceu lá
Pois de manhã eu estava indo comprar pão
Quando vi minha mãe descalça
Andando pela rua com os olhos fechados.
Fui até ela e perguntei o que acontecia
Mas ela não respondeu nada.
A segui reparando bem que os pés dela
Sangravam e que a roupa estava suja.
Chegamos na porta do terreiro
E minha mãe gritou alto
"OYÁ HEEEEEEEEEEY!"
E Pai Francisco abriu a porta assustado.
Ele olhou pra mim e perguntou
— Maria o que aconteceu com ela?
E eu contei que ela tinha ido se batizar
Mas que voltou assim.
Ele olhou para minha mãe e falou
— Iyansan, a senhora trouxe ela a pé desde Mairiporã?
E Iyansan acenou a cabeça
Dizendo que sim.
Pai Francisco pediu pra ela entrar
Mas ela não quis,
Ele então foi bem pertinho dela
E eu vi Iyansa cochichar algo no ouvido dele.
Pai Francisco ficou muito pálido
E com os olhos cheios de lágrimas
Mas respondeu.
— Claro que sim minha velha, aqui é sua casa, pode fazer isso aqui sim.
Iyansan entrou e girou quando
Passou pela porta.
No meio do salão
Pai Francisco ajeitou rápido uma esteira.
Iyansan passeou pela casa
Daquele jeito altivo com as mãos para trás.
Pai Francisco a levou para os fundos
Tirou as roupas sujas dela
A banhou e a vestiu com as roupas
De Santo que minha mãe tinha
Jogado lá no saco de lixo.
Iyansan veio até mim
Se abaixou e fez aquele mesmo carinho
Que minha mãe fazia,
Passou as pontas dos dedos desde a minha testa
Ate o queixo,
Me deu um abraço e depois
Deitou na esteira.
Foi então que Pai Francisco começou
A chorar muito,
Cobriu ela com um pano branco
Depois sacudiu o pano
E mesmo soluçando disse "Orixá Unló".
O pano caiu sobre ela novamente
E eu esperei minha mãe levantar.
Toda vez no fim das festas
Pai francisco ou a Ekeji Mariana faziam
Aquela coisa com o pano
E minha mãe levantava,
Mas naquele dia ela não levantou.
Ele me disse que ela estava dormindo
E pediu para eu ficar quietinha
Que ele ia no orelhão dar uns telefonemas
E já voltava.
Esperei por mais de meia hora
E então ele voltou
Com todo o povo do terreiro
E com minha irmã e minha tia.
Ali me informaram que minha mãe
Havia falecido.
Os crentes vieram para a porta do terreiro
Exigir o corpo de minha mãe
Para ser enterrado pela igreja,
Mas Pai Francisco que era de Oxalá
Pareceu ter virado no setenta,
Foi la fora com uma faca peixeira na mão
E gritava que ele havia sido
Pai espiritual de minha mãe a vida toda
E que não ia abandonar ela agora,
Que quem quisesse pegar nela
Que passasse por cima dele.
Os crentes covardes foram embora
E então no terreiro fizeram velório
Junto com os ritos comuns da casa
E no dia seguinte enterraram minha mãe.
A minha memória registrou
Aquela última cena como uma fotografia,
O chão de piso de cimento queimado,
A esteira de palha e minha mãe deitada
Coberta pelo manto branco
Como se desfrutasse do mais pacífico
Dos sonhos.
Eu confesso que por muito tempo
Tive raiva de Iyansan e da religião,
Aos meus olhos de criança
Iyansan tinha matado minha mãe,
Tinha feito maldades com ela,
Porém assim mesmo
Guardei os fios de conta dela.
Então trinta anos se passaram
E um colega de trabalho me chamou
Para ir em uma festa na casa dele,
Ele era pai de santo.
Sem nem saber o porque
Aceitei e fui.
Cheguei lá e adivinhem o que era?
Sim, Festa de Iyansan.
A princípio fiquei muito incomodada
Pois ao olhar para aquele povo incorporado
Só me vinham más sensações.
Só que algo aconteceu,
Havia uma mulher incorporada
Ela era negra e usava uma roupa
Idêntica a da Iyansan de minha mãe,
Era rosa com as barras em crochê vermelho.
Fiquei embasbacada, a mulher
Dançou e dançou
Mas quando chegou perto de mim
Pareceu dar conta minha presença
E se aproximou.
Eu ja me tremendo meio de medo
Meio de expectativa
Observei o povo se afastar
Para dar espaço a ela
E Quando ela ficou cara a cara comigo
Ergueu a mão e tocou meu rosto,
Passou as pontas dos dedos desde a minha testa
Ate o queixo
Exatamente como minha mãe fazia.
Meu medo passou imediatamente
E fui tomada por uma emoção tão grande
Que cai ajoelhada e agarrada
Na saia de Iyansan chorei muito.
Quando me recuperei ela me deu
Um abraço e foi dançar,
So que no meio de tanta gente
Eu a perdi de vista
E ela desapareceu.
No fim da festa perguntei a meu amigo
Sobre aquela mulher que estava incorporada,
Descrevi como era e como
Estava vestida
Mas ele não sabia do que eu estava falando,
Me mostrou todas as pessoas
Que tinham vestido Orixá naquela noite
Mas nenhuma era ela
E ele disse que em nenhum momento
Durante a festa teve ali alguém
Como a pessoa que eu tinha visto.
Saí de lá muito abalada
Sem saber se estava feliz
Ou se estava triste,
Achei até que estava maluca.
Então me veio na cabeça
Ir ter uma conversa com aquela pessoa.
No dia seguinte trilhei aquela rua
E bati palmas diante daquele portão azul.
Um velhinho apoiado em uma bengala
Abriu a porta
E eu imediatamente o cumprimentei.
— Sua bênção pai Francisco.
Ele me encarou por um tempo
Mas logo me reconheceu
E abriu um largo sorriso.
Entrei, o terreiro já não existia mais,
Ele me disse que ja fazia uns anos
Que não tocava
Por estar muito velho.
Sentei naquele mesmo sofa que
Eu dormia quando menina,
E então perguntei.
— Pai, o que aconteceu naquela manhã?
Ele suspirou fundo
Ja sabendo de manhã eu falava
E me contou a história.
— Sua mãe estava doente, você sabe. Ela achou que Iyansan ia curar ela, e Iyansan realmente tem poder para curar qualquer doença, mas... as vezes os Orixás deixam que a vida siga um curso diferente do que se espera. Sua mãe passou a achar que foi o candomblé que fez ela adoecer, mas não é verdade, as pessoas ficam doentes independente da religião que tem, os crentes, católicos e os umbandistas também não ficam doentes?
— Ficam sim.
— Então... mas sua mãe ficou muito confusa com isso. Ela acabou largando o Orixá e indo para o lado dos crentes, ela largou Iyansan mas Iyansan não largou ela, Iyansan não abandona. Daí aconteceu aquela coisa triste...
— Iyansan trouxe ela pra morrer aqui não foi?
— Não minha filha, não, sua mãe morreu lá em Mairiporã. Assim que batizaram ela... sua mãe morreu pela doença avançada sabe, ela fez muito esforço pra ir até aquela lagoa e não aguentou.
— Mas... mas como assim?
— Quando sua mãe perdeu a vida Iyansan nao deixou ela cair lá no meio dos crentes, penso eu que Iyansan não queria ver sua mãe passar a humilhação de morrer no meio de gente que não gostava dela. Então ela tomou posse do corpo de sua mãe e trouxe até aqui.
— O que ela te disse na hora que cochichou no seu ouvido?
— Ah sim, você lembra disso? É... ela perguntou se eu podia dar um final digno ao corpo daquela filha dela, como não é comum morte entrar no terreiro ela me perguntou e me pediu licença. Eu fiz tudo o que pôde para dar a sua mãe um enterro digno.
— Sim, eu me lembro.
Pai Francisco me chamou para ir
Mais pra dentro da casa
E fui com ele até um quarto
Cheio de bacias de louça em prateleiras
Eram tantas que nem consegui contar.
— Veja lá, aquela no canto em cima do quartilhão.
Olhei e vi um tacho de cobre
Com varios pratos e coisas dentro
E em cima de tudo estava a Coroa
Da Iyansan de minha mãe.
É verdade que estava tudo
Meio torto e coberto por uma
Grossa camada de pó
Mas era sim a coroa que eu lembrava.
Pai francisco falou:
— Aquela é a Oyá de sua mãe, ia fazer cinquenta anos de santo esse mês se estivesse viva. Sua mãe era a minha rombona, a herdeira dessa casa, mas sem ela a casa vai acabar e tudo isso vai acabar no fundo de algum rio. Oxalá ja tinha dito que só Iyansan ia ocupar a cadeira dele na direção desta casa, mas sem Iyansan a casa vai morrer junto comigo.
Ao ouvir aquelas palavras dele
Meu coração se encheu de angustia.
Comecei a visitar Pai Francisco com
Bastante frequencia
A após o convencer com muita conversa
Ele me aceitou como filha.
Os anos passaram e
Hoje eu aqui estou segurando
Nas minhas mãos os fios de conta
Que um dia foram de minha mãe.
Iyansan era mãe dela mas também é minha.
Agora eu os colocarei no meu pescoço
Para misturar as miçangas velhas dela
Com as minhas novas
E vou descer as escadas
Para arrumar a casa e enfeitar o salão
Pois nesse sábado tem festa.
E lá vou eu por a mão na massa
Afinal desde que Pai Francisco faleceu
A Iyalorixa desta casa...
Sou eu.
Memórias de Terreiro, Arte e Texto por Felipe Caprini
Espero que tenham gostado!
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Minhas filhas já tinham ido
Para a escola,
Então antes de fazer qualquer coisa
Eu me entortei na cama
Enfiei o braço em baixo dela
E puxei aquela velha caixa de sapato.
Abri e peguei aqueles colares de miçanga,
A miçanga marrom ainda é vivida mesmo
Após mais de quarenta anos.
Aqueles fios de conta eram de minha mãe.
As minhas memórias eram de criança
Ir com minha mãe para o terreiro,
Ela era filha de Iyansan,
Parecia uma princesa quando a vestiam
Com aquela saia cor de rosa.
A festa varava a noite e eu acabava
Adormecendo em um sofa no fundo,
então na hora de ir embora ela me acordava
Com um carinho que sempre fazia,
Passava as pontas dos dedos desde a minha testa
Ate o queixo, e eu ria e abria os olhos.
Um dia minha mãe parou de ir ao terreiro,
Ela estava doente.
Hoje nós sabemos que foi câncer
Mas na época até essa palavra era banida
Então só dizíamos "ela não está boa".
Um dia ela parou de ir ao terreiro,
Uma vizinha crente enfiou na cabeça dela
Que a doença era culpa de ela ser macumbeira
E então ela dizia
"Você ja teve o azar de nascer preta, ser macumbeira já é demais".
E minha mãe que estava muito fragilizada
Foi dando ouvido aquele mulher ruim,
Foi se deixando levar.
Minha mãe era sozinha,
Viúva, tinha duas filhas pra criar
Trabalhando de doméstica.Um dia ela chegou em casa
Pegou as estátuas de santa Bárbara
E jogou tudo em um saco de lixo,
Juntou as roupas de santo
E atirou tudo fora.
Fomos juntas até o terreiro
E ela falou coisas muito feias
Para o Pai Francisco,
Eu não entendia aquilo
Pois ele sempre fora muito bom
Com a gente
Mas minha mãe o xingou
E atirou nele o saco com as roupas
E os cacos das estátuas.
Pai Francisco só olhava,
Não retrucou nada,
Deixou ela apontar o dedo
E gritar as grosserias que queria.
No meio da rusga minha mãe passou mal
E caiu desmaiada,
Pai Francisco a pegou e deixou em uma esteira
E rezou por ela.
Enquanto ela estava descordada
Ele me entregou um saquinho
Com os fios de conta dela
E pediu para eu guardar
Na minha lancheira.
Guardei e esqueci que estavam lá.
Quando minha mãe acordou
Falou mais umas grosseiras
Cuspiu no chão
E foi embora.
Dali por diante em casa só tinha bíblia
E joelho no chão,
E minha mãe rezando para ser curada.
Um ano se passou e minha mãe
Ficou cada vez mais doente,
O tratamento do hospital era mesmo que nada.
Ela decidiu então se batizar na igreja
Como uma última esperança de melhorar.
De madrugada os crentes a enfiaram
Em uma Kombi e levaram lá para Mairiporã
Eu nunca soube o que aconteceu lá
Pois de manhã eu estava indo comprar pão
Quando vi minha mãe descalça
Andando pela rua com os olhos fechados.
Fui até ela e perguntei o que acontecia
Mas ela não respondeu nada.
A segui reparando bem que os pés dela
Sangravam e que a roupa estava suja.
Chegamos na porta do terreiro
E minha mãe gritou alto
"OYÁ HEEEEEEEEEEY!"
E Pai Francisco abriu a porta assustado.
Ele olhou pra mim e perguntou
— Maria o que aconteceu com ela?
E eu contei que ela tinha ido se batizar
Mas que voltou assim.
Ele olhou para minha mãe e falou
— Iyansan, a senhora trouxe ela a pé desde Mairiporã?
E Iyansan acenou a cabeça
Dizendo que sim.
Pai Francisco pediu pra ela entrar
Mas ela não quis,
Ele então foi bem pertinho dela
E eu vi Iyansa cochichar algo no ouvido dele.
Pai Francisco ficou muito pálido
E com os olhos cheios de lágrimas
Mas respondeu.
— Claro que sim minha velha, aqui é sua casa, pode fazer isso aqui sim.
Iyansan entrou e girou quando
Passou pela porta.
No meio do salão
Pai Francisco ajeitou rápido uma esteira.
Iyansan passeou pela casa
Daquele jeito altivo com as mãos para trás.
Pai Francisco a levou para os fundos
Tirou as roupas sujas dela
A banhou e a vestiu com as roupas
De Santo que minha mãe tinha
Jogado lá no saco de lixo.
Iyansan veio até mim
Se abaixou e fez aquele mesmo carinho
Que minha mãe fazia,
Passou as pontas dos dedos desde a minha testa
Ate o queixo,
Me deu um abraço e depois
Deitou na esteira.
Foi então que Pai Francisco começou
A chorar muito,
Cobriu ela com um pano branco
Depois sacudiu o pano
E mesmo soluçando disse "Orixá Unló".
O pano caiu sobre ela novamente
E eu esperei minha mãe levantar.
Toda vez no fim das festas
Pai francisco ou a Ekeji Mariana faziam
Aquela coisa com o pano
E minha mãe levantava,
Mas naquele dia ela não levantou.
Ele me disse que ela estava dormindo
E pediu para eu ficar quietinha
Que ele ia no orelhão dar uns telefonemas
E já voltava.
Esperei por mais de meia hora
E então ele voltou
Com todo o povo do terreiro
E com minha irmã e minha tia.
Ali me informaram que minha mãe
Havia falecido.
Os crentes vieram para a porta do terreiro
Exigir o corpo de minha mãe
Para ser enterrado pela igreja,
Mas Pai Francisco que era de Oxalá
Pareceu ter virado no setenta,
Foi la fora com uma faca peixeira na mão
E gritava que ele havia sido
Pai espiritual de minha mãe a vida toda
E que não ia abandonar ela agora,
Que quem quisesse pegar nela
Que passasse por cima dele.
Os crentes covardes foram embora
E então no terreiro fizeram velório
Junto com os ritos comuns da casa
E no dia seguinte enterraram minha mãe.
A minha memória registrou
Aquela última cena como uma fotografia,
O chão de piso de cimento queimado,
A esteira de palha e minha mãe deitada
Coberta pelo manto branco
Como se desfrutasse do mais pacífico
Dos sonhos.
Eu confesso que por muito tempo
Tive raiva de Iyansan e da religião,
Aos meus olhos de criança
Iyansan tinha matado minha mãe,
Tinha feito maldades com ela,
Porém assim mesmo
Guardei os fios de conta dela.
Então trinta anos se passaram
E um colega de trabalho me chamou
Para ir em uma festa na casa dele,
Ele era pai de santo.
Sem nem saber o porque
Aceitei e fui.
Cheguei lá e adivinhem o que era?
Sim, Festa de Iyansan.
A princípio fiquei muito incomodada
Pois ao olhar para aquele povo incorporado
Só me vinham más sensações.
Só que algo aconteceu,
Havia uma mulher incorporada
Ela era negra e usava uma roupa
Idêntica a da Iyansan de minha mãe,
Era rosa com as barras em crochê vermelho.
Fiquei embasbacada, a mulher
Dançou e dançou
Mas quando chegou perto de mim
Pareceu dar conta minha presença
E se aproximou.
Eu ja me tremendo meio de medo
Meio de expectativa
Observei o povo se afastar
Para dar espaço a ela
E Quando ela ficou cara a cara comigo
Ergueu a mão e tocou meu rosto,
Passou as pontas dos dedos desde a minha testa
Ate o queixo
Exatamente como minha mãe fazia.
Meu medo passou imediatamente
E fui tomada por uma emoção tão grande
Que cai ajoelhada e agarrada
Na saia de Iyansan chorei muito.
Quando me recuperei ela me deu
Um abraço e foi dançar,
So que no meio de tanta gente
Eu a perdi de vista
E ela desapareceu.
No fim da festa perguntei a meu amigo
Sobre aquela mulher que estava incorporada,
Descrevi como era e como
Estava vestida
Mas ele não sabia do que eu estava falando,
Me mostrou todas as pessoas
Que tinham vestido Orixá naquela noite
Mas nenhuma era ela
E ele disse que em nenhum momento
Durante a festa teve ali alguém
Como a pessoa que eu tinha visto.
Saí de lá muito abalada
Sem saber se estava feliz
Ou se estava triste,
Achei até que estava maluca.
Então me veio na cabeça
Ir ter uma conversa com aquela pessoa.
No dia seguinte trilhei aquela rua
E bati palmas diante daquele portão azul.
Um velhinho apoiado em uma bengala
Abriu a porta
E eu imediatamente o cumprimentei.
— Sua bênção pai Francisco.
Ele me encarou por um tempo
Mas logo me reconheceu
E abriu um largo sorriso.
Entrei, o terreiro já não existia mais,
Ele me disse que ja fazia uns anos
Que não tocava
Por estar muito velho.
Sentei naquele mesmo sofa que
Eu dormia quando menina,
E então perguntei.
— Pai, o que aconteceu naquela manhã?
Ele suspirou fundo
Ja sabendo de manhã eu falava
E me contou a história.
— Sua mãe estava doente, você sabe. Ela achou que Iyansan ia curar ela, e Iyansan realmente tem poder para curar qualquer doença, mas... as vezes os Orixás deixam que a vida siga um curso diferente do que se espera. Sua mãe passou a achar que foi o candomblé que fez ela adoecer, mas não é verdade, as pessoas ficam doentes independente da religião que tem, os crentes, católicos e os umbandistas também não ficam doentes?
— Ficam sim.
— Então... mas sua mãe ficou muito confusa com isso. Ela acabou largando o Orixá e indo para o lado dos crentes, ela largou Iyansan mas Iyansan não largou ela, Iyansan não abandona. Daí aconteceu aquela coisa triste...
— Iyansan trouxe ela pra morrer aqui não foi?
— Não minha filha, não, sua mãe morreu lá em Mairiporã. Assim que batizaram ela... sua mãe morreu pela doença avançada sabe, ela fez muito esforço pra ir até aquela lagoa e não aguentou.
— Mas... mas como assim?
— Quando sua mãe perdeu a vida Iyansan nao deixou ela cair lá no meio dos crentes, penso eu que Iyansan não queria ver sua mãe passar a humilhação de morrer no meio de gente que não gostava dela. Então ela tomou posse do corpo de sua mãe e trouxe até aqui.
— O que ela te disse na hora que cochichou no seu ouvido?
— Ah sim, você lembra disso? É... ela perguntou se eu podia dar um final digno ao corpo daquela filha dela, como não é comum morte entrar no terreiro ela me perguntou e me pediu licença. Eu fiz tudo o que pôde para dar a sua mãe um enterro digno.
— Sim, eu me lembro.
Pai Francisco me chamou para ir
Mais pra dentro da casa
E fui com ele até um quarto
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Eram tantas que nem consegui contar.
— Veja lá, aquela no canto em cima do quartilhão.
Olhei e vi um tacho de cobre
Com varios pratos e coisas dentro
E em cima de tudo estava a Coroa
Da Iyansan de minha mãe.
É verdade que estava tudo
Meio torto e coberto por uma
Grossa camada de pó
Mas era sim a coroa que eu lembrava.
Pai francisco falou:
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Ao ouvir aquelas palavras dele
Meu coração se encheu de angustia.
Comecei a visitar Pai Francisco com
Bastante frequencia
A após o convencer com muita conversa
Ele me aceitou como filha.
Os anos passaram e
Hoje eu aqui estou segurando
Nas minhas mãos os fios de conta
Que um dia foram de minha mãe.
Iyansan era mãe dela mas também é minha.
Agora eu os colocarei no meu pescoço
Para misturar as miçangas velhas dela
Com as minhas novas
E vou descer as escadas
Para arrumar a casa e enfeitar o salão
Pois nesse sábado tem festa.
E lá vou eu por a mão na massa
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A Iyalorixa desta casa...
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Espero que tenham gostado!
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