A Face Negra da Terra - Parte II
CAPÍTULO XII
O PERIGO CÓSMICO
Bruno efetivamente viajara. Sorman, como sempre, na segunda-feira, estivera bastante ocupado a ponto de esquecer-se do Supremo e do que ele interinamente lhe outorgara. Na madrugada de terça-feira, porém, por volta das três horas, acordou sentando-se na cama. Via imagens do estúdio na Grande Casa onde pessoas o visitavam. Uma indefinível voz era também ouvida à distância. Anestesiado pelo sono não conseguia coordenar os pensamentos. Tinha se retirado do estúdio quase abruptamente e retornado à vigília, ou a quase isto. Uma lufada de ar frio proveniente da janela aberta fê-lo estremecer. A reação se deu em seguida: as imagens desapareceram. Ele então puxou o cobertor de sobre a cama nele se envolvendo. A voz voltou a ressoar na distância, mas era ininteligível ainda.
Procurou aquietar-se. Logo reconheceu a voz do Superior Mestre Terra: “Sorman, concentre-se no que vou lhe transmitir. Ondas de energia alcançarão nosso planeta dentro em pouco, procure vê-las, viaje no tempo.” Sorman obedeceu sentindo-se elevar e pervagou diversos níveis acima da Terra, perdendo a referência de tempo e espaço. Foi então projetado para outro espaço, de outra dimensão, e lá estacionou. Estava fora de qualquer condicionamento; parecia não possuir corpo, emoções ou mesmo intelecto. Começou a ver algo como uma nebulosa onde um vórtice girava. Desviando a atenção daquela formação pôde discernir, além dela, luminosos e distantes pontos que lhe pareceram estrelas, planetas e sóis, pertencentes a uma galáxia; algo como energia-matéria provinda daqueles corpos celestes, atraídos pela nebulosa. Desejou ver a nebulosa mais de perto e imediatamente ficou face a ela. O vórtice era gigantesco; o seu interior abarcaria milhares de planetas como a Terra. Girava incessantemente e amalgamava tudo o que recebia da galáxia. Produzia uma espécie de massa gasosa, indefinida, ainda informe, não sendo propriamente gás ou matéria. A energia em movimento era primária e avassaladora. Um ruído aterrador estrondava vorazmente. Energia e massa rapidamente se combinavam ganhando espaço e consistência; uma atuava na outra, e se fortaleciam!
Pequena turbulência fê-lo desconcentrar-se e as imagens perderam um quantum de sua clareza, mas ele se recuperou estabilizando-se na observação. Observou, então, algo mais definido naquele amálgama, que se transformava em energia-forma e rompia aquela consistência mista. A energia-forma passou a ser atraída para o centro do vórtice, depois subia e escapava pela periferia com a velocidade da luz, abrindo-se no espaço noturno num incomensurável leque a deslizar pelo éter indo alcançar sistemas solares a infinitas distâncias. Assustado, Sorman constatou-a chegar a planetas de nosso sistema solar; alguns planetas simplesmente a incorporavam, acontecendo neles rumores e convulsões. Como resultado, vulcões entravam em súbitas e violentas erupções, seguidas de maremotos e terremotos. Vendavais varriam as superfícies dos planetas. Outros orbes, possuindo cinturão magnético brilhante e poderoso, conseguiam rechaçar a energia intrusa, fazendo-a retornar para além de suas atmosferas. Em reação, a energia expulsa provocava tempestades cósmicas, chuvas de meteoritos, e envolvimento na atmosfera de massas gasosas altamente ionizadas, mas que eram definitivamente dissolvidas ou se incandesciam, desaparecendo após pequenas explosões.
Em seguida, ele viu a mesma energia-forma descer sobre a Terra, atuar sobre o cinturão magnético, rompê-lo em alguns pontos, grassar pela inteira superfície terrestre, e mergulhar depois para as profundezas do orbe. Ribombos de vozes em comemorações foram ouvidos. Hordas de seres escuros e malignos espalhavam-se dentre os povos das diferentes nações. Fortalecidos, alguns pareciam ter ressuscitado; grandes choques entre os homens começaram a trazer toda a sorte de instabilidade e conflitos pelo mundo!
De repente, tudo se apagou. Ao retornar à consciência, sua testa cobria-se de suor apesar do frio, e ouviu as últimas palavras do Superior Mestre Terra: “A Grande Face Negra conseguiu parte de seu intento; uma grande luta se configura, precisaremos tomar das armas”.
- Os resultados desta invasão poderão também provocar uma nova guerra mundial – dizia Sorman a Michel, na biblioteca do Salão de Conferências – as mesmas forças malignas fomentadoras da primeira e segunda grandes guerras, que continuaram a se incorporar nos governos totalitários da Europa e pelo mundo, espalhando terror e crueldade com seus exércitos ou milícias, se aproveitarão do caos para induzir nações a uma terceira ação global. A energia primária liberada de uma distante nebulosa, talvez num momento especial de configurações astrológicas negativas de uma galáxia, é habilmente aproveitada pelas forças negras. Elas dimensionam astronomicamente seu teor negativo, condicionando-o a produzir conteúdos favoráveis aos desfechos sobre planetas de diferentes sistemas solares, incluindo o nosso. É algo indescritível; são trilhões e trilhões de potência por fração de segundo viajando numa faixa do cosmos. É qualquer coisa aterradora!
Estava frio. Verônica, ao lado de Michel, encolhia-se na poltrona, conseguindo esconder as mãos dentro das mangas do pulôver e abraçava as pernas dobradas. Vestia calças e meias. Seu rosto, não obstante, estava afogueado. Michel, que esfregara a barba enquanto ouvia, nesse momento olhava para o chão enquanto roçava o indicador e o polegar da mão direita nos lábios, em rápidos movimentos.
- E como fazer para contê-los? - ela perguntou segundos depois, elevando o rosto ao interlocutor.
- Imagino que devamos fazer um esforço mundial, coordenado e constante, enquanto a energia estiver se precipitando, no sentido de tentarmos inverter a sua polaridade antes dela disseminar-se totalmente - explicou Sorman.
- Sim, talvez seja desta forma - assentiu Michel.
- Muitos iniciados não suportarão ainda este esforço, mesmo porque não têm mentes e corpos suficientemente treinados ou desenvolvidos - alertou Verônica.
- Penso exatamente assim e não poderia ser diferente. Precisamos fazer com urgência uma avaliação dos tipos psicológicos dos membros da hierarquia, afora seus principais representantes, para termos uma idéia de suas resistências nesse possível trabalho – Sorman olhou para cima e por segundos a consciência permeou-lhe os pensamentos. Em seguida voltou-se para Michel – diga-me Michel, como Terceiro Mestre Terra, alguma vez houve um esforço conjunto neste teor, iniciado em nossa célula, visando mobilizar outros núcleos para uma causa em comum?
- Não nos últimos séculos, muito menos neste período mundial de nossa manifestação.
- Segundo os registros de nossos arquivos – atalhou Verônica – houve alguma coisa neste sentido há pouco mais de dois mil anos, quando de pretérita manifestação cíclica de nossa célula. As condições eram diferentes; houve dificuldades em congraçar os esforços devido à animosidade entre os povos e visões fragmentárias da época sobre o mundo. As expressões raciais das civilizações produziram também os obstáculos. Foi necessário realizar grandes adaptações aos rituais praticados naquele momento a fim de que as energias produzidas pudessem ser canalizadas para o objetivo único. Aquele episódio trouxe grande desgaste para nossa célula, e despendemos algum tempo para nos recuperarmos, visto as trevas, então fortalecidas, obstaculizarem os esforços que intentávamos para o reequilibro. Isso ocorreu quando as forças negras remanescentes da Atlântida emergiram para devastar o planeta e sufocar a chegada de nova e revolucionária luz. Naqueles dias, o planeta sofreu grande risco, pois nem todos colaboraram, sobrecarregando àqueles que se expuseram à luta.
- Nem tudo foi vitória, pois não? - colocou Sorman, bastante interessado.
- De forma alguma. O resultado do dispêndio extra de energia para a ancoragem dessa luz exauriu também reservas de civilizações, embora a luz tenha se estabelecido pela ação perfeita do Cristo. Mas logo em seguida as trevas mergulharam na Terra para destruir o que se estabelecera, sendo iniciada uma era de escuridão, cujo véu somente há pouco veio ser rasgado apesar das grandes comoções mundiais ainda hoje verificadas.
- E o fato parece querer repetir-se, visto a luz de novo se espalhar pelo mundo - aduziu o Terceiro Mestre Terra.
- Exatamente, Michel, eis porque as trevas preparam esse ataque maciço - concordou Sorman.
Novamente em seu quarto Sorman procurava se comunicar com o Supremo, embora acreditasse que ele já estaria alertado do iminente perigo. Entretanto, a exemplo do sucedido na noite de sexta-feira, nada conseguiu. Usou então a alternativa de contatar o Superior, obtendo a seguinte resposta: “Não há outro caminho no momento. Precisaremos realizar tudo com a maior rapidez possível. Fique tranquilo, nossas estruturas já começam a agir.” Sorman estranhou a pouca objetividade desta mensagem, todavia nada mais tentou.
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Tomado de surpresa, ele se levantou detrás da mesa de Bruno, colocando-se ao lado. A porta se abrira; a figura amistosa do Irmão Supremo adentrou, seguida do Superior Mestre Terra. Seguiram-se a estes os dois Ministros da assessoria do Supremo. Trocaram sinais, o Supremo apontou para as cadeiras, vindo sentar-se na poltrona giratória há pouco ocupada pelo Ministro Extraordinário. Todos se acomodaram diante da mesa e do Supremo. O triângulo azul no interior do leitoso globo, sobre a pequena e lisa pedra negra na parede, refletia nesse momento nova luminosidade, pois à medida que mais pessoas ali haviam chegado, sua luz se intensificara. Por outro lado, a luz proveniente de um dos dois apliques ao alto da parede, cuja forma da lâmpada sugeria um bastão, jogava substancialmente maior claridade ao ambiente e não haveria qualquer dificuldade para ler-se ou escrever, se necessário. Os semblantes do Supremo e do Superior Mestre Terra revelavam intensa preocupação. Os assessores, ao contrário, pareciam não ter assimilado a gravidade do momento; até sorriram para Sorman na chegada.
- Sua intuição não o enganou, caro Ministro – iniciou Bruno olhando para Sorman – e ao assumir o cargo logo se depara com uma situação de iminente crise mundial.
Sorman, ladeado pelo Superior num dos extremos da mesa, meneou a cabeça em assentimento, lançando instintivo olhar para os Ministros no lado oposto. O sorriso comum nos rostos de ambos se desenhou uma vez mais e ele teve um estranho pressentimento. Bruno prosseguiu:
- Mendez me havia informado da esperada deflagração de forças negativas, mas solicitou-me tentar a confirmação através de um membro do escalão que absolutamente desconhecesse o assunto. Aliás, esta revelação foi mantida por nós em segredo. Autorizado por mim, ele providenciou os testes com os Mestres-Terra, no entanto nenhum deles conseguiu alcançar o plano futuro deste acontecimento arquetípico. Isto incluiu também aos meus dois assessores aqui presentes, posso agora revelar-lhes – os assessores se entreolharam meio de esguelha, surpreendidos por tal revelação – mas a grata surpresa revelou-se no mais novo dentre todos da hierarquia, e o derradeiro a ser testado, que nos trouxe com perfeita qualidade não somente a confirmação do que necessitávamos ouvir como também a ampliação do quadro com suficiente nitidez. - Bruno sorriu pela primeira vez. Era evidente a admiração quase paternal pelo jovem amigo. O Superior pousou a mão sobre a perna de Sorman como a parabenizá-lo, enquanto os ministros olhavam-no surpresos. Sorman, apesar de tomado por um sentimento de recíproca gratidão, nada falou. Bruno continuou: - A situação é apreensiva, motivo pelo qual aqui viemos em nossos corpos espirituais, deixando os equipamentos físicos noutras terras. Devemos aditar os procedimentos já iniciados pelo Superior. Mas ele próprio irá relatar-nos o que de concreto já elaborou.
- A situação é realmente de urgência, Mendez iniciou com seu sotaque espanhol, e consoante a idéia de montarmos uma forte oposição às forças negativas, já pudemos realizar contatos com mentores de outras células que imediatamente se colocaram à disposição para colaborar. Alguns desses mentores já tinham sido avisados sobre um acontecimento mundial a se materializar. Mas ignoravam quando e como os fatos tomariam corpo e espaço. Outros mentores de nada sabiam e embora tivessem desconfiado de nossa revelação, felizmente se puseram a pesquisar como podiam. Na realidade, este acontecimento ficou claro da maneira como sabemos, unicamente por nossa célula; isso com toda a certeza vem aumentar a nossa responsabilidade – ele fez um hiato na sua explanação, respirando profundamente, em seguida prosseguiu: - O que se pretende de maneira prática e objetiva é tentar uma sintonia com os iniciados mais adiantados de outras células a fim de formarmos elos conjuntos com o intuito de captar, tanto quanto possível, quantidades desta energia. Esse trabalho precisará ser realizado, inicialmente, pela incorporação da energia no corpo mental dos operadores, não se dando nas personalidades propriamente ditas, e sim num campo de força magnética por nós construído. À medida que isso venha se sucedendo, precisaremos ir fazendo respectivos descartes dessa energia para em seguida reenviá-la exatamente a um determinado ponto da Terra, onde, por sua vez, outros trabalhadores a estarão captando e realizando a inversão de sua polaridade. Isso feito, a energia “repolarizada”, digamos assim, precisará retornar aos níveis mentais da primeira equipe que a captou e a fez descer à Terra a fim de que, num trabalho de pura inteligência, seja relançada a níveis ainda mais superiores e depositada em reservatórios dos campos arquetípicos - ele fez proposital pausa, e Sorman se aproveitou:
- Diga-me, Sr. Mendez, com quantos membros de nossa célula o senhor espera contar?
- Com o maior número possível; isso compreende os chefes de departamentos e principais comandados que possuam o mental suficientemente treinado, e em condições de suportar tamanho embate.
- Então há riscos?
- Evidentemente sim. Se uma voltagem maior da energia com que estivermos tratando de manipular vier furar o bloqueio dos campos magnéticos onde trabalharemos, e nesse momento algum operador não mantiver a concentração perfeita, ela poderá descer através dos corpos de seu ego para o plano terra provocando-lhes intensos choques e violentos impactos. Por isto, todo cuidado é pouco! Já solicitei...
Suave silvo eletrônico percorreu o estúdio interrompendo a explanação do Superior; uma luz verde sobre a porta passou a oscilar, assim permanecendo. Bruno elevou o olhar para o ponto de luz nele se concentrando, e a luz verde se apagou. Um fraco, porém audível estalido aconteceu e a porta abriu-se numa pequena fresta. Os quatro automaticamente volveram os rostos para trás vendo Michel adentrar, acompanhado de dois homens. Vestiam uniformes brancos como todos, e ostentavam no peito o símbolo externo da irmandade. Os três fizeram idêntico sinal, que não era o mesmo dos chefes da hierarquia, apesar de Michel ser um Mestre Terra, e todos responderam. O motivo de tal sinal inferior prendia-se ao fato de os superiores não poderem saudar subordinados com o mesmo sinal de seus escalões. Assim, sempre que reconhecidamente houvesse num encontro membros subordinados misturados aos Mestres Terra, ou ainda pertencentes aos setores agregados ou aos diversos níveis inferiores da hierarquia, o sinal comum seria aquele geral e padronizado, como aqui acontecido. A exata identificação de um membro, numa ocasião qualquer, se isso fosse necessário, aconteceria através de uma sequência de sinais interrogatórios, que tanto um quanto outro precisaria ir rapidamente respondendo, até chegarem aos seus exatos posicionamentos nos escalões da hierarquia.
- Ainda bem que chegou a tempo, Michel, já não o esperava mais - falou Bruno.
- Queira perdoar-me, Bruno, mas problemas obrigaram-me a permanecer em vigília em nossa sede.
- Que tipos de problemas?
- Uma falange de desordeiros do astral se apoderou dos veículos de alguns desocupados, estimulando-os a invadir a nossa propriedade. Tive de providenciar alguns reforços para ajudar os nossos guardiões, além de chamar a polícia local para afugentar os desocupados.
Bruno virou-se ligeiramente para a janela quase às suas costas, cuja vidraça de um matiz misto e cambiante para o lilás, encontrava-se fechada. No lado de fora, as sombras noturnas nada deixavam entrever. Seus olhos, no entanto, perscrutaram o negro éter, como se estivesse lendo a página de um livro. Segundos após, ele voltou-se novamente para Michel.
- A situação está realmente controlada, pude constatar. São duas horas e dezesseis minutos nesta madrugada em nossa cidade. Michel sorriu largamente e de novo explicou:
- Somente pude captar sua mensagem de convocação ao ter-me projetado para cima, depois da certeza do problema estar praticamente resolvido em nossa propriedade. Mas fiquei surpreso por saber de sua volta, Supremo.
- Em parte, Michel, pois viajei unicamente pelo espaço. Mas sentem-se, estamos ouvindo a explanação de Mendez.
Eles se acomodaram na poltrona em um dos cantos do estúdio e aguardaram. O Superior então retomou a palavra fazendo breve resumo do que antes houvera falado, retornando ao exato ponto onde fora interrompido:
- Já solicitei a alguns dos Mestres Terra selecionar aqueles em condições para o trabalho. Após essa seleção, iremos realizar os testes. Como sabem, há também iniciados formando grupos destacados, dirigidos ou supervisionados por Mestres Terra que, no entanto, trabalham sem vínculo ou subordinação direta aos departamentos da hierarquia. Todos esses membros estarão sendo requisitados para comparecer às reuniões extraordinárias de seus núcleos e perguntados se desejam colaborar. Aqueles dispostos a tal serão trazidos para este plano onde agora nos encontramos, a locais onde serão devidamente testados. Estamos, entretanto, face a uma dificuldade. Nem todos os Mestres Terra têm a possibilidade de realizar esses testes na proporção e profundidade necessárias. Na realidade, além do Supremo e eu, somente dois outros Mestres Terra neste exato instante estão habilitados a levar a cabo esse intento. Um deles é Stefany, na Europa, o outro é Magashi, no Oriente. Mas é possível a outro hierárquico formar um quinto operador, o que precisaremos antes verificar. A propósito, a pedido do Supremo, Michel trouxe-nos dois de seus ordenanças, a quem já conhecemos de outras diferentes jornadas, a fim de realizarmos com eles os testes iniciais – ele olhou para Michel e seus acompanhantes, mostrando breve sorriso de agradecimento – gostaria de iniciarmos desde logo – dizendo isso, virou-se para o Supremo que somente meneou a cabeça em assentimento. Ele, em seguida, levantou e se dirigiu para a poltrona onde os três se encontravam, apontando aleatoriamente para um deles – comecemos por André – então olhou para trás – venham, aproximem-se! - eles todos se acercaram da poltrona. Michel e o outro, a pedido de Mendez, se levantaram.
- Sorman, pediu-lhe o Superior, sente-se ao lado de André a certa distância e apoie levemente uma das mãos no ombro dele. Sorman atendeu ao pedido. André, um rapaz de aproximadamente quarenta anos, claro e loiro, encontrava-se absolutamente tranquilo diante de tudo.
- André, relaxe completamente, deixe-me conduzi-lo ao seu ego mental - induziu-o Mendez. André fechou os olhos e em poucos segundos caiu em profundo sono. Mendez olhou para Sorman e falou-lhe murmurando: - siga-o! Sorman cerrou os olhos procurando realizar mentalmente a ordem recebida.
André passou a mover a cabeça de um lado a outro, permanecendo depois absolutamente imóvel. O Superior então fechou os olhos, dirigindo-se a Sorman:
- Diga, meu filho, o que você vê no corpo mental de nosso irmão? Sorman inspirou mais profundamente e falou:
- Vejo forte luminosidade azul, irradiada por seu chackra frontal e uma luz clara emergindo de seu coronário; vejo formas e símbolos esotéricos nitidamente constituídos na contextura deste corpo, com estrias coloridas envolvendo toda a sua aura.
- Perfeito. Pode ver se existe algum ponto sensível ou de matéria fracamente constituída?
- Não existe. Seu mental concreto é harmonioso e bem constituído.
- Muito bom. Tratemos agora de outro tipo de observação. Vamos buscar o nível causal de nosso irmão. Suba mais e coloque o centro de sua atenção no corpo egóico de André.
- Sim..., já cheguei lá.
- Descreva-o.
- Brilhante, luminoso. Mas somente vejo a primeira carreira de pétalas totalmente aberta – a mais exterior delas. A segunda carreira está com duas pétalas por abrir-se, e uma semiaberta, ao passo que a terceira carreira, a mais interior, possui somente uma pétala em início de preparação.
- Mais adiante, o que percebe? Sorman fez uma pausa e decorridos alguns segundos comentou:
- Uma luz clara à distância, somente isto.
Mendez meneou suavemente a cabeça; um breve sorriso se desenhou em seus lábios. Em seguida, com voz calma e tranquila, induziu André a despertar, solicitando a Sorman retirar a mão de seu ombro. Bruno voltara à mesa e fazia anotações numa agenda azul de capa almofadada, estampada por uma figura semelhante a uma chama grená envolvendo a um disco dourado. No interior do disco aparecia um caractere cabalístico negro.
O Superior convocou então o segundo ordenança, de nome Olaf, também claro, porém de cabelos castanhos, a fim de se submeter a semelhante teste. Enquanto isso, Bruno prosseguia em suas anotações. Mais adiante, o Supremo liberou os dois ordenanças que imediatamente deixaram o estúdio, e perguntou:
- Sorman, como você avaliaria as condições destes dois irmãos em participar da corrente? Sorman coçou o queixo olhando para o chão entregando-se a rápidas reflexões. Finalmente se manifestou.
- Acredito que a matéria mental de ambos terá condições de suportar certa voltagem da corrente, mas não sei exatamente quanto. Parece-me poderem constituir formação numa segunda ou terceira linha de receptores para trabalhar a energia provinda da linha anterior, após o impacto inicial já ter sido absorvido. Creio ser esta uma das estratégias para manobrar a energia na Terra, segundo pude perceber da idéia passada pelo Superior.
- Ora, viva! - comemorou Mendez - sua observação final penetrou minhas silenciosas conjeturas.
- É mesmo!? - surpreendeu-se o jovem. Bruno riu, soltando a caneta sobre a mesa, se recostando no espaldar da cadeira.
- Doravante precisarei ter mais cuidado com os meus pensamentos, mediante sua perspicácia - disse Mendez em tom irônico.
- Superior, segundo suponho poderemos contar com meus dois ordenanças para o trabalho? - perguntou Michel da poltrona, ladeado pelos Ministros Assessores de Bruno.
- Sim, evidentemente. Mas precisaremos antes coordenar tudo a fim de constituirmos as equipes, sintonizando-as com os representantes de outras células também perfilados.
- Quanto a constituirmos nossas equipes, isso será feito nos próximos dias – aduziu o Supremo – creio mesmo precisarmos realizar simultâneas etapas, pois não podemos perder tempo. A propósito, meus dois assessores se aproximem para urgentes providências.
Os dias que se sucederam foram de intenso trabalho na vida da irmandade. Em cumprimento ao plano de emergência elaborado por Bruno, aprovado em reunião extraordinária, três membros da hierarquia viajariam a locais específicos a fim de se entrevistar com mentores de outros núcleos. Haviam feito uma seleção de núcleos e organizações em países a serem visitados, para os quais valeria a pena um esforço de adesão. O Supremo tomou para si uma parte dessa tarefa, permanecendo pela Europa; o Superior prosseguiu naquilo que já houvera iniciado nas Américas tendo sinalizado com boas perspectivas de resultados; finalmente Magashi, o Quarto Mestre Terra, ficara incumbido de viajar ao Oriente Médio e Ásia.
Durante o período das visitas, e conforme Mendez inicialmente antecipara, outro necessário trabalho vinha paralelamente acontecendo nos estúdios da irmandade, em plano superior. Na Europa, ele e Stefany tomavam a cargo a seleção dos iniciados em condições de compor as fileiras. Os testes eram realizados nas madrugadas enquanto, oportunamente, os veículos físicos, na sua maioria, estivessem descansando. Um a um os membros irmãos vinham visitá-los e fichas individuais eram confeccionadas. Sob esse mesmo prisma, o Superior coordenava com seus colaboradores o mecanismo da fase inicial de seleção, realizando depois os necessários testes. O trabalho abarcava a América Central e a do Norte. A Magashi couberam o Oriente Médio e Ásia, ou seja, as mesmas áreas por onde vinha fazendo as visitas. Com a permissão do Supremo, Mendez veio entregar a Sorman a missão de trabalhar com os candidatos da América do Sul, sob a sua supervisão, e isto causou ao jovem surpresa:
- É uma grande responsabilidade colocada em minhas mãos, senhor Mendez, embora saiba realizar o trabalho e não o tema.
- Graças a esta autoconfiança fico despreocupado quanto ao solicitado. Na verdade, havia em mim somente resquícios de preocupações de que você temeria a responsabilidade. Assim mesmo me é necessária sua confirmação - afirmou o Superior, acentuando mais fortemente as palavras com sotaque espanhol.
- É uma honra servir nossa irmandade e ao mundo sob a direção de tão insigne mandatário. É claro que aceito com prazer, apesar de possíveis riscos.
- Há riscos que valem a pena correr-se, meu caro Sorman. Ademais, nada coexiste com absoluta infalibilidade; tudo, afinal, são propostas, e, nesta empreitada que assumimos, não há tempo para recuarmos.
Sorman começou imediatamente a se organizar visando à execução das tarefas confiadas. Pediu a Michel liberar Verônica a fim de que viesse coordenar a apresentação dos candidatos, bem como elaborar as fichas de arquivo. Michel consultou-a e Verônica exultou ante o convite. O Terceiro Mestre Terra providenciou então uma substituta para Verônica em seu departamento, assumindo cumulativamente algumas funções por ela realizadas e no momento impreteríveis.
Em reunião com outros irmãos colaboradores, Sorman estabeleceu as responsabilidades de cada um, pedindo-lhes o máximo empenho. Os efeitos desse trabalho logo começariam a se fazer sentir de maneira extraordinária na Grande Casa dos Estúdios e Câmaras da Hierarquia. Nova dinâmica impregnava a atmosfera. As salas e corredores da ala em que trabalhavam passaram a palco de entra-e-sai permanente; de apresentações e rápidas entrevistas. A biblioteca fora transformada provisoriamente em escritório. Verônica adaptara o ambiente, transportando para lá pequenas mesas bem como o computador e aparelhos com acessórios, a fim de poder manufaturar as fichas e elaborar relatórios. Nessas funções, organizava os formulários de fichas que depois de preliminarmente preenchidos por ela, seriam antecipados a Sorman antes da chamada dos candidatos ao estúdio para as entrevistas. Os dados, ela os obtinha com certa antecedência dos principais assessores do Terceiro Mestre Terra, após triagem realizada com ele no seu departamento. Algumas dessas informações a serem passadas a Verônica, chegavam antes ao Terceiro Mestre Terra, também por intermédio de assessores extraordinários do Superior, que com ele trabalhavam há longo tempo. Esses colaboradores anônimos, não possuíam nenhum vínculo direto com o organograma geral da hierarquia, mas eram iniciados de diversos graus. Os candidatos por eles recomendados eram irmãos residentes na América do Sul, e, para a finalidade pesquisada, já teriam cumprido com o primeiro requisito. Mas caberia a Sorman definir, de maneira objetiva, de suas aprovações ou não: decisões essas não questionadas pelo próprio Superior.
As atribuições de Verônica estavam também divididas com outra senhora, trazida por ela do departamento de Michel para auxiliá-la. Sorman, ocupando o estúdio de Bruno, examinava as fichas enviadas por Verônica, procurando desde logo conhecer um pouco do campo vibratório de cada um dos iniciados apresentados. Tinha elaborado classificadores codificados, constituídos por letras, símbolos e números, aos quais somente ele e Verônica saberiam decifrar. Tendo feito a inicial leitura de uma ficha de um iniciado, por exemplo, ele realizava desdobramento mental e rumava espiritualmente para os arquivos etéricos ocultos da irmandade, numa de suas câmaras – conforme ensinara Bruno – lá obtendo da réplica do ego do candidato a sua situação no momento. Tendo retornado à consciência objetiva, lançava numa área específica da ficha, a classificação mais adequada. Havia uma ordem de chegada desses irmãos preliminarmente selecionados no agendamento de Verônica. Havia a necessidade de estabelecer dias e horários das apresentações, a fim de que o trabalho pudesse render adequadamente e não viesse existir sobrecargas, além daquelas conscientemente assumidas. Essa maneira de organizar evitaria também congestionamentos nos corredores e salas, demoras indevidas ou impaciência.
A partir do momento em que o primeiro candidato na madrugada fosse encaminhado ao estúdio para os testes, Verônica transferiria todas as suas funções na biblioteca para a outra colaboradora, dirigindo-se ao estúdio, passando a partir daí a assessorar diretamente Sorman. Faria então o acompanhamento completo durante toda a sessão, anotando tudo o que lhe era ditado. Ao final, colocaria em destaque na ficha do entrevistado o código, segundo uma das classificações determinadas por Sorman – traduzindo sua aprovação ou não bem como definiria adicionalmente a situação vibratória do entrevistado naquele momento – e o conduziria gentilmente até a porta, introduzindo um novo irmão ao estúdio.
Interessante e importante, por outro lado, era o trabalho do pessoal de apoio extra estúdio e Grande Casa. Nesse particular, as equipes se distribuíam em regiões, cidades e países. O ponto central onde os candidatos seriam embarcados em pequenas naves – quer nessa metrópole, em outra qualquer ou num determinado país – era justamente o respectivo núcleo da irmandade onde costumavam reunir-se. No local, seus superiores já teriam recebido com tempo hábil todo o agendamento de Verônica e realizado as convocações para as viagens – normalmente em grupos – com destino a Grande Casa. Assim, nessa situação, em dias e horários combinados, eles ali estariam aguardando.
Mas o movimento não se prendia exclusivamente ao transporte dos candidatos na ida e volta de seus domicílios. O trabalho com eles, administrado pelos superiores, ia mais além dessas organizadas providências. Iniciados avançados em seus respectivos núcleos, possuidores de força mental e com assistência de grupos no astral, buscavam antes realizar os preparativos no sentido de afastar das mentes dos candidatos toda a sorte de preocupações, aborrecimento ou mal estar. Despendiam tempo e labor junto às áreas das atividades profissionais ou domésticas desses protegidos, no mister de trazer-lhes tranquilidade, procurando obstar as sugestões malignas dos mundos inferiores.
Certas responsabilidades com que os candidatos deveriam incumbir-se nos setores de suas vidas, ao exercício comum do cotidiano – mas que neste momento viessem trazer-lhes instabilidade emocional ou tensões – eram moldadas de forma a se atenuar, atrair inesperadas ajudas ou mesmo ser adiadas. A saúde física era também tratada com diligência e especial ênfase; os candidatos recebiam forte estímulo de energia através de seus corpos etéricos, facultando-lhes obter novas e especiais reservas tonificantes. Havia, da mesma forma, a preocupação de evitar-se a incursão de qualquer ser destruidor, aéreo ou terrestre, sobre seus veículos físicos e espirituais, justamente pela responsabilidade nesse momento assumida perante eles pela irmandade. Dessa maneira, guardiões eram destacados para acompanhá-los durante todo o dia como também para permanecer em suas residências, especialmente às madrugadas. Mesmo após um candidato ter sido aprovado por Sorman, os guardiões continuariam em seus postos, noite e dia, com esta intensa vigilância.
Um fato acontecido com uma nave, transportando cinco candidatos de um determinado país para a Grande Casa, onde seriam realizados os testes, veio demonstrar que os cuidados tomados realmente procediam, não sendo de forma alguma exagerados. Um forte campo de força estancou a nave no ar em sua trajetória, provocando-lhe a descida e pouso forçado em solo arenoso de uma região inóspita, sendo imediatamente atacada por enormes e horrendos animais e poderosos seres satanizados. O destacamento não pode sair para combatê-los por que eram poucos contra tantos inimigos. Todavia, enquanto a nave fora retida no ar pelo campo de força inimigo, o piloto enviara mensagem de socorro para seu núcleo, reforçando-a do solo quando já começavam a ser atacados. Logo lhes chegou ajuda numa nave-tarefa, trazendo muitos soldados. Essa nave, antes de aterrissar, lançou chamas e raios de energia contra os atacantes, causando entre eles muitas baixas. Em seguida, começou a batalha campal e ao cabo de alguns minutos os inimigos fugiram dispersos.
A nave atacada sofreu grandes danos, por pouco não sendo invadida. Os inimigos quebraram os vidros de todas as janelas, sem, entretanto, poder entrar devido às proteções internas que elas possuíam, consistindo de barras acionadas pelo piloto, através de um mecanismo instalado nas próprias janelas. Mas jogaram para dentro fumaça tóxica, por uma espécie de lançadores parecidos com rudimentares extintores. Os tripulantes e demais passageiros, foram obrigados a vestir às pressas as vestes especiais com máscaras, evitando desse modo respirar a fumaça. A porta principal da nave foi abalroada por aríetes de ferro, sofrendo amassaduras e perfurações, por pouco não sendo arrombada. Muitos blocos de pedra foram jogados sobre o teto da nave e no seu bojo. O anel magnético não pôde ser acionado porque fora também paralisado pelo campo de força inimigo, ficando a nave vulnerável. As mensagens só puderam ser enviadas através de um canal comunicador secreto, mas felizmente o socorro chegara a tempo.
Tamanho foi o estrago produzido por esse selvagem ataque que o pessoal de bordo precisou ser transferido para a nave-tarefa a fim de retornar à base, enquanto uma nave-reboque chegava para atrelar aquela danificada, levando-a para suas oficinas. Nessa noite, as entrevistas com os cinco candidatos tiveram de ser canceladas por que eles haviam ficado nervosos ou tensos, e por certo teriam dificuldade em se concentrar. De certa forma os malignos haviam conseguido o seu intento, pois atrapalharam o andamento dos serviços.
O fato relatado a Sorman suscitou-lhe reflexões e conclusões. O ataque não fora algo gratuito ou acidental. Provava que as forças negativas do planeta já sabiam da chegada da energia primária e dos preparativos da irmandade e de outros núcleos, a fim de contê-la. Seria também possível que de sua ancoragem – apesar de todos os esforços planejados para atenuar os consequentes efeitos devastadores – a energia conseguisse tornar a irmandade das trevas muito mais poderosa do que os seus próprios membros supunham. E com os inevitáveis conflitos, sucessões de lutas e aberrações, mais ainda a confraria negra viria se fortalecer.
Recostado ao espaldar da poltrona detrás da mesa de Bruno, ele sentiu o corpo tremer ante esta conjetura. Rápido calor subiu-lhe ao rosto como há muito não sentia; seus olhos se apertaram, demonstrando certa tensão. “Relaxe, irmão, não deixe essa possibilidade, embora viável, desencorajá-lo. Trabalhe até os limites permitidos por suas forças. Também obteremos vitórias!” A voz de Mendez fez-se ouvir em sua mente pela primeira vez desde que assumira as novas funções. “Obrigado, Superior, irei superar!”
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Entre um e outro atendimento, Verônica fora chamada pela auxiliar a receber uma visita de um membro da hierarquia que lhe requisitava a presença. Dirigiu-se à sala de recepções e minutos depois abria a porta do estúdio onde Sorman fazia anotações à mesa, anunciando-lhe a visita, retirando-se em seguida. Sorman surpreendeu-se ao ver um dos Ministros Assessores com fisionomia fechada, a saudá-lo com o sinal comum e geral, dispensando a oferta de sentar-se.
- Venho a mando do Irmão Supremo, não devendo demorar-me. - disse em tom oficial.
- Muito bem, o que me envia Bruno? - perguntou Sorman, após responder ao sinal e levantar-se.
O Ministro Assessor trouxe adiante a pasta branca feita de material plástico leve, não totalmente maleável, e pousou o indicador sobre a estreita cinta azul sobreposta à face externa, deslizando-o à inteira extensão, provocando a libertação deste tipo de fecho. A seguir, abriu amplamente a pasta e dentre algumas folhas de seu interior retirou um largo envelope roxo, de material idêntico a uma película plástica resistente, estendendo-o a Sorman. O Ministro Extraordinário, ainda em pé, tomou-o, rompendo a estria pontilhada e retirou de seu interior uma folha de papel fibrosa com característica muito especial e incomum. A folha possuía feitura tramada em minúsculas e compridas ramas, em vários tons beges, que resultavam em suave e harmonioso contraste. Ao ser sacada da embalagem protetora – que propiciava sigilo ao seu conteúdo – a folha enrolou-se em canudo formando um pergaminho, deixando à mostra, no lado de fora, um pequeno selo azul com o símbolo secreto da Fraternidade Irmãos Atlantes.
- É um documento secreto enviado pelo Irmão Supremo - informou-o desnecessariamente o Ministro Assessor, ainda com fisionomia cerrada. Sorman parou a observá-lo. O Ministro embaraçou-se e logo perguntou - devo aguardar?
Sorman tomou a folha como estava e encostou uma de suas extremidades à testa fechando os olhos. Permaneceu assim por alguns segundos, sob a curiosa observação do emissário; depois abriu os olhos, colocando a folha sobre a mesa, sem a desenrolar, sentando-se.
- O assunto aqui tratado não necessita de resposta imediata. É suficiente você dizer a Bruno que me entregou a mensagem. Alguma coisa a mais?
O Ministro Assessor pareceu despertar de um leve transe trazendo a pasta adiante, percorrendo novamente o indicador sobre a estreita cinta azul, selando-a.
- Nada mais! – respondeu repetindo o sinal e se retirando.
O episódio trouxe certo desconforto a Sorman. Ele se levantou encaminhando-se para a janela, olhando o escurecido céu. Uma sombra desceu sobre seu rosto, mas ele não desejou entrar em reflexões. Voltando à mesa tomou novamente a folha e a desenrolou. Tratava-se das coordenadas de um plano de Bruno acerca dos preparativos de uma das fases do trabalho já iniciado. As coordenadas mostravam símbolos sobrepostos em três níveis, a indicar diversos teores de campos de forças magnéticas. Havia identificações com siglas e cores, ligadas aos símbolos, correlatas às qualidades da energia com que dimensionariam os campos magnéticos a construir-se, e seus respectivos posicionamentos. Os três níveis representados pelos símbolos especialmente destacados nas linhas coordenadas, relacionavam-se mutuamente por setas negras em descida de um lado, e por outras idênticas, brancas, em subida de outro lado. Sorman memorizou cada detalhe daquele mapa; depois soltou a folha que novamente virou pergaminho, e selou-a com o mesmo selo azul, guardando-a numa das gavetas. Nesse exato instante Verônica reentrou no estúdio, perguntando-lhe:
- Posso introduzir um novo candidato? Ao assentimento do Ministro Extraordinário ela o conduziu até a poltrona a um canto da sala e o convidou a sentar-se.
CAPÍTULO XIII
A GENESIS DA GRANDE FACE NEGRA
Um poder viajando através do espaço, deixava atrás de si o permanente rastro de sua presença. Um som semelhante a uma avalanche acompanhava aquele poder, mas era algo grotesco, jamais ouvido, que se encaminhava pelo ar como rolasse adiante de um dilúvio em permanente e incontida expansão. Havia intensa escuridão, no entanto era possível discernir o progresso do poder. Em certo instante, Sorman deteve a impressão de o avassalador som e o sensorial poder estarem amalgamados numa só ação, e deslizarem por uma inconcebível esteira no fenomenal espaço de um vasto, profundo e insondável oceano etéreo. Até então, ele ficara preso àquelas imagens que, apesar de imensuráveis, cabiam num monumental plano cartesiano; mas de repente, sentiu um deslocamento e trasladou de seu horizonte de observação para outra dimensão, muito acima daquelas voluptuosas e verdadeiramente indescritíveis projeções. E nessa nova situação no universo, num ponto qualquer fora do espaço-tempo, voltou a contemplar a aterradora e fantástica figura.
A incomensurável Face Negra ocupava agora todo o espaço alcançado pelo campo visual de Sorman. Perplexo, ele tentou desviar-se da imagem; buscou uma brecha por onde pudesse concentrar sua atenção a fim de escapar da visão, mas a falta de outra qualquer referência, por menor que fosse, trouxe-o inexoravelmente de volta para a total contemplação. Era tão gigantesca a aparição – segundo podia supor pela astronômica projeção – que conteria a todos os átomos de uma existência cósmica, em todos os seus mundos de enigmáticas e simultâneas dimensões.
Mas ao invés de pavor, como na primeira visão de muitos meses atrás, Sorman petrificava. Algo congelara-lhe todas as reações; somente o sentido interior da visão e o da audição passaram a agir-lhe como as únicas coisas vivas. Nessa nova e inusitada condição, podia então observar que a descomunal e infinita Face Negra estava de olhos fechados, e soprava. O avassalador som, antes ouvido, sendo exatamente o mesmo agora percebido através de seus lábios entreabertos, trazia consigo o poder que de inicio ele acusara. Ela soprava por um tempo de sensação interminável, e o som e o poder juntos, eram sustentados e lançados para distâncias inimagináveis, muitíssimo além de tudo quanto a mente finita poderia suspeitar ou conjeturar. E quando aquele alento terminou, a boca falou lenta e prolongadamente, com voz rouca e grave, à semelhança de esdrúxulo e abismal ruído resultante do atrito de muitos metais pesados: FAAAÇAAA-SEEE!
A boca permaneceu aberta; imediatamente partiram dela milhões de formas negras que eram atravessadas por dois grandes raios ígneos provenientes de seus olhos. As formas não incandesciam. Eletrificavam! Tornavam-se transparentes véus ampliados elasticamente a cobrir todos os espaços por onde o poder e o som haviam antes propagado. Ao cabo de algum tempo, enquanto perdurara a percepção dessas últimas imagens, a Face vestira sorriso sarcástico e diabólico, ficando seus olhos apertados e repuxados. Em seguida, a forma total passou a menos densa, cada vez mais etérea, até desmanchar completamente, vindo se transformar numa infinita película negra de sutilíssima tessitura, finalmente pousando sobre todas aquelas coisas infundidas no universo, permeando-as como água jogada sobre a areia, nelas permanecendo.
Ao acordar, Sorman estava trêmulo. Impressões, em sucessões, impregnavam-lhe o cérebro. Mediante a incapacidade de mentalmente controlar o emocional, ele se levantou um tanto atordoado, indo ao banheiro a fim de tomar uma ducha. Reagiu bem, e enquanto se vestia, trouxe uma das mãos adiante do ventre examinando-a no dorso e dedos. Estava absolutamente firme, muito embora ainda lhe percorresse um leve tremor por todo o corpo, semelhante a rápidas descargas elétricas.
CAPÍTULO XIV
JAVAN
Havia a necessidade de os diretores da empresa viajarem para a Europa e América do Norte com a finalidade de tratar de assuntos ligados às áreas financeira e comercial. Uma conceituada companhia de âmbito internacional mostrara acentuado interesse em representar na Europa os produtos exportados daqui. Teriam de conversar sobre os termos dessa representação; das vantagens da exclusividade ou não; dos percentuais comissionados; da produção, demanda e tudo mais. Alguns clientes precisavam ser visitados nestes dois continentes; enfim, muitos assuntos de comércio exterior tinham acumulado, fazendo-se um tanto urgente resolver essas pendências. Eduardo desejava realizar as gestões de uma só vez e proporcionar ao filho a experiência que ele ainda não possuía. Noutras ocasiões, Sorman relutara em viajar, declinando das oportunidades, mas neste momento o quadro era outro e tornava-se imprescindível, como vice-presidente e diretor de produção e marketing, que viajasse.
Sem outros argumentos, não tendo como contrapor aos fatos, ele capitulou. Pediu ao pai dez dias de prazo, sob a alegação principal de dar andamento a alguns assuntos já iniciados, bem como complementar outros. Na realidade, tocava-o a intuição de precisar equacionar melhor os assuntos da irmandade, ante a perspectiva do acontecimento mundial.
Bruno viajara exatamente para a Europa. Sorman julgava oportuno, nesse instante, reunirem-se para idealizar no plano terra, os mecanismos de contra-ataque. Essa aspiração vinha ao encontro da proposta de sua viagem, e não seriam ambos os fatos propositalmente arranjados? A despeito dessa ilação, sabia muito bem que se viajasse de outras terras para a Grande Casa em corpo astral-mental, realizando aqui tudo o que fosse necessário em relação a essa emergente situação, precisaria superar alguns problemas. Haveria excessivo desgaste em decorrência da distância onde deixaria seu corpo físico, e a isso se somaria a incômoda expectativa de, em caso de urgência, numa possível situação envolvendo o corpo físico, precisar largar tudo o que estivesse fazendo e rapidamente retornar. Ao contrário desse incômodo, as presenças etérica e astral estando nas cercanias do corpo físico, lhe proporcionariam, praticamente, tocar a matéria tridimensional sem excessiva perda de energia, diminuindo as chances das trevas de realizar uma incursão ao seu corpo físico. Ademais, estando todos os veículos do ego alinhados, os resultados físicos seriam bem mais rápidos e palpáveis. Por tudo isso, era bem mais interessante estar aqui. Conclusão: nesse momento queria mesmo apressar as providências a fim de despender o mínimo possível de energia em futuras viagens espirituais para a Grande Casa, enquanto estivesse fora do país.
Mas a despeito de tudo, não detinha ainda no cérebro a exata idéia de como os trabalhos superiores se desenrolavam. As exceções ficavam por conta de alguns rápidos momentos de interação da consciência espiritual com a consciência física. Mas se sentia a todo o momento envolto por um clima emocional diferente, nada tendo a ver com os assuntos de sua vida pessoal ou profissional. Isso muitas vezes o aborrecia por que desejava viver os momentos dos dois mundos na sua plenitude, com a consciência em perfeita vigília. Houvera desejado maior volição no papel de Ministro Extraordinário, como lhe prometera também Bruno no dia de seu encontro com Rudolfo; mas até quando ficaria assim dividido?
Dia seguinte, na primeira hora de trabalho matinal, um telefonema veio trazer-lhe a alegria de ouvir um velho amigo. Tratava-se de Javan, de quem há muito não tinha notícias. Ex-funcionário da seguradora da qual Eduardo era grande acionista, Javan se formara advogado e vinha atuando na área do direito internacional. No entanto, a inicial alegria viria aos poucos se transformar em preocupação. A voz de Javan impregnava-se de certo amargor, muito embora ele procurasse dar um tom ameno às palavras. Trocaram trivialidades somente por uns poucos minutos; logo Javan fez-lhe convite para almoçarem juntos. O convite obrigaria Sorman a mudar os seus planos. Ele pretendia almoçar rapidamente pelas cercanias, logo voltando ao seu gabinete, pois vinha fazendo a pesquisa de uma obra trazida da biblioteca do Salão de Conferências da irmandade, versando sobre química oculta. Mas preferiu atender ao convite do amigo: algo mais forte em seu íntimo o instigava a tentar descobrir o que se passava com ele. Assim, tão logo desligou o telefone, mergulhou em reflexões buscando penetrar-lhe na razão consciente.
Tal como Sorman, Javan envergava elegante paletó, colarinho e gravata. O tempo de hostilizar a idéia desta indumentária ficara para trás. O devotado ódio ao padrão ocidental – incompreensível ainda nestes dias para atividades profissionais ou sociais de tantos países de climas tórridos – sem a menor dúvida arrefecera, dando lugar à forçada resignação e adaptabilidade. O sorriso e abraço sinceros de Javan não conseguiram esconder-lhe a angústia do ego. Essa sombra ficou-lhe mais evidenciada pelo brilho apagado em seus tristes olhos. Ainda, como prova desse estado, o rosto crestado tomava-se de um ar ausente, ao mesmo tempo sofrido, parecendo ter cinco anos a mais que Sorman, quando em realidade tinha um a menos. A aparência, talvez temporária, pungindo-lhe a alma, vinha se acentuar na presença precoce de alguns fios de cabelos brancos entremeando-lhe a volta da negra cabeleira. Isto não surpreendeu. Sorman já lhe houvera detectado os principais pontos da amargura, entretanto não faria menção. Antes, deixaria Javan, ele mesmo, se soltar com palavras francas e sinceras e desabafar, se assim se sentisse melhor.
- Tenho acompanhado pelas propagandas dos jornais e reportagens em revistas, a trajetória de crescimento da empresa. Numa época de dificuldade e instabilidade econômica, com períodos recessivos porque passa nosso país, sua ascensão é algo notável - começou Javan, já à mesa.
- Não temos do que reclamar, exceto da excessiva carga de trabalho.
- Oxalá o meio empresarial pudesse dizer o mesmo, mas me consta existir somente um Sorman.
- Ora, Javan, não tente envaidecer-me. Na verdade conseguimos montar uma bela equipe de diretores e técnicos que organizaram muito bem todos os departamentos da empresa. Isso necessariamente predispõe a um trabalho frutuoso.
- Modéstia, conheço bem seu potencial mental. Aliás, pretensão minha julgar conhecer porque a permanente transformação de suas ideias só vem demonstrar seu crescimento a cada dia. Não falo somente do seu preparo técnico ou metodológico que baseia a administração, economia e produção da empresa. Sei que trabalha em equipe e também aprende com eles, mas refiro-me, em última análise, a uma ação linear tanto horizontal como vertical de suas fortes energias e daquelas tomadas sutilmente da natureza, empregadas sem o apercebimento deles.
- Nada que você também não possa fazer, caro amigo. Mas espere um pouco, deixe-me logo dizer-lhe de minha satisfação em revê-lo depois de quase três anos sem notícias. A última vez conversamos ao telefone; você estava de partida para a América do Norte. Que fez neste tempo todo?
- Viagens, trabalho! – ele fez cara de amuado – tenho todos os motivos para odiar essa atividade, no entanto é a única coisa que sei fazer.
- Espero, pelo menos, que esteja ganhando muito dinheiro. Ainda me lembro do caminho que desejou priorizar – o jogo do mundo – você dizia. Naquele tempo não entendi muito bem a opção, porém mais tarde viria experimentar a mesma rota.
- Então você abandonou o ideal de busca de sua própria identidade; aquela fraternidade, tudo acabou? Javan, de surpreso, passou a quase excitado.
- Não, não, de forma alguma! – ele olhou em derredor, baixando o tom de voz – essas coisas são principais em minha vida. A minha verdadeira identidade está selada por uma ordem hierárquica a qual devo respeitar e nela me inserir. Dessa forma, poderei um dia completar um ciclo e reiniciar outro, conhecendo-me um pouco mais.
- O tempo consumido nessas etapas não o impacienta?
- Jamais! Procuro aliar-me a ele. O ofício de poder realizar faz-me absorto na obra. Nesse exercício já consigo esquecer-me de mim, permanecendo sintonizado com o todo.
- Essa situação parece-me um tanto sistêmica, talvez condicionante. Custa-me crer Sorman sacrificando a liberdade de pensar e decidir em função de uma vida vigiada e gregária.
- Absolutamente, não é nada disto. Todo um processo abrangente como o da Fraternidade precisa ser sistêmico, não há como fugir disto. O grande desafio é exatamente a superação do tempo, conforme você se referiu como um possível obstáculo. O próprio planeta onde vivemos está submetido a esse parâmetro temporal, no entanto proporciona liberdade vigiada aos seus moradores, cuja maioria nem se dá conta disso. Há como escapar das leis da evolução? Evidentemente, não. Há, outrossim, a projeção de metas para as vidas evoluírem dentro de seus estágios, habilitando-se a galgar novos ciclos. Mas para isso é necessário existir liberdade e sacrifício. A própria aceitação do sacrifício é um exercício da liberdade. E uma vez alcançada a meta mais imediata, o tempo se torna um fator aliado por que novas metas, dentro de um determinado ciclo, precisarão ser projetadas sob o próprio tempo.
Eles interromperam a conversa para o serviço ordenado, iniciando a refeição. Em certo momento Javan deu-lhe a notícia:
- Vera, minha esposa, faleceu. - aquilo pareceu sem propósito naquele instante.
- Oh, sinto muito, quando foi isto? - Sorman procurou demonstrar sentimento. Em verdade já pressentira algo assim a motivar-lhe todo o sofrimento.
- Faz seis meses. Teve câncer de estômago com metástase, sofreu muito.
- Lamentável, Javan. Tem filhos?
- Felizmente não neste caso.
Ao saírem do restaurante foram andando pelas calçadas, como outrora. Não demorou, Javan recomeçou:
- Sabe, Sorman, não sei exatamente se me encontro numa enrascada ou diante de uma encruzilhada. Durante os meses em que Vera adoeceu, submetendo-se a processos drásticos de tratamento, passei por longos períodos de tensão. Os métodos da medicina, afinal, redundaram inúteis, ao contrário do proposto, e mais ainda consumiram em Vera suas melhores energias intoxicando-a com remédios e aplicações químicas. Por todo o tempo apavorava-me a ideia de vê-la morrer assim, perdê-la. Por outro lado, ao vê-la definhar em pungente sofrimento, perguntava-me muitas vezes se valeria a pena ela viver daquela forma. E esse pensamento aos poucos veio tornar-se numa sentença: não valeria mesmo a pena ela viver definhando. Com isso em mente, a tensão veio ceder espaço a um tipo de prostração, daí a dias de profunda depressão. Mal conseguia trabalhar; as viagens profissionais me atormentavam, provocando-me um sentimento de culpa por deixá-la, mesmo temporariamente. Numa dessas ocasiões, comecei a questionar-me se viver é preparar-se para morrer, lembrando-me de seus argumentos, Sorman, e de minhas indagações nas conversas de anos atrás, quando nos conhecemos. Mas a minha realidade naquele momento com Vera, sem dúvida, era outra; eu tinha diante de mim não filosofia, mas um fato concreto: meus sentimentos e emoções estavam profundamente arraigados àquela pessoa que eu amava. Ao mesmo tempo, por mais um infortúnio, o amor passou a dividir-se com a compaixão e finalmente com o inconformismo. E quanto mais ela definhava mais o inconformismo crescia.
No entanto, após sua morte senti certo alívio por que não iria mais vê-la sofrer. Todavia, indescritível tristeza tomou conta de mim. E hoje, a questão que se superpõe a todos os meus pensamentos é se a morte física de Vera abriu-me as portas para a morte de meu próprio ser terreno, falando metaforicamente, é claro. E esse pensamento bate-me diariamente. Por outro lado, venho tendo a crescente sensação de sentir-me como se o meu íntimo fosse o leito seco de um rio, e esse é o cerne da questão: para onde estarei indo?
Nesse instante, chegaram às proximidades do bar onde diversas vezes haviam estado. Sem nada combinar, dirigiram-se automaticamente para a mais afastada mesa ao ar livre, ocupando-a. Havia pessoas fazendo lanches; certo bulício se espalhava no ar. Eles pediram dois potes de mousse e água de coco.
- O que, exatamente, você desejaria saber de mim, como forma de auxílio? - Sorman foi direto ao assunto.
- A minha grande dúvida neste caso é como encarar o problema. Seria um processo de provação iniciática a se passar comigo, trazido de forma contundente de fora para dentro? Talvez minha resistência em aceitar um caminho abrisse-me essa via crucial na qual pudesse despertar ou decidir. Mas as iniciações do passado – penso também – se já as conheci, teriam me suprido o suficiente, e o acontecido comigo seria somente um processo cármico, nada tendo a ver com a caminhada esotérica no seu estrito significado. Onde me encontro, por que se adere a mim esta tristeza que não cede diante de nenhum argumento lógico ou sensato que procuro contrapor? – ele encarou Sorman com fisionomia contrita, lançando emocionado apelo: - Pode ajudar-me neste aspecto, Sorman?
- Essências, jovens? Verbena, sândalo, patchouli! – eles olharam para a direção daquela voz rouca, vendo uma velha mulher enrugada e arcada, a quem Sorman de imediato reconheceu – os dois rapazes bonitos e inteligentes, amigos como sempre, lembram-se de mim? - ela sorriu com certa ironia. Sorman ficou surpreso, Javan pareceu amuar-se com a interrupção.
- Naturalmente, senhora, o que a traz novamente? - falou Sorman com elegância.
- Você sabe – ela sorriu largamente com o mesmo ar irônico, e seus olhos se fecharam. Então levantou a mão trêmula, tendo o rosto se tornado sério, e apontou o indicador para Javan falando com voz grave: - O sino tangeu uma vez, anunciando que a alma dela partia. Tangeu uma segunda vez, anunciando a chegada do inverno. Tangerá uma terceira vez, meu jovem, tangerá. Preste bem atenção: se escutar ao maior terá feito à escolha por ele desejada, caso contrário o caminho e as obras serão somente seus, por sua independente vontade. Liberdade e vida, liberdade e morte!
Javan empalidecera. A mulher voltou-se para Sorman demonstrando mistério no olhar, falando-lhe o quanto possível doce e brandamente:
- Adquira mais, cada vez mais. E perca tudo o que possuir por que possuir não é adquirir. Desfaça-se do que tem e daquilo que ainda não tem. Dessa maneira, tão somente assim, verá os prenúncios deixarem de ser nuvens. Chorarei muito por você para que lhe sequem as lágrimas e a dor o vergaste sem deixar cicatrizes. Coragem, herói, jamais desanime. Não há glórias sem lutas; inútil tentar enganar-se!
Sorman fitou-a com expressão distante como a querer penetrar em sua profecia. A mulher fez ligeira vênia com a cabeça e lentamente se retirou, desaparecendo de vistas. Passados segundos, Sorman interrogou Javan:
- Haverá ainda a necessidade de lhe dizer algo? Javan desviou o olhar para a mesa, permanecendo pensativo. Em seguida, inquiriu-o:
- Responda-me, Sorman, com toda a sinceridade. Estarei lhe aborrecendo se outro dia qualquer volte a telefonar-lhe para novamente conversarmos? Sorman sorriu, dirimindo desde logo qualquer dúvida, tranquilizando-o:
- Sempre gostarei de revê-lo, caro amigo.
CAPÍTULO XV
A VIAGEM DE SORMAN
- Sorman, sua visita vem mesmo a propósito. Michel levantou-se para recebê-lo. Diante dele, sobre a mesa, um grande projeto de uma planta de edificação encontrava-se aberta. Quatro pequenos enfeites de pedra mármore apoiavam as extremidades da folha. Em torno, espalhados, achavam-se três outros projetos em rolos menores, em papel vegetal. Michel vinha examinando o projeto com o auxílio de uma lupa, largando-a sobre a folha ao levantar-se.
- Espero não atrapalhar, e nem tomar o seu tempo dedicado ao trabalho.
- De forma alguma, irmão – ele fez o sinal e estendeu-lhe a mão apertando-a. – Sorman a dois passos respondeu e o cumprimentou – estou revendo um projeto da firma para a construção de um prédio. Mas tenho tempo para isto.
- Sente-se, Sorman! - ofereceu-lhe Verônica que com ele entrara, puxando uma cadeira ao lado de Michel. Sorman sentou-se e ela contornou a longa mesa, vindo acomodar-se noutra cadeira diante de ambos.
- Tenho algo para você, que me foi entregue há pouco pelos correios. Ia mesmo telefonar-lhe - Michel estendeu a mão sobre a mesa, alcançando um envelope um tanto largo, de plástico opaco, grená, passando-o ao visitante. Sorman o tomou, vendo-o provir da Europa, enviado por Bruno à sua atenção. Rasgou-o no local serrilhado e o abriu. Havia no seu interior outro envelope em papel azul, com o símbolo externo da irmandade. Com maior cuidado rasgou a este segundo envelope e retirou uma folha de papel, de qualidade especial, um tanto amarelada, portando ao alto, no meio, o símbolo secreto da irmandade. Ao observá-la rapidamente, deu-se conta do conteúdo e a depositou ao reverso sobre a mesa.
- É um plano secreto. - O casal meneou afirmativamente a cabeça, como se de alguma forma já desconfiasse do assunto. Sorman alisou o queixo olhando para a folha e a retomou, enrolando-a como a um pergaminho. Após, encostou uma de suas extremidades na testa e pronunciou três palavras – Agora nada do que falarmos virá transpirar ao invisível – confirmou satisfeito.
Então desenrolou a folha, começando a examiná-la detidamente. Eram as coordenadas de um plano ainda em projeto inicial, sobre o que realizariam para tentar conter a energia quando aportasse na Terra. Bruno houvera distribuído os grupos de trabalho, assinalando os locais onde atuariam em diversos países; colocara em destaque índices crômicos, correspondentes ao número ideal de componentes nos círculos a constituir. Neste esboço inicial, a proposta abrangia unicamente a FIA, não existindo qualquer referência às outras organizações. Terminado o exame, passou o plano às mãos de Michel, e este, após verificação, entregou-o à Verônica.
- Já vi algo a este respeito na Grande Casa - afirmou Sorman.
- É possível – concordou parcialmente Michel – Que lhe parece, Verônica?
- Não me lembro de ter visto nada semelhante.
- Creio precisar discutir este assunto com Bruno, pormenorizando tudo.
- Quando você viaja, Sorman? - perguntou Verônica.
- Amanhã! Este é um dos motivos de eu estar aqui. Tinha a certeza de que haveria algo para mim. O outro motivo é de fazer uma pesquisa.
- Que tipo? - inquiriu Michel.
- No último ritual no Templo do Sol Nascente, Stefany trouxe-me uma pasta contendo vários assuntos e valiosos anexos. Deixei-a sobre esta mesa a fim de ser arquivada, lembra-se dela Verônica?
- Perfeitamente, deseja tê-la agora?
- Sim, por obséquio.
Verônica se levantou, encaminhando-se ao painel eletrônico na parede e o abriu, passando a selecionar teclas e acessar códigos. Logo uma das fases da estante projetou-se num giro parcial; ela se aproximou e retirou de uma das prateleiras a pasta arquivada, levando-a até Sorman. Abrindo-a sobre a mesa ele começou a folhear, parando vez por outra para ler alguma coisa ou fazer anotações em sua agenda. A certa altura, pareceu encontrar o que realmente vinha procurando. Era um mapa, arquivado em várias dobras. Ao desdobrá-lo completamente veio ocupar grande espaço, ultrapassando os limites da pasta, havendo ainda duas outras folhas, finas e transparentes, sobrepostas à primeira. A folha mais grossa, sobre a qual as duas outras se sobrepunham, tinha seções sob a forma de enquadramentos, representando países ou regiões, onde havia símbolos geométricos. As legendas desses símbolos estavam ao pé do mapa, indicando diversidades étnicas por grupos de habitantes, bem como seus respectivos percentuais na população geral. As duas outras folhas davam conta das condições mentais das etnias e de seu desenvolvimento espiritual – motivo principal da pesquisa de Sorman. Ele se ateve com mais atenção aos grupos nos quais trabalhava na América do Sul, fazendo adicionais notas acerca das condições de grupos noutros continentes. Todos esses destaques, apresentados nos três segmentos do mapa, eram especiais, de interesse unicamente da irmandade, porquanto retratavam situações de egos da célula. Tendo terminado, ele dobrou cuidadosamente as três folhas e fechou a pasta, encerrando a pesquisa. Durante todo esse tempo, Verônica e Michel o observaram curiosos, mas silenciosamente.
- Pretendo também conversar com Bruno a respeito deste assunto. As características psicológicas de egos das diversas etnias são muito importantes em nosso trabalho.
- Ainda sobre o projeto de contenção da energia negativa? - perguntou Michel.
- Não, exatamente. A propósito, Michel, o que você poderia dizer-me desses grupos quanto aos seus níveis evolutivos? Michel estendeu as mãos em direção da pasta trazendo-a para diante de si, abrindo-a novamente no mapa há pouco examinado, desdobrando-o.
- Aqui em nosso continente – começou a indicar com o dedo a certos locais e demarcações do mapa – tenho contato mais direto com esses grupos por ser o Terceiro Mestre Terra responsável pela área. Os melhores esforços de minha equipe estão direcionados a todos sem exceção, todavia há grupos recalcitrantes, refratários ao progresso. Em diversas oportunidades, temos nos reunidos aqui no Salão de Conferências para tratar especialmente desses casos, mas a despeito de nossa atenção e providências pouco conseguimos até o momento. A projeção das etapas de evolução de nossa célula demonstra que se alguns grupos reagirem chegaremos ao objetivo final com boa média de aproveitamento.
- Significa dizer que, apesar dos retardatários, ainda assim teremos condições de graduar-nos, mas, em contrapartida, teremos de deixá-los à margem do caminho?
- Sim, e este será o grande fracasso de nossa célula, infelizmente o pior de todos.
- Noutros tempos – Verônica atalhou – segundo nossos registros, conseguíamos subir e descer com os problemas, mas tínhamos tempo para estabelecer novos planos visando evoluir a todos os níveis. Entretanto, no atual ciclo de manifestação da célula, já teremos consumido todos os subciclos possíveis sem possibilidades de reiniciarmos o plano evolutivo desse estágio como antes, por que, necessariamente, precisaremos ingressar em um novo e mais amplo período, sem essas âncoras. Nesse caso, principalmente – segundo ainda as projeções – por termos alcançado melhores condições de progresso, a lei da evolução periódica cíclica, inexoravelmente nos puxará para cima.
- Lamentável! - Sorman meneou negativamente a cabeça em desaprovação, lançando olhar para o vazio. Nesse instante, escutou a voz de Bruno, de modo longínquo, a dizer-lhe: “Após tantos ciclos de lutas não vejo outra saída para os irmãos nesta situação, senão o surgimento de uma luz especial para fazê-los romper, de uma vez e para sempre, o resistente véu de matéria que neles se aderiu”.
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Sorman sorriu quando o candidato entrou, e se levantou indo ao encontro dele levando a ficha. Saudaram-se mutuamente e apertaram-se as mãos.
- Garcia, satisfação revê-lo!
- Sorman, homem de Deus, a satisfação é toda minha - falou em espanhol, com entusiasmo. Sorman apontou-lhe a poltrona e foram sentar-se. Verônica, já sabendo do teor do encontro, pediu licença e se retirou..
- Surpreendi-me ao ver sua ficha – ele a sacudiu – um membro como você dispensa testes. Garcia sorriu. Os negros e lisos cabelos, fartamente jogados para trás, tomaram-se de um brilho incomum, talvez pela ação das luzes do estúdio combinando suaves matizes. O largo e moreno rosto de traços especiais, de forma alguma negava sua origem ameríndia.
- Vim liderando um grupo que eu mesmo selecionei porque desejava mesmo vê-lo. Solicitei a Verônica fazer-me uma ficha a fim de mexer com você. Sorman riu jogando ligeiramente a cabeça para trás, depois perguntou:
- Diga-me então: do que se trata?
- Dificuldades com os irmãos. De uns tempos para cá, além dos problemas normais impostos pelos laços atávicos, nosso trabalho passou a sofrer dirigido assédio das forças negativas. A última geração de jovens, especialmente cuidada, parece querer retroagir, tergiversar! A bebida e as drogas – antes tão distantes da família – já produzem algumas vítimas. Outros segmentos dos irmãos, conseguindo escapar desses flagelos, revelam-se, não obstante, desatentos aos ensinamentos. Os atrativos da matéria chamam-nos mais fortemente. Os males do progresso constantemente os atingem; em muitas ocasiões, somos impotentes para resolver as situações. Soube que você não somente faz um trabalho de seleção dos candidatos como também os estuda em suas esferas psíquicas; assim provavelmente poderia tentar algo.
- Você já se reportou ao Superior Mestre Terra?
- Sim, sim, claro. Ele tem dedicado algum tempo a esses problemas sem, todavia, encontrar soluções definitivas. Mantivemos ontem um contato telefônico. Ele está bastante atarefado na América do Norte; por sinal, foi ele quem me deu a sugestão de vir conversar com você, apesar de não ser o momento mais propício para isto.
- Segundo sei, a situação do grupo de que você é o responsável, é semelhante a de outros nos demais continentes. Para piorar, alguns também mergulham em antigas tradições; com isso se aprofundam demasiada e inadvertidamente no passado, atraindo velhos vícios mentais. Isso veio trazer-lhes grandes dificuldades, pois a persistir essa viagem temporal, haverá o risco de hábitos arcaicos cristalizarem-se novamente na personalidade, e a alma, em consequência, vir a perder o controle do ego. Em se confirmando essa desordem, infelizmente nada poderemos fazer, creio eu.
- Esta é outra realidade a reparar. O problema de nossa célula, como você bem sabe, é não possuirmos ainda corpos adequados produzidos por uma só raça, com padrão superior aos atuais. A falta desse gene racial em nossa célula nos tem trazido grandes dificuldades e imensas limitações para os objetivos adrede programados: somos obrigados a voltar sempre às diversas etnias, as quais no passado já pertencemos. O trabalho de readaptação aos corpos e a eliminação de certas tendências genéticas remanescentes do período atlante, nos tomam tempo e energia. Muitas vezes fracassamos.
- Verdade, Garcia. Mas ouça bem: algo vem dizer-me que dentro de algum tempo – não sei precisar quando – um novo e global esforço será tentado em nossa célula com vistas a estes atuais problemas. Acredito que os vários níveis de nossa liderança se unirão para especialmente buscar condições de produzir um derradeiro impulso a fim de salvar os irmãos incursos no “pecado de separatividade”.
- Isto me reconforta, irmão - ele sorriu com calor.
- Sabe, Garcia, eu já venho preparando alguma coisa sobre esses grupos para conversar com o Supremo. Parece-me que as coisas estão se transmitindo em sinal de alerta. É necessário voltarmos permanentemente nossa atenção a esses irmãos. Até o momento isso ainda não foi possível, mormente agora devido a esta urgência de nos preparamos ante a possibilidade de um assalto das forças negativas em escala planetária. Viajo hoje para a Europa, depois para a América do Norte, mas não me esquecerei deste assunto.
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Na Europa, Eduardo e Sorman iniciaram desde logo as visitas. Nessa primeira etapa, as reuniões consumiram-lhes três dias de intenso trabalho. Tal foi o interesse daquela organização nas propostas apresentadas que Sorman viu-se envolto em contatos por computador ou telefone, solicitando da empresa novos relatórios, posições, mapas estatísticos, certidões, outras especificações, novos orçamentos, etc., coisas enfim não levadas, mas necessárias aos acertos que se desdobravam. Os assuntos ganhavam interessantes projeções, as negociações tornavam-se cada vez mais concretas.
Encerrados os encontros, teriam de embarcar na noite seguinte para outro país onde visitariam alguns clientes. Um convite para um pequeno passeio pela manhã aos pontos turísticos da cidade foi-lhes oferecido pelos diretores da organização e um carro com motorista colocado à sua disposição. Eles agradeceram e aceitaram a cortesia.
Eduardo, porém, acordou indisposto. Durante a madrugada tivera problemas intestinais – provavelmente decorrentes da comida a qual não estava acostumado – e em absoluto cogitou deixar o hotel. Já solicitara a compra de remédios e desejava, antes de qualquer outra coisa, repousar. Entretanto, insistiu que Sorman fosse sozinho. Sorman resistiu, mas Eduardo conseguiu finalmente convencê-lo, pois não estava acometido de nada grave e logo passaria. Sorman condicionara sua saída a um telefonema ao pai ainda pela manhã, e retirou de um pequeno bloco de anotações na mesinha de cabeceira, uma folha onde havia o endereço e o telefone do hotel, guardando-a no bolso interno do paletó.
Pelas oito horas, ao sair do restaurante do hotel onde fizera o desjejum, e passar em direção ao hall de entrada, o funcionário da portaria o chamou entregando-lhe um pequeno envelope azul no qual se lia simplesmente: Sr. Sorman - quarto 702. Ele o rasgou, retirando do seu interior o bilhete que dizia: “Saudações. Hoje ao meio-dia na Praça X. Irmão Supremo.” Enfiando-o no bolso do paletó, junto à folha do bloco de anotações, deixou o hotel embarcando no carro que já o aguardava. Antes de iniciar o pequeno tour, solicitou ao motorista que à hora determinada no bilhete o deixasse naquela praça. Em vista disso, o tour foi reprogramado a fim de não acontecer qualquer atraso.
Eram onze e cinquenta quando o carro o deixou na praça, desaparecendo por uma das ruas confluentes. Cinco minutos depois outro carro encostou e um homem de paletó listrado em tecido irlandês o chamou, com sotaque espanhol:
- Irmão, Sorman, por favor! – Sorman voltou-se, vendo-o sinalizar. – Sou Carlos, Terceiro Mestre Menor do Primeiro Mestre Terra – falou já fora do carro fazendo o sinal, respondido por Sorman – vou conduzi-lo ao Irmão Supremo. Sorman embarcou e vinte minutos depois chegavam ao destino.
Carlos era também jovem; teria a mesma idade de Sorman, sendo alto como ele; usava fino bigode e pequenas costeletas. Os cabelos eram para trás, tipo escova, e gentilmente veio conversando durante todo o trajeto. Sorria muito, parecendo extrovertido.
Tendo estacionado na estreita rua, aproximaram-se do portão de um prédio antigo, de duas casas comuns e geminadas, separadas na fachada por pequena grade de ferro sobre degraus. Em ambas as casas não havia qualquer movimento: todas as portas e janelas achavam-se fechadas. Carlos acionou o porteiro eletrônico e apoiou-se numa barra de ferro da cerca. Ao chamado da voz feminina ele se anunciou e o portão imediatamente foi destravado. Subiram então os três degraus à direita e aguardaram no patamar diante da porta.
A fechadura logo produziu pequeno estalido, a porta afastou-se quase imperceptivelmente e Carlos pousou a mão na maçaneta empurrando-a. Viram-se diante de um corredor de paredes brancas, muito altas, de aproximadamente doze metros de comprimento, coberto em toda a extensão por um tapete oleado azul claro. Quatro portas, duas de cada lado, encontravam-se fechadas e se encaminharam em direção da última, do lado esquerdo, adentrando a dependência. Era simples e vazia, de pintura amarela, onde a um canto havia um arco sobreposto por uma cortina de pingentes em pedras coloridas. Uma janela de venezianas abertas para dentro permitia a entrada de fraca claridade por vidros opacos. Eles se adiantaram ultrapassando o arco, descendo três degraus da curta e diminuta passagem. A única luz ali existente, provinha de um pequeno spot encimado à porta ao final dos degraus.
Ao adentrar, Sorman se surpreenderia com a grande sala atapetada em tom azul claro, com poltronas em veludo vinho e altas cortinas em cores esmaecidas. As cortinas cobriam completamente uma das paredes da sala, e parcialmente a outra, onde havia largas portas corrediças de madeira e vidro. Um grande lustre de cristal, com largas abas, tinha fracas luzes acesas, mas os pequenos abajures nas paredes vinham adicionar luminosidade média e agradável. Bruno levantou-se sorrindo, fazendo de imediato o sinal, acompanhado nesses mesmos gestos por Stefany. Sorman respondeu-lhes.
- Sorman, amado irmão! – recebeu-o quase emocionado, estreitando-o num forte abraço.
- Bruno! - mencionou simplesmente o jovem com alegria. O Supremo afastou-se um passo e Sorman beijou Stefany nas faces.
- Como iria imaginar encontrá-la aqui, Stefany?
- Surpresas também fazem parte de nossas vidas -- respondeu com sotaque eslavo.
Sentaram-se. Carlos passou diante deles esgueirando-se pelo vão das portas corrediças, desaparecendo de vistas. Os três iniciaram então uma conversa. Em dado instante Bruno destacou:
- Os relatórios estão quase prontos. Devo submetê-los aos membros hierárquicos em próxima reunião no Salão de Conferências. De nossa parte faltam-nos tão somente uns poucos contatos que inicialmente estarão a cargo de Stefany. Havendo a necessidade de minha presença ela me avisará. A propósito, você recebeu o esboço do esquema?
- Sim, excluindo outras organizações.
- Em princípio, sim, pois ainda não obtive nenhuma confirmação dos seus comandos se já possuem um plano. Esta preocupação fez-me informá-los de que se nada surgir por parte deles nos próximos dias, apresentarei nosso plano completo. Nesta condição, oxalá o aceitem. Por outro lado, Michel enviou-me a relação dos iniciados de nosso continente que estarão prontos a participar da grande corrente. Ponderei dos avais dados por você bem como das anotações especiais.
- Michel forneceu-me uma lista geral dos nomes até agora computados, durante minha visita à sua casa na semana passada. Na oportunidade, pediu-me para me concentrar a fim de avalizá-los ou não. Tomei-os, um tanto receoso, mas logo minha mente clareou-se, e percebi como deveria classificá-los uma vez que os irmãos ali anotados já tinham passado pelas entrevistas na Grande Casa e inicialmente aprovados. Poucos de todos os entrevistados não constantes da lista deixaram de receber minha aprovação. Mas a lista ainda está incompleta, faltam novos nomes.
- Sua escolha parece-me satisfatória, entretanto farei uma revisão definitiva nesta e noutras listas dos Mestres Terra antes da reunião. Até lá dará tempo de completá-la.
- E quanto aos relatórios das outras organizações acerca do pessoal deles, eu poderia ter acesso a estas informações?
Bruno olhou para Stefany, meneando afirmativamente a cabeça. Ela se levantou de imediato cruzando o vão das portas corrediças. Logo retornou com uma pasta de arquivo, voltando a sentar-se, retirando da pasta várias folhas. Depositou a pasta no chão, próximo de sua poltrona, e selecionou quatro folhas das que colocara sobre as pernas, estendendo-as a Sorman.
- Que tal? - perguntou Bruno, após Sorman tê-las verificado.
- Nada bons - ele mordeu ligeiramente o lábio inferior.
- Também achamos isto. – concordou Stefany – É o que de melhor recebemos até agora em nossa área de trabalhos.
- Falta profundidade nas avaliações. Na realidade, face a estes relatórios, não saberia dizer com quantos destes poderíamos efetivamente contar. Você saberia posicionar-se, Bruno, com base nestas precárias informações?
- Há certo risco que possivelmente correremos com estes irmãos, e isto é preocupante. Talvez a falta de maiores informações sobre estes nomes nos seja compensada pela garantia de seus comandos de que terão firme participação.
- Quando saberemos disto?
- Dentro de dois dias numa reunião na Unidade II da Grande Casa, aqui mesmo na Europa.
- Dois dias? Estarei longe daqui!
- Estará presente, irmão! Sorman sorriu acerca destas últimas palavras.
A Unidade II-Europa, da Grande Casa, era bem diferente da Unidade I frequentada por Sorman. Ele já a houvera visto a certa distância, em desdobramento, na ocasião de sua participação no Ritual do Templo do Sol Nascente. Tratava-se de um templo sobre pilares, com degraus à sua volta e quatro torres pontiagudas formando um quadrilátero em torno de uma cúpula ogival. Havia nos arredores belos jardins, alamedas entre canteiros e uma brilhante luz lançando-se do interior do edifício. Ao aproximar-se, Sorman se deteve diante de um cenário de aparente irrealidade, pois a luz subia atravessando finas e pairantes nuvens, e as nuvens, lenta e progressivamente, desciam e desintegravam, transformando-se em deslizante e clara névoa a renovar-se.
Seu condutor parou diante dos imensos portões gradeados, cujos ferros apontavam verticalmente para cima, fazendo o sinal secreto aos dois guardiões. Eles imediatamente descruzaram as lanças e um deles empurrou um dos portões para dentro, abrindo-o para os recém-chegados. O reflexo da luz na armadura do guardião que se movimentara chamou a atenção de Sorman, e reconheceu à testa de seu capacete de aço um dos símbolos da irmandade.
Entraram por uma das alamedas dentre canteiros de flores e palmas, atingindo os degraus do prédio. A alta porta abriu-se à sua aproximação; eles adentraram numa imensa igreja onde doce melodia navegava pelo ar executada num órgão. As vidraças coloridas da nave deixavam traspassar alguma claridade, matizando o chão em derredor. Ao invés de bancos, existiam cadeiras almofadadas em veludo azul em ambas as alas do largo corredor central. O altar localizava-se após três grandes colunas, consistindo de uma única parede, onde um imenso e dourado sol sobrepunha-se. Por algum artifício ou engenho, o sol girava enviando luzes por seus raios em direção dos lugares onde as pessoas se assentariam.
Eles se afastaram dali adernando à esquerda e cruzaram um arco que comunicava com altíssimo corredor relativamente estreito, atapetado na cor púrpura. A luz jogada de dois lustres de cristal ao longo do corredor era fraca, havendo somente poucas lâmpadas acesas, mas assim mesmo serviam para orientar e iluminar. Quadros pelas paredes, em cores vivíssimas, exaltavam rostos, paisagens ou figuras inteiras de divindades. O condutor, até então taciturno, parou após o arco apontando para adiante, falando simplesmente:
- Ali, naquela porta! - Sorman agradeceu-lhe. Ele sorriu com surpreendente simpatia, arcando suavemente o tronco e após ligeira vênia, respondeu: - foi um prazer!
Vencido um curto trajeto, Sorman parou diante da porta completamente lisa, coberta de um verniz escurecido, acionando a maçaneta. Viu-se então num amplo salão hexagonal, tendo no centro compridíssima mesa de reunião. As paredes do fundo eram vidraças. Pequenos pontos de luz embutidos no branco teto dispensavam melhor luminosidade ao ambiente, produzindo no chão, igualmente branco, vários reflexos.
Muitas pessoas ocupavam lugares à mesa. Vestiam-se todas de branco; as mulheres de vestidos, os homens de calças e camisas de mangas curtas. Em cada lado das paredes laterais havia uma porta. Ambas estavam fechadas, constituindo-se, mais ou menos, no limite final das vidraças que formavam uma parte do desenho hexagonal do salão. As vidraças ocupavam três lados completos da figura e metade dos dois lados seguintes, à esquerda e à direita. Dali para diante, começavam as paredes que terminavam nesta porta principal onde Sorman estava.
Inspirativo aroma a tudo impregnava. Sorman notou num dos cantos de uma das vidraças, afastada um metro da alva e recolhida cortina, pequena pira de ouro em cujo interior ardia diminuta chama azul violácea. A chama queimava uma substância ou mistura, fazendo subir finas espirais de fumo que logo se diluíam, transformando-se em quase imperceptível névoa.
A porta da direita abriu-se. Um homem de média estatura, cabelos negros e bigode, vestido como todos, saiu e atravessou o salão, encaminhando-se a um dos lugares à mesa. Um rapaz magro, alto e claro, com cabelos louros e vestes idênticas a dos homens ali presentes, ostentando o dourado símbolo externo da irmandade, surgiu sob o portal, acenando a Sorman. Logo o introduziu num salão, começando a fazer uma série de sinais. Sorman ora os respondia ora arguia. Finalmente, o rapaz estendeu-lhe a mão e o cumprimentou. Ele era o Primeiro Mestre Menor do Primeiro Mestre Terra, e após o cumprimento falou em espanhol, puxando no acento italiano:
- Sou Petrus. Recebi ordens para atendê-lo, dando-lhe as vestes para esta reunião extraordinária.
Esse salão, embora bem menor que o outro, era um grande vestíbulo. Cortinas púrpuras achavam-se recolhidas em ambos os lados da parede. Ali um armário continha dezenas de vestes brancas, separadas por grupos e tamanhos. Ele olhou Sorman da cabeça aos pés e retirou uma delas do suporte, segurando-a pelo cabide com o braço distendido, examinando-a.
- Esta deve dar perfeitamente em você - afirmou convicto, estendendo-a. Sorman a tomou e dirigiu-se ao fundo do vestíbulo onde a dependurou num dos ganchos na parede, começando a despir-se. Petrus, enquanto isto puxava para fora uma profunda gaveta como um baú procurando algo mais. Quando Sorman já estava vestido, Petrus estendeu-lhe um par de sandálias brancas, que ele imediatamente calçou.
Petrus trouxe as roupas de Sorman para um armário individual encaixado noutra parede, onde muitos outros idênticos armários se encarreiravam. Ia dirigir-se ao Ministro quando alguém bateu à porta.
- Um momento! - respondeu voltando-se para o visitante: Sorman sente-se ao lado da cabeceira da mesa, na extremidade de lá. O Supremo e outros hierárquicos logo chegarão.
Petrus se adiantou abrindo a porta. Dois homens de meia idade, um gordo e um magro, foram introduzidos ao vestíbulo. O gordo, com vestes idênticas às de Sorman e Petrus ensaiou o sinal, Sorman somente respondeu com meneios de cabeça. Petrus antepôs as mãos adiante do rosto, colando as palmas, e saudou alegremente ao visitante; depois apertou-lhe a mão e o trouxe para junto do armário a fim de lhe escolher as vestes.
Outros convidados foram chegando, ocupando lugares, até Petrus dirigir-se a um canto do salão onde, com a baqueta, fez um gongo prateado soar por três vezes. Imediatamente o Irmão Supremo adentrou, acompanhado do Superior e do Primeiro e Quinto Mestres Terra. O Supremo vestia camisa azul de mangas largas, compridas, abertas nos punhos, e calças na mesma cor. No peito ostentava o dourado símbolo externo da irmandade, em tamanho maior que dos demais. Seus acompanhantes masculinos trajavam-se como Sorman. Stefany usava o vestido semelhante ao das mulheres ali presentes, acrescido do símbolo da irmandade no peito.
Todos se levantaram; os quatro se encaminharam para a cabeceira da mesa. O Supremo, antes de ocupar o principal lugar, saudou ao Ministro Extraordinário com leve aceno de cabeça, o mesmo fazendo os demais, ao que ele respondeu. O Superior dirigiu-se para a direita do Supremo, ao seu lado ficou o Quinto Mestre Terra. O Primeiro Mestre Terra posicionou-se à esquerda do Ministro Extraordinário. O Supremo aproximou seus lábios dos ouvidos do Ministro e cochichou:
- A primeira experiência precisa ser cercada por diferente expectativa. Por isso foi-lhe necessário permanecer aqui. Sorman sorriu. O Supremo então os saudou; após dirigiu uma prece ao Todo-Poderoso, pedindo Sua Presença e inspiração. Todos se sentaram, exceto ele que logo começou:
- Irmãos e amigos, muito nos honram suas presenças. O momento, como bem sabem, prenuncia turbulência. Temos pouco tempo para montarmos uma estratégia a fim de tentarmos impedir a propagação da energia que ameaça provocar grandes danos à nossa civilização e à Terra de uma forma geral. Os valores humanos conquistados à custa de sacrifícios ao longo dos tempos são hoje conscientemente desfrutados por muitos. Representam os avanços do homem na sociedade. A evolução das raças é uma das metas que vem sendo cumprida no Grande Plano do Criador. Os reinos e suas espécies também necessitam da atenção, pesquisa e aplicação da ciência em socorro aos problemas ambientais, a fim de não sofrerem irreversíveis mutilações e provocarem distorções ao ecossistema. O mundo marcha, muitas vezes, por caminhos eivados de abrolhos, por que o homem a isso escolheu com sua impaciência, volúpia e desamor. Há no íntimo da alma terrena várias espécies de faíscas de distintas origens. Por um mínimo de estímulo podem ser atiçadas provocando fogo devastador. O fogo consome; o fogo irrompe sempre em lugar seco e propício; o homem é ainda imperfeito, por esse motivo acha-se, na sua maioria, obrigatoriamente contido por forças externas que o determinam caminhar pelas trilhas da expiação e sofrimento. Mas ele não deseja isso; ele deseja liberdade e muitas outras coisas, mesmo através da materialização do mal. Eis o perigo, irmãos. A intenção dos que projetam a energia em curso de mergulhar na Terra, é, principalmente, provocar intempestivas reações humanas para desarticular o equilíbrio dos opostos. É o trazer a natureza da alma para uma explosão; é o libertar dos seus animalescos instintos adormecidos no inconsciente das massas, e não obstante prontos para eclodirem ao serem acionados.
Assim acontecerá o caos, não importando aos fomentadores da violência como ou por quê. Importa-lhes, isto sim, que a gigantesca e incontida força venha ainda mais crescer para danificar e destruir homens e obras humanas, troando qual dantesca onda nascida de convulsão cataclísmica, a viajar em qualquer direção sob as rédeas da morte. Rumores virão; estão cada vez mais próximos. Urge organizarmo-nos a fim de procurar obstar essa esperada ação dos exércitos malignos, que já se articulam para receber a energia com que arregimentarão forças e intentarão virar o mundo. O processo de obstrução a eles é a principal proposta a ser discutida hoje nesta reunião, aqui convocada. Daqui não poderemos sair sem um plano definido para rápida execução, sob pena de nossos esforços, até agora envidados, virem a fenecer.
O Supremo calou-se mirando-os em rápida varredura de olhos, fazendo leve cumprimento de cabeça e sentando-se. Fantástico, pensou Sorman. A energia de Bruno brotara de seus olhos, unindo-se às palavras, magnetizando as almas de todos. Eles tinham se transformado. Se dúvidas antes existiam quanto à realidade do momento, agora pareciam não mais existir. Viam-se nos seus olhares reflexos de ansiedade.
CAPÍTULO XVI
PRIMEIROS CONFRONTOS
Alguns núcleos da irmandade e das organizações integrantes da aliança para a defesa da Terra começaram a ser sistematicamente atacados por hordas e falanges dos malignos. Intensa movimentação e constantes combates vinham acontecendo. Forças eram remanejadas e reforços solicitados para virem atuar em defesa dos atacados. Nessa precipitação de ataques, os núcleos inicialmente surpreendidos em suas guardas, conseguiram reagir e equilibrar os combates. Era comum guerreiros do astral se movimentar com rapidez para invadir redutos onde o inimigo se encontrasse aquartelado a fim de retomá-los e expulsá-los. Houve feridos dentre os da aliança e ocupação total por parte dos inimigos de dois núcleos, um dos quais pertencentes à irmandade. Após algum tempo de renhidas disputas, existiu uma pausa.
As posições nesse momento permaneciam bem definidas. Os inimigos escondiam-se nas sombras e os da aliança ficavam vigilantes. Tudo que os inimigos haviam inicialmente conquistado tinha sido recuperado, exceto o núcleo da irmandade onde os invasores pareciam concentrar a maior quantidade das forças de que dispunham. Para defender essa conquista, eles formavam cinturões de guerreiros em vários, amplos e afastados círculos, e estabeleciam colunas em compridíssimas lanças ou raios, partindo do centro do primeiro círculo para a periferia, atravessando a todos os demais círculos, indo muito além do último.
Entrementes, outra onda de ataques e tentativas de invasões estava prevista para acontecer. Transpirava no ar essa possibilidade sendo captada pelas sensitivas mentes de membros da aliança. Devido a essa expectativa, a aliança mandara vir do oriente grandes milícias especialmente treinadas para esse tipo de combates. Com elas também chegaram de outras partes do mundo outras significativas milícias, embora não tão numerosas.
Nesse comenos, o Supremo convocou uma reunião extraordinária no Salão Branco da Grande Casa dos Estúdios e Câmaras da Hierarquia, a fim de discutir a situação com os Mestres Terra e Ministros. Os Mestres Terra haviam quase todos se envolvido direta ou indiretamente nas lutas, realizando ou combinando ações conjuntas. O Supremo tinha diante de si uma carta e explicava o seguinte:
- O depoimento de um irmão iniciado através desta carta irá constar da ata da reunião, para cuja leitura solicito a atenção de todos. A carta relata a dramática situação enfrentada por nosso núcleo antes de cair em mãos inimigas. Diz o irmão:
“Naquela noite tomava-me estranha e angustiante inquietação. Eu andava pela casa não conseguindo concentrar-me. A inquietação vinha causando natural preocupação aos meus familiares. Eu detinha a sensação de que algo muito grave acontecia ou estaria prestes a acontecer. Nos rituais do núcleo da irmandade, já tínhamos sido avisados acerca da preparação das forças negativas que pretendiam tomar o planeta assim que uma energia poderosa chegasse do cosmos, e nos colocávamos em permanente alerta. Estávamos prontos para colaborar com a irmandade contra as forças destrutivas, naquilo que pudéssemos ou fossemos capazes de realizar. Contudo, neste momento eu não conseguia atinar com fatos dessa natureza: tudo o que eu sentia era uma grande angústia.
Dirigi-me ao meu quarto e resolvi deitar-me. Lembro-me de ter olhado para o relógio na mesinha de cabeceira vendo que ainda não eram oito horas. Procurei relaxar corpo e mente, acomodando-me da melhor maneira com a cabeça no travesseiro. Quase de imediato perdi a consciência, sendo transportado para um conhecido local. Alguém rapidamente ajudou-me vestir uma armadura – minha armadura tantas vezes já utilizada – e colocou-me o capacete. Num reflexo, levei a mão direita à bainha, puxando a espada cintilante que sabia muito bem manejar, examinando-a. Estava, como sempre, perfeita, e zunia aos meus rápidos movimentos de cortes no ar.
- O guerreiro está pronto, comandante! – declarou o soldado auxiliar de nome Demétrius. Agora eu estava perfeitamente desperto, reconhecendo todos em derredor. Saulus, meu mestre instrutor, ali comandando um grupamento de homens, dentre os quais três outros da irmandade, ordenou-me:
- Enéas, leve um destacamento de cinco homens para a porta do fundo, onde outros três já estão de guarda. Os malignos devem nos atacar novamente a qualquer momento. Estou enviando mensagem para outros mestres a fim de que nos ajudem com reforços.
Encontrávamo-nos no interior de nosso sagrado templo onde realizamos os rituais. Este núcleo, como bem sabem os iniciados, é diretamente subordinado ao Templo da Casa Rosa onde o Supremo implantou as forças sustenedoras de todos os segmentos da irmandade em nosso país. Todos sabem da importância deste núcleo.
Tomei então meu escudo e trouxe os cinco homens para a porta do fundo da casa, como ordenara meu mestre. Havia uma sentinela guardando posição no lado de fora, junto à porta, e dois outros pelas imediações do jardim e gramado. Todavia, nem cheguei a transpor o portal por que uma explosão, seguida de uma luz negra e sufocante fumaça, projetou os homens ao chão, arremessando a sentinela contra a parede da casa. Imediatamente surgiram daquela escura formação muitos homens, com saiotes negros, trazendo as cabeças envoltas por um tipo de capacete em fios duros como arames. Seus corpos pareciam eletrificar-se, pois os fios seguiam de suas cabeças para os pescoços, enlaçando troncos e braços. Cingia-lhes largo cinto de metal, mostrando adiante um grande símbolo de magia negra a transmitir estranha força. Eram guerreiros extremamente fortes, de alta estatura, manuseando com uma das mãos um bastão que lançava projéteis em brasas provocando sérios ferimentos nas partes do corpo onde atingissem. Na outra mão portavam grandes e negros tridentes de ferro, que movimentavam de um lado a outro. Os tridentes possuíam sulcos, representando serpentes vermelhas, vibrando também estranha força.
A guarda permanecia no chão, fora de combate, e eles vieram em nossa direção. Nesse mesmo instante, percebemos o tilintar de armas e ruídos de lutas, pois os homens que montavam guarda na entrada principal do núcleo, tendo ouvido o estrondo, acorreram pelo lado de fora para nos auxiliar. A nós vieram juntar-se pelo interior da casa, Saulus e mais sete homens.
Entretanto, os guerreiros inimigos nos empurraram para trás. Aos golpes de nossas espadas eles pronunciavam certos sons e defendiam-se com os tridentes. Os tridentes eram poderosos imãs que atraiam as pontas de nossas espadas para suas extremidades, fazendo nossos golpes desviar-se e ser absorvidos com a maior facilidade. Disparavam com os bastões contra nós que tentávamos detê-los com os escudos, e quando nos atingiam, causavam horríveis dores e queimações. Era praticamente impossível chegar mais perto daqueles guerreiros, pois a própria estrutura de fios que os envolviam atuava como poderosa armadura a externar um campo de forças. Alguns homens caíram pelo chão, permanecendo inconscientes. Ao ver nossas perdas e grande desvantagem, Saulus gritou:
- Para trás, recuar!
Corremos todos para a porta principal a fim de sair da casa. Os homens que ainda lutavam bravamente pelo lado de fora vieram nos encontrar no portão. Alguns deles tinham ficado pelo chão, fora de combate. Ao juntarmo-nos, vimos um clarão no ar sobre a casa e dentre nuvens escuras surgir um ser com vestes negras e capuz, acompanhado nesse voo de um séquito de novos guerreiros. Cruzava diante do peito dois pequenos cajados encurvados em posições invertidas. Ao verem-nos tentando fugir, dispararam com maior eficácia, tendo um daqueles projéteis me penetrado numa das pernas, abrindo-me um grande ferimento na coxa. Saulus foi atingido no capacete e caiu desfalecido. Demétrius o levantou tentando carregá-lo, mas os guerreiros do mal lançaram novos disparos, obrigando os soldados a realizar uma formação em círculo em torno de nós que havíamos sido atingidos, e que não podíamos correr, protegendo-nos com seus escudos.
Súbito um carro blindado surgiu à nossa retaguarda, parando e abrindo a porta a fim de nos recolher. Guerreiros nossos foram surgindo, respondendo aos ataques com lança-chamas. Pequena nave sobrevoou o local lançando bombas sobre os inimigos. Com isso, conseguimos detê-los por instantes, fazendo-os diminuir sua ofensiva sobre nós. Logo uma nave negra surgiu por detrás daquelas escuras nuvens, começando a abrir fogo contra a nossa nave. A nave foi alvejada deixando o local, sendo perseguida pela nave negra até desaparecer. O carro que nos recolhera partiu rapidamente daquele campo de batalha, trazendo-nos para o hospital.
Lembro-me de ter visto pela janela do carro blindado, como nossos disparos os detiveram temporariamente, porque as lanças ao cravarem no chão ou sobre qualquer outra superfície liberavam, além das chamas, um tipo de energia em círculos que ao tocar os corpos dos guerreiros inimigos, causava-lhes danos. Esta energia era mais poderosa que o imã de seus tridentes ou de suas armaduras. Uma dessas lanças foi arremessada contra o ser de negro – que depois soubemos tratar-se de um mestre das trevas – mas ele simplesmente esfregou um cajado contra o outro, formando diante de si um escudo contra o qual a lança não teve qualquer eficácia. Dez de nossos soldados estão prisioneiros em nosso próprio núcleo, onde os sinistros permanecem reunindo forças, aproveitando-se de nossa egrégora, tendo invertido sua polaridade. Com isso enviam energia negativa para o mundo.
Esta carta escrevi-a de meu leito no hospital da Terra, onde estou internado com dores e queimação na perna. Os exames revelam a existência de um grande tumor à altura da coxa onde o projétil atingiu-me. Os médicos cogitam de um tratamento por radioterapia. Caso não resulte em regressão, tentarão a quimioterapia; fracassando esse último tratamento, farão a amputação de minha perna.
Sei que estou sendo muito bem tratado no hospital do astral, na irmandade, e logo a queimação irá desaparecer. Confio nisto por que sei, vi com meus próprios olhos espirituais o que aconteceu; senti a realidade em meu corpo astral. A despeito de tudo nada temo, nem mesmo a amputação do meu membro físico. Pior destino tiveram dois de meus companheiros, dentre os dez abatidos pelas poderosas armas dos malignos. Seus corpos astrais, como dos demais irmãos prisioneiros, encontram-se acorrentados no reduto inimigo, mas esses dois, ao contrário dos outros, estão em encarnação na Terra, possuindo como eu, corpos físicos. Em consequência, foram internados nos hospitais da Terra em estado inconsciente sem que nenhuma medicação terrena lhes faça efeito, não se sabendo quando a situação será mudada pela irmandade.
Esta é a verdadeira história da invasão dos malignos e capitulação de nosso núcleo da irmandade, que de todas as formas nos surpreendeu e alertou, por nos acharmos até então inexpugnáveis. Oro a Deus e aos irmãos maiores por uma solução rápida para o desmantelamento dos exércitos inimigos e sua expulsão de nossas possessões.
Enéas III ORD II M M III M T”
Profundo silêncio precedeu aos movimentos seguintes. Unicamente eram ouvidos de maneira distante os sons mecânicos dos processadores e decodificadores acoplados ao computador em que Verônica trabalhava. Passados segundos o Supremo retomou:
- A situação em nosso núcleo está difícil. Os reforços já chegaram, mas não sabemos ainda se um ataque maciço contra eles seria o melhor indicado. É provável que estejam justamente aguardando por esse nosso próximo passo. Assim, procurariam nos manter concentrados nesse objetivo, imaginando que nos descuidaríamos das outras posições, às quais certamente atacariam com maiores possibilidades. Isso incluiria a todos os países que mantém a aliança – a mesa permaneceu concentrada e reflexiva. Como nenhuma nova idéia emergisse o Irmão Supremo continuou – busquemos uma solução rápida ainda hoje. Entrementes, gostaria de ouvir do Superior acerca do que efetivamente os Mestres Terra têm providenciado para a realização da corrente. O Superior então começou:
- Os Mestres Terra já enviaram todos os iniciados para os testes. Não há mais nenhum deles para ser testado. Os núcleos da Terra de nossa irmandade estão todos devidamente instruídos em como se posicionarem no momento da realização da grande corrente. Da mesma forma, os integrantes da aliança estarão também posicionados de acordo com o plano por nós idealizado, que recebeu os detalhes técnicos e contornos definitivos pela mão do Supremo. Nesta dimensão em que agora aqui nos encontramos, a corrente deverá ser reforçada por milhares de outros irmãos iniciados não encarnados na Terra, que devido à falta desta ancoragem no mundo físico virão operar em condições diferentes das nossas. Todos na mesa receberam os cronogramas interno e externo do plano, mas havendo ainda qualquer dúvida sobre o seu funcionamento ou mesmo alguma proposta de modificação, queiram manifestar-se.
A partir daí eles entraram num clima de confabulação geral. Mais adiante, o Irmão Supremo pediria silêncio e atenção, anunciando a palavra do Ministro Extraordinário. Sorman, tímido com aquela especial deferência dentre tantos companheiros mais antigos, e segundo seu conceito, melhor qualificados, encarou Bruno como a querer omitir-se. Bruno, todavia, sério, olhou-o fixamente nos olhos e com suave meneio de cabeça confirmou a ordem. Sorman compreendendo que uma vez mais não poderia fugir de uma responsabilidade iniciou:
- Irmãos, com grande honra dirijo-me pela primeira vez a todos na mesa. Nesta oportunidade quero dizer-lhes que a luta maior está muito próxima. A Grande Face Negra, sem dúvida, virá aproveitar-se de todas as brechas que puder encontrar para agir destrutivamente. O passado atlante de nossas estruturas ressuscita para gigantescas pugnas; de novo estaremos a litigar para não perdermos conquistas legitimamente adquiridas. Uma vez mais o mal se organiza para destruir o bem.
É vital nos mantermos atentos; sinto já a proximidade da energia primária. Antevejo exércitos negros tomando posições; pressinto mentes dotadas de incríveis poderes destrutivos, fora de nosso sistema solar, a se preparar para, habilmente, introduzir sugestões hipnóticas nas mentes terrenas, conduzindo-as, à inteira vontade, a nefandos objetivos. Confrarias da Grande Face Negra em atividade na Terra já iniciaram os seus ataques, como sabemos. A malignidade de que são portadores cria formas elementais para nos dominar. Irmãos, não temos a certeza da vitória; não sabemos exatamente com que potência a energia destrutiva virá incorporar em seus médiuns. Tal como ao prenúncio das grandes guerras mundiais, é difícil neste momento imaginar quantos milhões de pessoas serão conduzidas por líderes dotados de poderes magnéticos manipulados pelas sombras. Nem nos é possível calcular a devastação que tal força incorporada nos povos poderá produzir. A única certeza que possuímos é que lutaremos com coragem e denodo a fim de evitar o caos mundial; isso, sem dúvida, poderá nos expor a todos os perigos e armadilhas. Mas nada virá nos atemorizar; cumpriremos a nossa parte até o final.
Esse discurso de clamor e exortação seria mais tarde enviado a todos os núcleos da irmandade a fim de ser repassado aos irmãos em ritual. Outros setores não ritualísticos da FIA, também os receberiam por seus expoentes, quer telepaticamente, por psicografias, vidências, clariaudiência, alertas premonitórios, intuições ou mesmo por desdobramentos astrais e mentais.
- Sorman, preciso vê-lo com urgência - Anita ao telefone parecia ansiosa.
- Que se passa Anita?
- Prefiro conversar pessoalmente.
- Então almoçaremos juntos - convidou-a.
Durante o almoço ela confessou-lhe:
- Algo oculto ameaça o mundo – Sorman olhou-a espantado – esta madrugada fui levada para diversos lugares enquanto dormia. Vi lutas, criaturas horrendas, verdadeira guerra entre homens e criaturas. Alguém me mostrou no céu uma tempestade em negra formação. Vi milhões de soldados se preparando para uma guerra. Meu acompanhante apontava insistentemente para o céu e dizia: “É de lá que a Face Negra chegará com poder.” Depois me vi diante de um sacerdote negro, alto e forte. Ele vestia paramentos especiais e solenes e apontava para uma casa dizendo: “Lá dentro você receberá o seu batismo, venha, não se demore!”.
Não foi necessário Anita questioná-lo. Sorman se transfigurara: parecia não acreditar no que acabara de ouvir. Anita silenciou. Passado este quase estupor, ele se moveu um tanto vacilante e falou-lhe:
- Anita eu acredito em você. Na irmandade muitos de nós sabemos.
- Irmandade?
- Creio já tê-la mencionado em nosso último encontro.
- Sim, lembro-me disto.
- Você foi apresentada a ela de maneira informal e direta.... - ele fez suave trejeito com o lábio inferior abrindo as mãos adiante, sobre o prato.
- Todas essas coisas de meu sonho estarão relacionadas com esta irmandade? E a ameaça de uma tempestade negra, o que significa?
- Ouça, não posso ainda entrar em detalhes, somente desejo alertá-la de que o mundo passará por um grande perigo. Se o fiel da balança pender para o lado negro, haverá um terror mundial: acontecerão guerras e possíveis hecatombes. O seu sonho é verdadeiro; é uma revelação parcial dos futuros acontecimentos.
- Oh, meu Deus! – ela levou a mão ao coração. Sorman hesitou e Anita pediu-lhe – Conte-me algo sobre esta irmandade.
- É uma organização ramificada em muitos países, principalmente na Europa e Américas. Para mim é algo como a minha própria casa. Lá estão meus irmãos, pais, tios – toda a minha verdadeira família, constituída em milhares de anos. Na irmandade reencontrei-me; vi qual era a missão a cumprir. Pela irmandade trabalho dia e noite com amor e dedicação.
- E qual o motivo de mostrarem-me? Sorman calou-se; a resposta era óbvia demais para Anita desconhecê-la.
Eram quase seis horas da tarde daquele mesmo dia quando Sorman atendeu sua última ligação.
- Anita?
- Sorman, você pode passar aqui no endereço de meu trabalho e levar-me para casa?
- Sim, naturalmente. Aconteceu alguma coisa?
- Eu gostaria de conversar um pouco mais sobre o assunto de hoje no almoço. Estaria atrapalhando alguma coisa?
- Absolutamente – ele sorriu – lá estarei por volta das seis e meia.
Sorman estacionou defronte a casa de Anita. A noite caíra; centenas de insetos rodopiavam em torno de lâmpadas acesas nas varandas e postes da rua. Era setembro, este sinal prenunciava calor ou tempestade.
- Poderei levá-la diretamente ao Superior e apresentá-la. Esta será uma grande vantagem. Ele a avaliará pessoalmente, como aconteceu comigo. Entretanto acharia... - ele interrompeu o pensamento.
- Sim, diga!
- Seu companheiro. Seria melhor você conversar antes com ele. Esta decisão, embora pessoal, é de grande responsabilidade; é melhor chegarem logo a um acordo.
- Não há companheiro – ela falou olhando para adiante, através do para-brisa – não há filho, não há nada. Minha mãe mentiu. Aquela criança é meu sobrinho; jamais me casei; jamais tive filhos!
Sorman navegava de uma revelação a outra. Aquilo lhe devolvia todas as esperanças. Ele estendeu a mão e alisou-lhe os cabelos.
- Anita, perdoe-me!
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Sorman voava. Alguma coisa ou alguém o puxava; ele não conseguia reagir, a nada permitir-se. Mas sentia-se bem, como no dia em que Ratziel o conduzira à extraordinária paragem no paradisíaco lugar. Ratziel, por que não? A sensação desse momento era a mesma daquela noite, do alvorecer, do vitorioso momento! Mas para onde o conduziria, a um novo campo de provas? A mão direita, um pouco afastada da cabeça, achava-se aberta como se estancasse no ar, num aceno; o rosto elevava-se completamente procurando entrever; o outro braço largava-se para baixo, ao longo do corpo distendido. Naquele suave voo – um flutuar doce e dirigido – suas vestes brancas ondulavam ao sabor do brando vento, a exemplo de um estandarte de paz; o símbolo dourado da irmandade reluzia-lhe ao peito.
Então ele o viu. A visão foi precedida de um clarão; o rebrilho da luz abriu-se em seguida como pétalas unidas de uma grandiosa flor, e a imagem de seu condutor materializou-se diante de seus olhos. Ratziel o amparava pela mão com o braço levemente dobrado e o tronco acima de sua cabeça; o outro braço se elevava retamente ao máximo, com mão aberta e dedos unidos, como se buscasse tocar o cume do universo. Os dourados cabelos derramavam-se sobre as costas, oscilando em mansos e comportados movimentos, lembrando o refluir de pequenas ondas de um mar contido. Estava em azul. A veste solta de largas e compridas mangas o cobria até o meio das coxas; trazia bordas em ouro margeando a gola, ao lado externo dos braços e a barra. As bordas eram complementadas por preciosas e multicoloridas pedras ao longo e ao largo de sua total extensão. A veste – tipo dos mandarins dinásticos – abria-se ao peito onde deixava à mostra um medalhão prateado, preso a um cordão de mesma cor e metal, envolvendo-lhe o pescoço. O espesso medalhão detinha a forma de um símbolo de sete pontas, a significar raios de diferentes tamanhos em fuga de um disco. As calças justas, com frisos internos e externos em mesmo ouro, vinham penetrar as botas de canos meio curtos, subindo-lhe até pouco além dos tornozelos. Majestático, soberano, rei dos ares, Ratziel parecia a tudo ignorar naquela aparente e assumida imobilidade. Unicamente voava: impenetrável e misteriosa esfinge!
Era madrugada, o Sol ainda surgiria por sobre a imaginária linha do horizonte. O céu vestia-se do negro manto. O vislumbre da real imagem e seu revérbero vieram e se foram como num flash fotográfico, ficando em Sorman tão somente as impressões mentais. Acima de tudo via o distante e inalcançável firmamento: mas Ratziel ali estava! Aquela viagem terminaria no ápice de um pico em direção do oriente. Era altíssima pedreira, e tendo pousado, ele olhou para baixo nada vendo, exceto intensa escuridão. Com que propósito teria vindo a este inóspito lugar? Inquiriu-se novamente, olhando para o alto a contemplar a abóbada celeste com redobrada atenção.
- Sentai-vos! - Ratziel ordenou-lhe invisivelmente e ele procurou uma rocha abaulada nela se acomodando. - Fechai os olhos, soltai-vos mentalmente. Ao obedecer, Sorman sentiu perder todas as referências, entrando por um espaço sem dimensão ou forma. Logo se viu diante de gigantesca nuvem escura, tão imensa que nada mais conseguiria divisar além dela. A nuvem carregava-se de faíscas, raios e relâmpagos, produzindo um ruído de permanente descarga. Era eletricidade pura!
Ele sentiu um impulso de lançar-se para o interior daquela temível formação, mas conseguiu resistir por um momento. Seria como mergulhar no inferno, imaginou! Entretanto, sem mais forças, foi arremessado para dentro dela à espantosa velocidade, vendo unicamente escuridão, faíscas e reflexos de raios. Quanto viajava, ou a que velocidade se deslocava, jamais saberia, mas pouco depois o percurso chegava ao seu final sem que nada lhe tivesse acontecido, e ouvia um troar contínuo e terrível após a nuvem. Era qualquer coisa aterradora, de novo assombrosa; ele tremeu relembrando o som abismal da energia-forma primária ao ser gerada no incrível turbilhão daquele monumental vórtice. Sem dúvida, ela se aproximava, já formara em sua trajetória um agregado de substância eletrificada com polaridade negativa. Como acontecera se fora energia-forma virginal?
Ante essa inquisição, ele foi arremessado para outro cenário, vendo a energia-forma primária invadir espaços em sistemas solares, mergulhar para a superfície e interior de orbes, causar o caos. Essas imagens já as tinha visto, mas agora acompanhava, quase incrédulo, a continuidade delas: a energia saída dos orbes deixava um rastro de destruição e mortes, levando consigo formas escuras. Essas formas, a cada nova incursão da energia primária sobre outros mundos e à sua saída, aumentavam consideravelmente em volume. A destruição era mais rápida à medida que a energia dava novos mergulhos, provocando maiores turbilhões, incitando homens a realizar guerras e mortandades!
O troar da energia primária, as estrondosas trovoadas, o ruidar contínuo da eletricidade na escura nuvem, todas essas coisas iam deixando-o atordoado; ele lamentava intimamente a destruição que lhe fora mostrada. Súbito, viu-se novamente diante da temível e escura nuvem. A nuvem pareceu-lhe agora mil vezes mais sinistra, potencialmente destrutiva e derrocadora alma do mal!
A nuvem começou a abrir-se. Raios e faíscas atravessavam-na. Ela dividiu-se plenamente, separando-se em duas metades e a fenda tornou-se ígnea. Algo incandescia nesse espaço aberto resultando em negras cinzas. Era tudo incrível, imensurável – a fenda, as cinzas, as partes separadas da nuvem! O troar da energia primária tornava-se aos poucos mais intenso, aterrador! Então as cinzas se moveram configurando uma imagem espectral e monstruosa – paradoxal, se comparada em proporções cósmicas a uma satanizada fênix – algo ao inverso de tudo que nenhum místico, poeta ou mago desejaria contemplar. Fantasmagórica e abismal a Grande Face Negra ressurgia dantesca, assomava-se de novo incrivelmente ameaçadora, precedida agora de um profético e veiculado sinal de destruição. Rapidamente, de uma impressão planificada, tornava-se tangível; adquiria comprimento, altura e profundidade, e apesar de infinitamente menor do que na primeira aparição, era não obstante monumental. Estava viva, movia os olhos externando novamente um ar diabólico e sorriso sarcástico. Seria um Armagedom, um inferno cósmico, um fantástico leviatã que chegava para punir a Terra e seus habitantes!
A lenta voz foi de novo ouvida como o atrito de muitos metais pesados e de forma mais dramática ainda. Falava-lhe desta feita direta e pessoalmente, invadia-lhe a mente em seguidos trovões; a cabeça de Sorman parecia querer explodir. A voz disse-lhe: “Sou a morte, a destruição; o termo final sou eu. Quem desejar enfrentar-me que diante de mim se levante!”. Raios, faíscas e trovões retornaram mais intensamente. A Grande Face Negra desapareceu; a nuvem fechou-se e o ruído contínuo de descarga voltou a produzir-se.
Sorman sentia-se tonto, a cabeça doía-lhe como nunca e foi projetado de volta para o pico. Uma vez ali, viu-se sentado na mesma rocha abaulada. Trouxe as mãos à cabeça fechando os olhos, ficando assim por vários minutos. Mas a dor permanecia. Ao abrir os olhos notou o horizonte a clarear. A visão estava turva e alçou o olhar para mais distante onde já era possível ver contornos de picos ou montanhas.
Sentia frio. Uma corrente de ar soprava e um pequeno tremor pareceu despertar-lhe definitivamente aliviando-lhe a dor. Ele se levantou mantendo o olhar na direção do nascente. A voz de Ratziel foi novamente ouvida:
- Chegai-vos à beira do abismo! – um tanto temeroso, vacilante, ele obedeceu. Ratziel tornou a comandar: - olhai fixamente para as sombras que abraçam este pico; penetrai-as com vosso olhar! Sorman olhou para baixo onde as sombras dentro em pouco iriam se diluir. Ratziel continuou:
- Olhai mais profundamente! Sorman concentrou-se procurando fazer o que o gênio mandava. Ao ato consciente, surgiram formas de todos os tipos buscando escalar o liso pico. Eram homens animalizados, muitos simiescos, outros peludos como grandes ursos. Havia homens-répteis escamosos, inúmeros com caras vampíricas, mostrengos; seriam milhões! Pulavam uns sobre os outros, pisavam-se na ânsia de subir, estendiam as mãos! Sorman foi tomado de estremecimento e horror. Então eles desapareceram, voltando as sombras a cobri-los.
- Vinde a este lado, olhai! - chamou-o Ratziel. Sorman encaminhou-se para o lado oposto e mirou novamente a profundidade do abismo. De novo as sombras se abriram, assomando um mar de milhões de cabeças que se estendia a perder de vista. Da mesma maneira, como as criaturas do outro lado, os que estavam próximos ao pico amontoavam-se uns sobre os outros tentando subir pelas paredes. Eram homens, mulheres, jovens e crianças de todas as raças com faces enegrecidas e olhos dilatados; havia-lhes um ar cruel na fisionomia: soltavam gritos e imprecações.
Sorman afastou-se, elevando instintivamente o olhar para o alto. O céu mostrava-se nesse instante com maior claridade; as estrelas desapareciam: somente um ou outro astro detinha ainda algum brilho. Apreensivo, com olhar fixo no céu, ele murmurou palavras impregnadas de lamento e dúvida:
- Eles buscam alcançar a nuvem escura; já perceberam a sua proximidade; terrível vingança da Grande Face Negra. Conteremos a energia primária ou o Deus Inverso conseguirá o seu intento? Mas haverá como enfrentarmos a nuvem se antes não sabíamos de sua existência?
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O semblante de Bruno tornava-se cada vez mais sombrio à medida que Sorman relatava. Ao final, sobreveio-lhe um sentimento de assombrosa dificuldade que, agora, mais do que nunca, a todos acompanharia. Essa atmosfera emocional vinha combinar-se com o próprio tempo. Chovia. Nuvens cinzentas e carregadas dominavam sob o céu; havia peso no ar; a liberdade da natureza parecia oprimida por uma ação asfixiante de cima. A luz infundida no estúdio através das vidraças cerradas não era satisfatória, e Bruno houvera acendido o abajur de pé.
Terminado o relato, Sorman arcava-se para tomar outro gole do chá oferecido por Lucen, que já esfriara. Bruno inspirou profundamente apoiando os braços sobre a mesa entrelaçando os dedos; desejava não acreditar no que ouvira.
- Irmão Sorman – começou exalando o ar retido – jamais suspeitaria do que se tratava ao sintonizar-me com seu sinal telepático pela manhã. Realmente justificam-se o seu pedido de entrevista e a necessidade de termos cancelado os nossos compromissos profissionais nesta quarta-feira. Eu nada sabia da sua incrível viagem ao comando de Ratziel. Há coisas, irmão, somente destinadas aos eleitos. Admira-me sua coragem; enche-me de respeito sua missão crucial. A agonia pela qual você passou é por mim somente imaginável. Raros em nossa irmandade teriam condições de a isso suportar. Entretanto, estou agora profundamente preocupado com o fato em si para melhor dimensionar o seu papel, perdoe-me.
Sorman meneou negativamente a cabeça. Tinha olheiras; o rosto revelava profundo abatimento sinalizando perda de vitalidade. Não era o propósito ouvir essas palavras. Mas não conseguiu redarguir por que Bruno continuou:
- Necessito isolar-me para meditar sobre as revelações. O Todo-Poderoso dê-me alguma inspiração.
Ambos deixaram o estúdio. Lucéa veio encontrá-los no portal da varanda. Sorman se deteve para falar-lhe enquanto Bruno se despedia, abrindo o guarda-chuvas, e rapidamente descia. Lá em baixo contornava a casa sumindo de vistas.
- Meu Deus, como você está abatido! O que aconteceu? - ela espantou-se, mas logo o cumprimentou com beijos na face.
- Saldos de guerra - ele sorriu. Ela olhou-o com mais atenção. Trazia uma bolsa de loja numa das mãos e na outra a sombrinha fechada e encharcada. Uma rápida vibração tocou-os e um zunido perpassou-lhes os ouvidos.
- A situação está difícil, Sorman, não há como nos enganarmos. Pressinto muitas lutas; o futuro é incerto. Ela sentiu-se vacilante; um distante som foi ouvido, assemelhando-se a muitos trovões sem fim. Aquilo se tornou mais audível e uma tonteira sobreveio-lhe. Ela largou o que trazia ao chão afastando-se dois passos, encostando-se no corrimão de madeira. Sorman aproximou-se e ela apoiou-se no seu antebraço, trazendo a outra mão à testa, roçando-a com as pontas dos dedos. Inspirou profundamente, reteve o alento e exalou, largando-lhe o braço.
- Está tudo bem, ouvi algo jamais ouvido antes, mas já me recuperei. Sorman descanse no quarto de hóspedes, vou preparar-lhe um bom almoço. Lucéa falava como se tudo de fato tivesse passado; em realidade ainda ouvia o distante eco daquele estrondoso som.
- Não se preocupe, vou para casa descansar. Grato pelo convite.
- Está bem, mas descanse de verdade.
Na despedida, ela o abraçou fortemente e o beijou.
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Sorman acabara de adentrar o estúdio quando alguém bateu à porta. Ele voltou para abri-la.
- Senhor Mendez!
- Como vai, Sorman, posso entrar? – perguntou em espanhol.
- Naturalmente, venha, sente-se. Eles se acomodaram. Mendez diante da mesa começou a explicar-lhe:
- Bruno fez contato comigo de seu retiro. Ele me projetou telepaticamente o quadro daquilo presenciado por você em sua viagem no espaço-tempo. As imagens mentais são sem dúvidas impressionantes. Depois disto vim ao estúdio do Supremo aqui na Grande Casa a fim de nos entrevistarmos.
- De fato, fiquei estarrecido diante do que a visão me revelou.
- Imagino. Mas o que me traz hoje aqui é outro assunto. Bruno, por sua impossibilidade, solicitou-me elaborar um plano a fim de tentarmos libertar das mãos dos malignos os irmãos prisioneiros em nosso próprio núcleo. – Sorman ficou mais atento, os negros olhos aguçaram-se externando brilho de expectativa – você é o substituto em exercício do Supremo para determinados assuntos por ele autorizados, e ele o está autorizando a opinar sobre a possível ação contra os inimigos da luz.
- Eles estão fortemente armados cerrando fileiras em torno do núcleo. Possuem centenas de soldados somente de guarda.
- Sabemos disto, por essa razão devemos planejar a operação de resgate com o mínimo possível de confrontos, pois não nos interessa neste momento reiniciarmos a guerra.
- E se eles entenderem a ação como o reinicio dos combates, vindos prontos para guerrear?
- É um risco a correr, mas não acredito nessa possibilidade por que a ação planejada contará com poucos homens. A hipótese aventada pelo Supremo é a meu ver correta. Eles somente responderão com ataques se pressentirem que os outros núcleos não estão devidamente guardados.
Sorman refletiu, aproveitando-se da pausa proporcionada por Mendez, e logo comentou:
- Não sabemos, realmente, da amplitude de suas forças nesse exato instante. Esse é um grande problema. Eles, sem dúvida, possuem um exército poderoso com milhares de soldados aguardando o melhor momento de nos atacar, independentemente de nossas posições estarem ou não fortalecidas.
- Desta feita não nos pegarão de surpresa - o sorriso esboçado por Mendez era de total confiança.
- E como poderemos obter vantagem na operação? Qual é o plano?
- Vou mostrar-lhe; venha comigo e julgue por você mesmo.
Saíram percorrendo os corredores em direção a outros estúdios, atingindo o átrio principal do edifício cercado por quatro varandas em arcos. O pátio tinha vasos e canteiros a sua volta onde verdes folhagens e trepadeiras vicejavam. No centro, um repuxo circular com alva e grande estátua representando a Mãe Natureza rodeava-se de pequenas outras divindades, simbolizando as quatro estações do ano. Em torno, doze esguichos lançavam filetes de água descrevendo quase elipses.
O chão do pátio cobria-se de lajotas vítreas transparentes, grandes e retangulares, cujos interiores eram percorridos por filamentos lineares em diversas cores. À medida que andavam, os filamentos se acendiam eletricamente. A luz sobre o pátio, branca ou rosa, provinha de focos embutidos nas paredes, disfarçados com desenhos de grandes e coloridas pétalas compondo flores. Era acrescida de outra luminosidade derramada dos focos de dois altos postes em cantos opostos, com braços em cruz. Possuía qualidade indescritível; tinha amplo e claro brilho sem reflexos, e ao tocar corpos transmitia a sensação de lançar suaves ondas, sendo possível observá-la diretamente sem provocar qualquer reação ou contração nos olhos.
Adiante, o Superior e o Ministro Extraordinário cruzaram uma das varandas ingressando por um novo corredor, dirigindo-se às câmaras da outra ala do edifício. As portas estavam naturalmente fechadas e após pequeno percurso pararam diante de uma delas, que o Superior abriu adentrando.
A câmara era completamente azul, enquanto as janelas tinham vidros coloridos matizando o ambiente. Um móvel revestido de larga pedra mármore esverdeada, disposto ao longo de toda a parede, tinha espalhados instrumentos e objetos de vários modelos e tamanhos, e pequenas ferramentas. Da parede, saiam quatro braços metálicos, maleáveis, a distâncias iguais, com focos acesos nas extremidades. Dois homens com roupas protetoras brancas, com o símbolo da irmandade no peito, de luvas plásticas meio transparentes, cor de chumbo, e óculos especiais, trabalhavam num determinado equipamento semelhante a um capacete aberto, composto de duas tiras superiores em cruz, ligadas a uma terceira. Noutro canto da câmara, uma jovem clara, de cabelos negros à meio tamanho, com vestes da irmandade, sentava-se numa das poltronas. Os homens, Juan e Otto, técnicos da equipe de engenharia eletrônica, sorriram ao saudar Sorman com o sinal, sendo respondidos, voltando a ocupar-se do equipamento. Os recém-chegados dirigiram-se para onde a jovem se encontrava e ela se levantou saudando Sorman com o sinal. Nem bem Sorman lhe respondia, Mendez explicou:
- A irmã Elisbeth, Quarto Mestre Menor do Terceiro Mestre Terra, que você já conhece, veio atendendo a um especial convite feito por mim. Ela possui a visão interna bastante desenvolvida, sendo capaz de realizar com excelência projeções a determinados lugares. Pretendemos fazer um estudo preliminar com seu concurso, avaliando possíveis condições com que nos depararíamos no caso de tentarmos resgatar os prisioneiros. Mas sentemo-nos enquanto aguardamos pelos outros.
Não se passaram cinco minutos, Michel adentrou a câmara acompanhado de uma senhora meio ruiva, um pouco obesa, e de dois homens bem morenos, quase negros, todos uniformizados. Ela era o Primeiro Ordenança do Primeiro Mestre Menor de Michel, e os homens, respectivamente, eram o Segundo e Terceiro Mestres Menores de seu departamento. Todos se conheciam e em pé se saudaram. O Superior voltou a explicar:
- Michel veio acompanhado de uma pequena equipe para juntar-se a Elisbeth, a fim de estarmos cercados da maior segurança e eficiência possíveis nesse nosso estudo. Marta é também vidente conceituada e virá dar suporte a Elisbeth, quando necessário. Marcos e Pedro destacam-se pelo poder mental, e certamente conseguirão eficiente concentração na empreitada.
O Superior determinou-lhes então as posições, deixando Elisbeth e Marta no centro de um círculo, juntando-se aos homens. Juan e Otto se aproximaram, trazendo o equipamento, ficando a dois passos. O Superior falou:
- Elisbeth e Marta fiquem despreocupadas, mas atentas. Estaremos sempre em torno de vocês formando uma aura de proteção. Vamos agora nos deslocar para as proximidades do núcleo onde se encontram os invasores. Nosso círculo virá colocar-se a certa distância atrás das linhas inimigas. – Ele então indicou-lhes o exato local e para lá se projetaram mentalmente – tudo certo, cubramo-nos agora com um manto negro, apesar da noite, a fim de que não nos percebam. O Superior invocou a um determinado gênio da hora noturna e ficaram submersos na sombra, então voltou a falar-lhes – Elisbeth procure lançar-se em direção aos domínios do inimigo; Marta siga-a de perto! Elas procuraram seguir as ordens.
- Que vê, Elisbeth? - perguntou o Superior alguns segundo depois.
- Nada ainda, há uma nuvem muito espessa que me impede ver com clareza.
- Marta?
- A mesma coisa. Trata-se de uma verdadeira cortina.
- Vejo agora vultos – atalhou Elisbeth – mas estou sentindo pequena fraqueza; os vultos aparecem e desaparecem.
- Atenção, irmãos, focalizem-se nas duas, enviem mais energia a ambas! - ordenou o Superior.
- Melhorou – disse Elisbeth – vejo agora soldados negros entre penumbras, são muito fortes e reúnem-se em vários pontos. Lá no fundo há uma porta, é tudo muito obscuro. Sinto-me asfixiada.
- Marta?
- Não consegui ultrapassar a cortina, nada vejo.
- Está bem, retornemos à câmara! Eles fizeram mentalmente o percurso de volta e abriram os olhos. O Superior sinalizou para Otto, que tinha o capacete à mão, dirigindo-se à Elisbeth:
- Elisbeth, vamos fazer a experiência agora. Ela assentiu e o técnico aproximou-se colocando-lhe o capacete. Após, Otto falou-lhe:
- Este capacete irá funcionar sob ondas mentais. Ele tem uma pedra verde ajustada ao seu chackra frontal, tocando-o. A pedra não é comum porque possui um dispositivo eletrônico implantado no seu núcleo. Há uma série de outros dispositivos ao longo da correia que passa em sua testa e cabeça bem como nas duas outras correias ao alto da cabeça. Elas formam vários circuitos integrados que responderão às suas ondas mentais. À medida que você for se concentrando, atraindo mais energia, verá com maior profundidade e nitidez, e os circuitos virão emitir sinais mais fortes captados diretamente por um vídeo. O vídeo e o capacete estarão a partir de agora sintonizados com as vibrações de sua mente. Daqui, acompanharemos e controlaremos, pelos sinais transmitidos ao vídeo, a quantidade de energia absorvida e necessária para manter sua concentração, e estaremos adaptando a energia à ação do capacete. Dessa maneira, eliminaremos o perigo de uma sobrecarga do capacete sobre o seu mental, nas respostas dos circuitos às suas necessidades. A pedra verde, por outro lado, trabalhará como uma lente de aproximação do foco sobre as imagens, auxiliando-a sobremaneira nos seus esforços, e evitando o desperdício da energia mental.
Otto afastou-se indo com Juan até o móvel de trabalhos, sentando-se ambos nas banquetas, ficando diante do vídeo. O Superior de novo comandou:
- Concentremo-nos e nos desloquemos de volta ao mesmo lugar onde antes estivéramos, detrás das linhas inimigas. Eles assim fizeram.
- Elisbeth, que vê agora? - perguntou o Superior.
- Imagens mais claras, embora ainda distantes. São os mesmos soldados negros conversando distraídos diante de uma porta fechada.
- E em torno e à frente do prédio?
- Sombras, vultos, tudo sob a escuridão.
- Muito bem, ouçam agora com atenção. Iremos todos caminhar em torno de Elisbeth e Marta, numa incursão ao interior do núcleo. Tentaremos furar a densa cortina de energia inferior construída por eles. Estaremos de novo sob um manto negro de proteção a fim de não sermos vistos. Espero que eles não pressintam estarem sendo espionados porque poderiam reforçar a guarda, dificultando com isso, mais tarde, a possível ação de resgate. Temos nisto uma vantagem e uma desvantagem. A vantagem é, no caso de sermos percebidos por um instinto ou sentido qualquer, nada poderem nos fazer de imediato porque nossas projeções são intangíveis do plano onde se encontram. A desvantagem, em contrapartida, é de nada podermos também fazer de concreto, exceto espionar e sentir. Mas é necessário que saibam da probabilidade – ainda que remota – de virmos a ser surpreendidos; e isso se dará se eles estiverem exercendo vigilância no plano onde estaremos projetados. Em assim sendo, precisaremos nos evadir do local rapidamente a fim de evitarmos confrontos. Tudo entendido?
Ao assentimento de todos o Superior invocou novamente o auxílio do gênio da hora noturna, ordenando-lhes iniciar o percurso. Eles foram penetrando por entre as fileiras inimigas sem serem detidos. Os soldados ocupavam-se em ora conversar ora olhar o vazio. O círculo passava dentre eles não lhes notando qualquer reação ou desconfiança. Atingiram o portão de entrada e o ultrapassaram. Neste momento Elisbeth fez sinal para que parassem e informou:
- A energia está cada vez mais opressiva, estou tendo dificuldade em focalizar os objetivos. Ajudem-me a me concentrar. Eles mentalizaram com maior vigor e novas energias os permearam. O capacete rebrilhou; pequenas luzes e faíscas correram através dos circuitos.
- A opressão passou, vejo bem melhor.
- Elisbeth – falou o Superior – tente visualizar a porta do pavilhão externo onde eles podem estar presos. Ela concentrou-se por alguns segundos e falou:
- Vejo a porta e alguns homens montando guarda, mas não consigo penetrá-la, preciso aproximar-me.
- Então vamos! - ordenou o Superior
- Estou diante da porta, tentarei ver através dela. - Elisbeth ficou imóvel em perfeita concentração e passados segundos falou com certo alívio - eles estão lá, agrilhoados uns aos outros!
- Há soldados lá dentro? - perguntou Sorman
- Não, no momento; vejo somente os prisioneiros!
- Atenção, todos, pressinto perigo! - alertou subitamente o Superior. Elisbeth passou a ver o que acontecia, relatando-lhes que do interior do edifício surgira um ser vestido de negro, com capuz e dois pequenos cajados nas mãos, falando e ordenando aos homens. Eles correram a todas as direções se espalhando. O estranho ser gritou palavras ininteligíveis batendo os instrumentos um contra o outro, semelhantes a dois bastões encurvados nas extremidades, e uma explosão de luz acinzentada, sem brilho, incendiou o espaço. Alguns soldados subiram pelo telhado enquanto outros percorreram os cantos da propriedade.
- Vamos sair rápido, eles nos pressentiram! - comandou o Superior. O grupo projetou-se para fora do núcleo, retornando em consciência para a câmara na Grande Casa.
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- Saudações, Sr. Mendez, e nobres irmãos fraternais. Nicolai fez o sinal, dobrando-se ante o Superior, repetindo o gesto para os outros, que lhe responderam.
- Boa noite, irmão e guerreiro – acentuou o Superior, quase em espanhol – está tudo coordenado? Nicolai sorriu. Pela primeira vez Sorman o via sorrir; ele parecia excessivamente confiante e por demais honrado. Vestia-se exatamente como na noite em que o conhecera. Sem apagar o sorriso, ele volveu ligeiramente o corpo para a direita e estendeu o braço apontando:
- Estão todos ali sob o arvoredo, aguardando a ordem para entrar em ação. Eles sabem exatamente o que fazer.
- Muito bem, Nicolai, vamos então reconfirmar se nossa incursão se dará no mesmo local de antes.
Mendez olhou para Elisbeth e acenou afirmativamente. Sorman e Michel, respectivamente, ladeavam-na. Ela imediatamente começou a se concentrar e o capacete eletrônico se acendeu em sua cabeça. Rápidas sequências de pequenas luzes se cruzaram em correntes em direção da pedra verde. Essa, sobre a testa da vidente, tornou-se translúcida e vibrante. Elisbeth, de olhos fechados, fez lentos movimentos de cabeça, varrendo o espaço adiante. Depois se voltou para o Superior, comunicando-lhe:
- Vou aproximar-me do pavilhão como na última vez, por favor, deem-me cobertura.
Nos momentos seguintes ela pareceu sem vida, petrificada; eles, embora concentrados, olhavam-na com certa apreensão. Segundos depois, Elisbeth moveu-se e confirmou o que todos verdadeiramente desejavam ouvir:
- Os prisioneiros permanecem no interior do pavilhão, agrilhoados uns aos outros, como já os houvera visto!
- Certo, irmã, retorne agora e reassuma os seus sentidos! - ordenou-lhe o Superior e pouco depois ela abria os olhos e sorria, trazendo as mãos à cabeça a fim de retirar o capacete.
O Superior dirigiu-se a Sorman e Michel:
- Permaneçam junto à Elisbeth durante toda a ação; não se ausentem daqui sob qualquer hipótese. Vamos iniciar a manobra número um.
Tênue, porém suficiente faixa de luz de um dos postes da estrada, próximo dali, se insinuava sobre a verde relva. Mendez afastou-se alguns passos, permanecendo concentrado sob a penumbra. Logo viram à distância uma nave sobrevoar e projetar raios sobre o solo. Outra nave veio em seguida, de direção oposta, lançando bombas onde o exército inimigo se posicionava, provocando estrondos e clarões. Isso causou grande rebuliço entre eles e começaram a se agitar, preparando-se para combater. Corriam, tomavam posições de ataques e se lançavam ao solo.
A primeira nave sobrevoou o exército, passando a lançar-lhe bombas de energia e luz que cegavam os soldados momentaneamente; eles se jogavam ao solo com mãos nos olhos. Alguns conseguiam atirar em direção da nave, mas estando o seu escudo invisível acionado os impactos eram absorvidos.
- Atenção, manobra número dois! - gritou o Superior.
A primeira nave apagou-se completamente e no mais perfeito silêncio, protegida pela escuridão, contornou as linhas dianteiras do inimigo, vindo surgir a alguns metros de onde os homens da irmandade se encontravam. Estancou no ar à pequena altura, e acendeu abruptamente três fortíssimos fachos de luz cegando os soldados inimigos. A outra nave, em posição mais alta e afastada dali, continuava a lançar bombas, prendendo-lhes a atenção.
- Homens, avançar! - gritou Nicolai. Um grupo de guerreiros surgiu dentre as sombras correndo rapidamente sob a nave, avançando e abatendo os inimigos estonteados que iam encontrando, jogando-os imobilizados ao solo. A nave passou a mover-se lentamente dando-lhes cobertura, ao mesmo tempo em que continuava a lançar os fachos de luz em todas as direções. Ao chegarem às proximidades do núcleo, a nave estancou, mas os guerreiros prosseguiram invadindo rapidamente o local, encontrado somente fraca resistência dos soldados, que eram postos imediatamente fora de combate.
O estranho ser surgiu por sobre o telhado do edifício, aproveitando-se de um momento em que um facho de luz da nave fora projetado para o outro lado, esfregando e batendo os dois cajados enquanto gritava. Porém, outro fortíssimo facho de luz veio em seguida e o atingiu em cheio, obrigando-o a levar os braços sobre o rosto, ficando assim momentaneamente paralisado. Seus homens, no entanto, atraídos por seus gritos se aproximaram em grande número, começando a abrir fogo contra a nave. A segunda nave, ainda atirando, e sob inclemente bombardeio, aproximou-se da primeira e também estancou no ar. Os inimigos eram muitos e na medida em que iam caindo, vinham falanges sobre falanges, que chegavam atirando.
Ao longe, uma nave negra surgiu para vir combater a irmandade. Os soldados inimigos ao verem-na gritaram e comemoraram. A segunda nave da irmandade então se afastou a fim de atraí-la à sua perseguição e sem se evadir das cercanias continuava a fazer manobras e a atirar sobre o exército. A nave negra aproximou-se mais e disparou-lhe um grande e poderoso projétil, atingindo seu campo gravitacional, provocando enorme explosão e desequilíbrio.
- Rápido, homens, não temos muito tempo! - gritou-lhes, Nicolai, empunhando o bastão metálico, protegido aos flancos por dois guerreiros, lançando-se sobre os inimigos. Aqueles, tontos pela luz, desnorteados pela surpresa do ataque, apesar de manipularem com seus mágicos tridentes, não conseguiam opor resistência ou conter os avanços dos homens da irmandade.
A segunda nave houvera atraído a total atenção da nave negra, mas concentrava-se agora em responder aos seus ataques, ficando assim impedida de atirar no exército. Com isso, os soldados situados além das faixas dos três focos da primeira nave, protegidos pelas sombras, começaram a atirar à distância sobre os homens de Nicolai. A primeira nave estacionada a pouca altura do núcleo, foi então obrigada a dividir-se entre dar cobertura aos homens de Nicolai, com os fachos de luz, e a atirar bombas sobre o contingente do exército fora do núcleo. Como resultado, o ser de negro teve tempo para recuperar-se da paralisia que a forte luz lhe provocara e lançou-se em direção dos invasores, saltando de sobre a casa para diante do pavilhão. Ao vê-lo, Nicolai correu pretendendo pular sobre ele, mas o ser trouxe os cajados diante do peito, esfregando-os, e novamente gritou. Uma luz negra explodiu atingindo Nicolai, lançando-o de costas ao chão. Seus guerreiros hesitaram ao vê-lo caído e imóvel. O ser de negro riu e juntou os cajados para nova ação.
A luz negra se espalhava como viscosa fumaça, obscurecendo os espaços. Os fachos de luz da nave, ali, nesse momento, não produziam o mesmo efeito de antes e os soldados inimigos começavam a se recuperar do estupor que os dominara. A reação do ser de negro fora realmente vigorosa, haveria agora a oportunidade da inversão de toda adversidade. O segundo ato provocaria nova comoção entre os da irmandade, mudando de imediato o curso dos combates. Porém, ele estancou os movimentos ao ver, súbita e surpreendentemente, a figura do Superior Mestre Terra diante de si. Sua imagem tomava-se de um insólito surrealismo, pois uma clara e luminosa aura o envolvia, ao mesmo tempo parecia ter se assomado das entranhas das próprias trevas. Como aparecera por aqui? Mas que oportunidade para acabar com ele! Pensou o ser de negro, sorrindo com grande satisfação, demorando-se em friccionar os cajados.
O Superior, aproveitando-se do fator surpresa e providencial cochilo do inimigo, gesticulou com energia, gritando três palavras mântricas. Um raio partiu de suas mãos indo chocar-se contra o peito do ser de negro, lançando-o para trás de encontro ao pavilhão, fazendo-o cair ao chão estatelado. Vendo-o abatido, o Superior se aproximou e arcou-se, colando-lhe o indicador sobre a testa, mencionando novas palavras. O inimigo proferiu então um grunhido, estremeceu e estrebuchou, ficando totalmente inerte.
- Eis o seu líder! - gritou para os soldados negros. Eles, estupefatos, estancaram, e o Superior aproveitando-se do momento comandou: - rápido, homens, tragam os prisioneiros para fora. Os homens de Nicolai arrombaram a porta do pavilhão, aproximando-se dos prisioneiros e romperam com as mãos os grilhões que os atavam, carregando-os sobre os ombros.
Não houve outra qualquer reação inimiga e puderam sair normalmente, sem precisar mais lutar. Um dos guerreiros de Nicolai o tomou do chão e o jogou, inconsciente, sobre os ombros, trazendo-o juntamente com os demais para um veículo que os aguardava. O veículo achava-se protegido pela primeira nave, que, apesar de tudo, continuava a combater uma parte do exército que não sabia ainda da derrota de seu líder. Mas algo acontecia com eles, e perdiam as forças.
Estando os prisioneiros resgatados a caminho do hospital da irmandade, os homens de Nicolai se foram dentro da escuridão. A primeira nave lançara-se em socorro da outra, começando a atirar sobre a nave negra. Ela, sob dois fogos, foi obrigada a bater em retirada, terminando assim, de maneira definitiva, os combates.
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- Como está, Nicolai? - perguntou-lhe o Superior, após ter feito o sinal. Uma atadura envolvia sua testa e cabeça; outra lhe tomava todo um braço e ombro. Ele respondeu ao sinal com a outra mão.
- Muito bem, senhor, eu quero sair, mas eles não querem deixar! Ele falava com ar de censura, com sotaque próprio, puxando como sempre nos “erres”, não parecendo com isso eslavo.
- Não sairá antes do tempo, isso é certo, eles sabem o que fazem - redarguiu Mendez. Sorman e Michel haviam se colocado do outro lado da cama e Nicolai sorriu-lhes, fazendo o sinal, sendo respondido.
- Foi uma grande batalha, pena ter acabado antes para mim. Desta vez fracassei diante de meus homens - lamentou o internado.
- Nada disso, comandante, sua atuação foi decisiva; o que lhe aconteceu foi inevitável - confortou-o Michel.
- Soube que o Superior acabou com ele - Nicolai virou-se para Mendez.
- Tive sorte, poderia ter sido alvejado como você.
- Modéstia, Sr. Mendez, sua ação foi infalivelmente rápida e calculada. Ele não conseguiria superá-lo.
- A operação foi perfeita; não perdemos um só homem: todos foram heroicos! - afirmou Mendez.
- Como está a situação agora? - perguntou Nicolai.
- Eles debandaram ao saber que seu líder houvera sido abatido. O núcleo é novamente nosso; a ação deu resultados acima do esperado - respondeu Michel.
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No plano terra, o núcleo voltara a ter a presença de seus principais dirigentes. Logo iniciaram um trabalho de desmaterialização das formas negras ali deixadas. Por processos mágicos, esotéricos e científicos buscaram também desfazer os focos da energia negativa implantados pelos inimigos. Por outro lado, os três irmãos hospitalizados davam mostras de recuperação. Os dois que juntamente com os demais prisioneiros tinham sido resgatados pelos guerreiros de Nicolai, e haviam estado inconscientes por vários dias, acordaram lucidamente, respondendo às perguntas dos médicos. Embora nada soubessem dizer do acontecido, mostraram satisfatório raciocínio e mais tarde perfeitos reflexos.
Enéas recebera a boa notícia de que o ferimento mais grave de sua perna começava a ganhar melhor aparência, afastando com isso o espectro da gangrena, pelo menos momentaneamente. Fariam novos exames a fim de decidirem se avançariam no tratamento. Até então, a terapia aplicada somente estabilizara o quadro. Ele sorriu satisfeito com a notícia. Em sua mente surgiam imagens de outra equipe médica, a colocá-lo sob estranhos equipamentos que emitiam raios sobre seus ferimentos em diversas frequências e tonalidades. Vez por outra, via a aplicação de um pequeno instrumento ligado a um tubo azul transparente, onde existia um líquido ora rosa ora amarelo. O instrumento perfurava-lhe a veia do braço, inseminando o líquido como algo fervente, porém de rapidíssima ação, a lhe percorrer todo o sistema circulatório, provocando pequenos tremores em seu corpo. Mas a isto se seguia uma sensação de fortalecimento e aplacação das dores na queimação interna, ou tumor, como o denominaram os médicos da Terra.
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Um profundo fragor de imensas ondas trouxe Sorman a acordar assustado e sentar-se. O fenômeno permaneceu ainda em sua mente por mais de um minuto. Ele o ouvia perfeitamente e sacudiu a cabeça como a querer expulsá-lo; depois se levantou indo até a janela. Estava escuro, não havia nuvens nem luar; o plácido céu pontilhava-se das minúsculas luzes em infinita monotonia.
O frescor da madrugada o envolvia em rápido abraço, mas não o suficiente para arrefecer a ardência em seu rosto. O fantástico ruído cessou de súbito, porém a mente continuou a dimensioná-lo em repetida cadência. Ele esforçou-se por emudecê-lo, mas o eco insistia. Procurou acalmar-se; agitara-se; sentia-se refém de algo desconhecido. Voltou à cama e de imediato uma sensação de grande angústia e medo desceu sobre si.
- Meu Deus, ela está vindo! - sussurrou entre um misto de terror e incredulidade.
“Bruno, Bruno, onde está?” Ele tentava comunicar-se telepaticamente. Tentou o Superior, nada também conseguindo. Sentia-se só e abandonado. Atordoado, trocou de roupas e desceu à sala, depois pelo pátio encaminhou-se à garagem. Porém, mudou de idéia: aonde iria afinal a essa hora da madrugada? Sob a negra atmosfera a cabeça esfriava e buscou o pequeno alpendre próximo da piscina. Protegido, sentou-se numa cadeira ali permanecendo.
As circundantes sombras eram somente penetradas de leve pelas luzes das lanternas dos pequenos postes e holofotes sobre o gramado. Essa supremacia do manto escuro evocava-lhe a sensação do abandono e impotência que pretendiam acovardá-lo. Como tentativa de reação, desejou levantar-se e andar. Mas desistiu atormentando-se, e ainda que mergulhado em angústias, percebeu perfeitamente uma imagem clara e nítida vir descendo e alojar-se em sua mente.
- Rama! - exclamou entre um misto de surpresa e alívio. Fechou então os olhos procurando concentrar-se nele. Um suave torpor veio aos poucos tomá-lo; uma vibração de paz o permeou.
- Discípulo, tenhais calma. As forças negativas vos estão cerceando, não as permitais grassar. Usai o vosso poder mental, dissipai-as! Ele lembrou-se do medalhão e o puxou de sob a camisa, colando-o à testa concentrando-se.
- Fiat Lux! – finalmente pronunciou.
Um redemoinho formou-se em sua mente; ele via pontos de luzes em círculos menores que se ampliavam em órbitas cada vez maiores. Eram milhões; suas velocidades aumentavam gradativamente conformando cordões cintilantes. Os cordões viajavam rapidamente; ele os percebia a envolver sua casa, a Casa Rosa, a casa de Bruno, o núcleo de onde os malignos haviam sido expulsos, a Grande Casa das Câmaras e Estúdios, a cidade, o país, finalmente o planeta. Sorman sorriu ao constatar que a luz prevalecera e soltou o medalhão. Nesse momento viu Rama por inteiro a sorrir-lhe. O velho mestre, de cabelos longos e encanecidos, divididos sobre ombros e costas, vestia-se com a simplicidade de sempre. Envergava tão somente uma túnica branca, até à altura de seus tornozelos de pés descalços. A alvura daquela veste resplandecia.
- Vistes, discípulo, como vossos poderes não só expulsaram as trevas, mas iluminaram também a irmandade e o planeta? A mente em luz, por ela só, é capaz de mudar o rumo de tantos acontecimentos, evitando desastres.
- Mas quanto aos outros? Bruno, senhor Mendez, por que não atuaram?
- A cada um o seu momento. As trevas se concentraram em vós, isolando-vos, tentando anular-vos. Preparai-vos, discípulo, a luta maior vai começar. Nós, os Mestres Maiores, já estamos atentos e prontos a agir. A irmandade e aqueles alinhados precisarão realizar conforme planejado. Sorman quis saber algo mais. Rama trouxe os dedos indicador e médio unidos ao coração, depois à testa, sorriu e desapareceu.
CAPÍTULO XVII
A GRANDE LUTA
- Concentração, irmãos, não se distraiam, não larguem as mãos! - gritou-lhes o Supremo. Um tremor, em colossal frêmito, espalhou-se pelos iniciados. O círculo interno, com Bruno e outros graduados, detivera a primeira onda.
Novo frêmito; alguns em transe soltaram gemidos e murmúrios; corpos agitaram-se convulsionando. Eram dezenas com mãos excessivamente apertadas, temendo deixar aquela energia primária escapar. Havia rostos crispados, tensos, pálidos; as fisionomias se alteravam, contorciam.
A tarde estava fria; muitos tinham gorros de lã enfiados nas cabeças, ou capuzes. Todavia, testas umedeciam, deixando escorrer gotículas de suor aos olhos e sobre as têmporas. Nuvens negras, espessas, se aproximavam; raios e relâmpagos rasgavam o céu; trovões ribombavam. Um vento quase gélido começou a correr; eles sequer o notaram.
Bruno estendeu uma das mãos a Michel que recebeu o impacto. Ele rapidamente largou à mão de Bruno, segurando a do irmão ao lado. De imediato a energia percorreu aquele círculo maior. Todos tremeram, alguns convulsionaram.
- Concentração, concentração! - gritou-lhes o Mestre Terra; dois irmãos em lugares diferentes caíram, largando as mãos e se deitando sobre a relva. - A energia está escapando, deixem-nos! Unam-se e fechem a corrente, rápido! - Michel gritava e tremia; sua voz saia com entrecortes, como a tiritar de frio. Eles novamente se estreitaram, deixando os dois ao chão; a energia continuou a girar. Nesse instante, Bruno incorporou uma nova onda da energia, provocando nova sucessão de tremores e convulsões.
Entrementes, a energia do círculo de Michel passou a Sorman, que no círculo mais amplo de todos a incorporou fazendo-a girar. Ao cabo de alguns segundos, eles desfizeram a corrente e elevaram os braços ao máximo, com dedos unidos e mãos afastadas. Sentiram então a energia escoar pelas pontas dos dedos e desaparecer no espaço. Segundos depois Sorman os comandava para novamente unirem-se, recebendo nova onda da energia pela mão de Michel. Nesse comenos, os dois irmãos que haviam caído ao solo, eram atendidos por uma equipe de socorro e conduzidos para o interior da Casa Rosa.
Longe, nos Andes, o Superior ocupava-se em dar comando às suas equipes. Sobre ampla e descampada área, ao topo de alta montanha, sob intenso frio, eles não tinham tempo ou motivação para reclamos. Cobriam-se da cabeça aos pés com vestuários de espessa lã misturada ao nylon, mantendo cobertores sobre as mãos unidas, sem luvas. Abraçavam com grande sacrifício o ideal fraternal, de cujo solene juramento em servir não poderiam afastar-se. Espalhavam-se ordenadamente nos três círculos concêntricos; tremiam de frio e tensão, enquanto as ondas da energia os percorriam em correntes.
A terra, a vegetação rasteira, o arvoredo mais afastado, as tendas armadas em derredor, cobriam-se de fina camada de neve. Uma névoa a tudo penetrava; as diversas fogueiras nos arredores, protegidas por tijolos de barro superpostos como grandes e improvisados nichos, compunham estranho cenário. Pareciam formar clareiras – algumas embaçadas – dentro da quase lúgubre e inesquecível tarde.
Na Europa, sob céu fechado, Stefany comandava. No Oriente, Magashi, da mesma forma, estabelecia os círculos. As outras organizações, em diferentes latitudes, tendo aderido a essa mobilização mundial, procuravam de todas as formas, em seus núcleos, contribuir. Calculava-se o número total de integrantes de todos os círculos e correntes mundiais, naquele momento, em aproximadamente duzentos mil, considerados, principalmente, pela ação resolutiva e incorporativa da FIA.
O trabalho realizado pelas correntes previa o revezamento de seus participantes. Concernente aos círculos, a cada tempo, segundo o planejamento de seus mentores, havia uma parada a fim de que os componentes pudessem se refazer. Enquanto isso, os auxiliares externos já teriam organizado os novos círculos para entrar em imediata ação. Se os mentores não estivessem também cansados, correriam em direção aos novos círculos, a eles se juntando. Caso contrário, outros irmãos graduados os substituiriam até que pudessem voltar a atuar.
O céu tomou-se rapidamente de cinzentas nuvens em vários lugares do planeta. Vendavais se precipitaram correndo mares e oceanos; tormentas se sucediam. Bruno deixou o círculo chamando Sorman, Michel e Verônica, e afastou-se em direção de uma rocha.
- Irmãos, iniciemos agora nossa principal ação contra o poder destrutivo da nuvem escura.
Eles então formaram um círculo; Bruno enviou mensagem telepática para o Superior e demais Mestres Terra que comandavam o movimento noutros lugares, mas não conseguiu qualquer sintonia. Trovões, relâmpagos e raios, manifestavam-se como a prenunciar uma catástrofe! Os açoites do vento faziam arremessar pequenos galhos e folhas sobre os círculos. Fina garoa dançava sob o tormentoso céu. Obedientes aos seus comandos, os membros da irmandade permaneciam firmes, procurando superar-se e a esses obstáculos!
A ação eólia produzia assobios na irregularidade da rocha. Sua conformação, meio monolítica, não proporcionava ao pequeno grupo suficiente abrigo. O frio, a garoa, o próprio vento, os alcançavam com certa facilidade.
- Trabalhemos todos juntos, sugeriu o Supremo. Sorman envie ondas para Magashi; Michel procure Stefany; Verônica busque outros Mestres Terra em condições de receber a mensagem. Continuarei tentando sintonizar-me com o Superior - a fisionomia de Bruno denunciava a preocupação que dele se apossara.
Movimentos corporais submeteram-se às operosas mentes, mas pouco depois desistiam.
- Não há condições para nos projetarmos em corpos astrais. Isso seria de todas as formas extremamente perigoso nessa situação - comentou sombriamente o Supremo, que como todos dali voltava a mover-se.
Um estrondo ensurdecedor, seguido de um grande clarão, assustou a todos. Bruno e os demais se precipitaram para além da rocha a fim de saber se o raio houvera atingido alguém. Os círculos se desfizeram. Alguns irmãos estavam caídos, outros sentavam-se levando as mãos à cabeça ou ouvidos. Poucos metros adiante um tronco de árvore partido ao meio fumegava.
- Alguém ferido? - gritou Bruno, ansioso, sem receber qualquer resposta. Ele então se voltou aos seus assessores - vamos socorrê-los!
Os quatro rapidamente se acercaram dos irmãos no chão. Nesse instante, a equipe de socorro já chegava, juntando-se a eles. Um estado geral de choque os tomara: a maioria permanecia ainda sem reação. Ao cabo de alguns minutos constataram que o raio não tinha atingido nenhum deles. Os que não conseguiam se recuperar, foram conduzidos para o interior da Casa Rosa, juntando-se àqueles que haviam caído durante o trabalho das correntes nos círculos. Após essas providências, Bruno gritou para os auxiliares externos: - Reorganizem os círculos, substituam os irmãos, reatem as correntes! De imediato iniciou-se nova e intensa movimentação. Um vai-e-vem se estabeleceu e finalmente estavam prontos para reiniciar as correntes.
Lucéa, ofegante, veio ao encontro de Sorman que afastado dos círculos passava instruções a três irmãos:
- Recebi mensagem do Superior, ele está pronto!
- Ótimo, onde está Bruno?
- Ele afastou-se dos círculos, foi para os lados da rocha.
- Avise Verônica e Michel; venha com eles!
O primeiro a chegar foi Sorman. Bruno, absorto, não o viu; apoiava o corpo à rocha sobre o braço dobrado e mão aberta, e se inclinava suavemente. Arqueava um pouco a cabeça para frente, tendo as pontas do indicador e polegar da outra mão rente aos olhos, apertando ligeiramente as faces do nariz como pequena tenaz. Essa concentrada e estanque postura veio somente ser interrompida minutos depois quando os três se aproximaram. Ao escutar suas vozes, ele abriu os olhos descendo os braços naturalmente ao longo do corpo, empertigando-se.
- Acabo de fazer contato com Magashi. Há notícias de um grande vendaval arrasando vilas no oriente. Outra tormenta de gigantescas proporções se forma no Pacífico Norte, deslocando-se à grande velocidade em direção das Américas. É algo espantoso porquanto não percorre a mesma rota de outras costumeiras tormentas!
- O Sr. Mendez fez contato comigo – interpôs Lucéa – ele aguarda o momento para a ponte.
- Excelente notícia! – exclamou Bruno alterando o sombrio semblante, incorporando nova vida emocional – vamos tentar novamente Stefany. Ele percorreu o olhar sobre todos, pousando-o definitivamente em Sorman, ordenando: - irmão tente sintonia com ela!
Sorman imediatamente cerrou os olhos, trazendo uma das mãos à testa, ficando a roçar com os dedos. Pouco depois informou satisfeito:
- Contato feito, Stefany aguarda as ordens! O Supremo meneou afirmativamente a cabeça, voltando a comandar:
- Iniciemos a ponte. Lucéa está em condições de participar?
- Sim, estou perfeitamente bem.
- Atenção todos! - alertou Bruno - Como bem sabem, este é um trabalho destacado dos círculos! Nossos Superiores nos orientaram no sentido de enviarmos a energia da nuvem para níveis mais altos, pois eles já se posicionam para retirá-la de circulação da Terra em quantidades possíveis. Formemos então nossa corrente.
O grupo deu-se as mãos e Bruno determinou:
- Michel, transmita a ordem para Mendez. Sorman faça o mesmo para Stefany, eu me sintonizarei com Magashi. A partir desse instante a ponte estará formada e eles deverão proceder exatamente como nós!
De imediato o círculo recebeu uma espécie de descarga elétrica: todos tremeram. Verônica perdeu o equilíbrio, projetando-se de encontro a Sorman. Michel puxou-a, mas seu corpo também se deslocou. Com isso, o pequeno círculo desarrumou-se, perdendo de certa forma a sua estabilidade.
Verônica não conseguia voltar à postura inicial. Os joelhos dobravam-se, ela lutava para não cair, empenhando-se num grande e íntimo duelo: soltava gemidos e proferia estranhos sons guturais.
- Irmãos, concentrem-se! – ordenou Bruno, logo avocando – contatos façam os contatos! Apesar desta perturbação, eles lançaram ondas mentais em direção dos Mestres Terra. Quase simultaneamente, Verônica emitiu um grunhido mais forte libertando as mãos, caindo de joelhos.
- Mantenham o círculo fechado, continuem com os contatos! - falou energicamente Bruno, saindo do círculo que se reduziu a três pessoas, arcando-se e se ajoelhando diante de Verônica.
O vento e o frio se intensificavam. A garoa permanecia como antes. Verônica pendeu a cabeça de encontro ao peito, apoiando o queixo. O tronco inclinava-se para frente; ela mantinha os braços para trás, em posição paralela, com mãos fortemente fechadas. Ao começar a se contorcer, Bruno colou-lhe um polegar à testa e o outro ao peito, acima do coração, pronunciando três palavras. Verônica estremeceu, jogando-se para trás. Bruno amparou-a; ela abriu os olhos assustada. Levantaram-se. Ele colou-lhe o indicador à testa, murmurando uma breve oração. A moça recuperou-se completamente e ambos retomaram suas posições, recompondo o círculo.
A corrente teve então uma tensão maior. Em dado instante, houve um súbito desprendimento e o pequeno círculo deslocou-se um plano acima, tornando-se mais amplo. Nesse novo círculo participavam os Mestres Terra, bem como irmãos graduados. Mas não houve tempo para considerações por que a corrente tornou-se mais intensa, provocando-lhes reações e contorções. Eles tremeram eletrificados. Os corpos vibravam; eram arremessados para frente e para trás; eles soltavam gemidos e brados como se sentissem insuportáveis dores!
Um suave toque no ombro de Bruno fez aliviar a incrível tensão; eles estancaram as contorções. Duas fileiras de pessoas haviam se aproximado de mãos dadas; a última pessoa, no vértice das fileiras, estendera uma das mãos e atraíra a energia. Fora tudo muito rápido – Sorman somente percebera os vultos brancos em relances – e na medida em que se afastavam, já incorporando a energia, reorganizavam-se com outras pessoas num círculo extremamente grande, suportando a tensão, fazendo a energia girar em nova corrente. Sorman entendeu tratar-se dos irmãos da FIA que, não possuindo corpos físicos, realizavam suas partes em dimensão superior.
Todos novamente convulsionaram perdendo o controle de seus movimentos, trepidando, sendo jogados para adiante e para trás, a exemplo do acontecido há alguns segundos. Nesse roldão, Sorman voltou a vislumbrar outro círculo, ainda mais amplo, a absorver a energia desprendida do círculo há pouco percebido. Esse último círculo logo desapareceria num espaço superior. Aqui onde se encontravam, a energia os fazia débeis e perdiam o comando de seus próprios movimentos. Não havia como se libertar da corrente, não sentiam o corpo nem mesmo as mãos e se tornavam indissociados elos. Não havia dor, mas era como se houvesse; um segundo era um século e aquilo parecia não ter mais fim!
Embora despojado de sua própria força, sob a torturante tensão, Sorman sentiu a consciência ampliar-se, vendo-se subitamente em ambas as correntes. Lá estava junto à rocha, sob a garoa e o vento, enlaçado aos irmãos, e, simultaneamente acima, preso ao círculo dos Mestres Terra e iniciados. A abarcante visão, apesar de tudo, não o libertava da forte sensação, e se sentiu flutuar afastando-se de ambos os círculos, trazendo consigo a presença da corrente. O terceiro corpo em que agora conscientemente flutuava, fazia-o sofrer mais intensamente, pois sua sensibilidade aumentara. Mas não trepidava nem convulsionava como nos círculos e começou a subir, levando consigo, segundo após segundo, um crescente tormento.
Os círculos desapareceram de sua percepção; ele teve um momento de paz. Tudo terminara. Isso trouxe-lhe maior leveza e volição e singrou para cima, viajando em direção de um grande clarão. O clarão era distante e nada podia discernir. Logo foi arrastado por um tipo de atração magnética, indo parar num determinado espaço onde centenas de enormes cabeças apareciam de olhos fechados, com rostos em profunda concentração, e viu uma energia algo escurecida, provinda de baixo, a penetrar-lhes as testas. Nesse instante, a sensação dolorosa da corrente voltou a possuí-lo, e o perturbou. No entanto, surpreendeu-se ao ver a mesma energia sair de seu corpo em esguichos, puxada para uma daquelas testas, e nela penetrar. Isso causou-lhe alívio, mas não cessou-lhe a angústia. Essa situação continuou por mais um tempo e chegou a um fim.
De novo foi transportado para outro local e teve uma visão mundial. Viu a Terra e a nuvem escura nela projetar-se. À medida que a nuvem se espalhava pelo planeta, a energia que a constituía vinha produzir comoções. Então viu os locais onde essas coisas terríveis aconteciam, mas também viu a quantidade da energia que não conseguia aportar na Terra. Camadas dessa propagação se desviavam e pôde reconhecer o trabalho integrado da FIA, bem como de outras organizações, a provocar essas alterações de curso. Algo lhe chamou também a atenção numa dimensão próxima da Terra: enormes naves, com variadas formas e modelos, planavam em redor do planeta, absorvendo grande quantidade da energia invasora. A energia absorvida era enviada para outras naves mais afastadas, que tinham a função de recebê-la por meio de grandes tubos inseridos em seus bojos, reenviando-a após, por outros idênticos tubos, a um espaço superior. Acompanhando esse processo, ele pode observar máquinas enormes de estranhos formatos, a produzir sons extraordinários e estonteantes, capturando essa mesma energia e a transformando em esguichos escurecidos, direcionando-os mais para cima, onde as mesmas cabeças as absorviam, os reenviado, após, sob a forma de raios, para uma nuvem branca. A nuvem branca, em realidade, era o clarão anteriormente observado, produto da energia transmutada pelas cabeças, que a cada momento crescia e já tomava proporções gigantescas.
Sorman voltou a sentir a corrente incorporá-lo, perdendo a consciência de tudo. Ao voltar, percebeu novas naves realizando manobras. Muitas formavam um cinturão protetor em torno daquelas que captavam a energia da Terra. Logo se aproximou uma esquadrilha de negras e enormes naves e uma guerra espacial teve início. Grandes explosões aconteceram com perdas de lado a lado. Mas as naves negras desapareceram para voltar pouco depois em maior número, fazendo novas investidas. Outra estrondosa batalha foi iniciada; algumas naves negras furaram o bloqueio, penetrando na atmosfera do planeta, e se escondendo.
Retornou-lhe a angustiante sensação e a visão turvou-se. Antes mesmo que pudesse reagir, foi trasladado para o planeta onde presenciou a energia primária projetar-se num oceano aéreo. A energia permeava todo o orbe. Das suas profundezas levantaram-se milhões de espíritos malignos que se agitavam em alvoroço, lançando-se para a superfície em grande tumulto. Eram estranhas criaturas que corriam, pulavam, ou alçavam voos, buscando, todas, imiscuir-se invisivelmente entre os homens. Sorman já as tinha visto do pico onde Ratziel o levara, mas neste momento se mostravam fortalecidas e incontroláveis. A energia primária provocava tormentos na atmosfera, invadia vulcões, agitava mares e oceanos, jogava águas perigosamente como numa grande bacia, e tornava o ar pesado, quase irrespirável.
A nuvem escura, por outro lado, exercia outro tipo de ação. Ao projetar-se em conjunto com a energia primária, passava a materializar-se, cobrindo extensões de mares e desertos, concentrando-se em gigantescas cabeças de furacões, juntando-se às tormentas provocadas pela energia primária. Introduzia sua polaridade negativa através da eletricidade da atmosfera, espalhando-a por todas as suas camadas, mergulhando-a em direção dos campos atômicos de todos os seres vivos. E como a matéria global é constituída dos quatro elementos, esses também reagiam desde suas livres presenças no espaço polidimensional, e, por reflexo, produziam reações nas composições moleculares da substância densa, acontecendo súbitas trocas de elétrons, desequilíbrios nas estruturas das próprias moléculas, e negativas reações. O orbe terrestre tremia; terremotos ameaçavam acontecer.
Com os animais, seres subumanos ou homens, as reações eram diversificadas. Os animais tornavam-se indóceis, e, segundo as características, extremamente agitados, ou super excitados, praticamente incontidos em suas reações instintivas. Os seres subumanos que viviam abaixo da linha física do planeta, nos submundos ou cavernas invisíveis, fortalecidos com a energia primária, se espalhavam rapidamente pelo mundo, atraídos pelos ambientes de vida humana. Esses subumanos, normalmente produzem malefícios por sua própria e inerente condição, sendo amiúde vampíricos; atacam animais matando-os e se refestelam em banquetes com as emanações do plasma sanguíneo. Atacam também os homens, mas, pela condição superior da espécie humana, nem sempre conseguem matá-los como desejariam; todavia os vampirizam nas suas energias. Nos rituais de magia negra, são frequentemente invocados a fim de torturar ou matar desafetos. Quando são produtos de experiências genéticas monstruosas, vivendo no planeta desde tempos muito recuados, ou criados recentemente pelos malignos que invadem a Terra, atacam animais e homens e se alimentam de suas carnes.
Os homens são o alvo principal das inteligências malignas. Por sua capacidade destrutiva e poder intelectual, são mediunizados para estabelecer perigosos e mais significativos resultados. Em virtude de o homem possuir cérebro devidamente formado, portanto, facilmente capaz de sintonizar-se com gamas de energia de padrões inferiores, em ambas as polaridades, a ação negativa vem habilmente se concentrar na sua esfera psíquica, em cujo inconsciente e subconsciente estão guardados, como num barril de pólvora, os seus impulsos instintivos animais. Todos os recalques adquiridos nas inúmeras personalidades vivenciadas pelo ego, diante do sub-reptício estímulo negativo, e sob a condução do raciocínio gerado pelo cérebro, retornam à consciência sob a pressão da energia condicionada, podendo provocar rupturas na linha de menor resistência entre a personalidade e seu passado evo. Havendo a ruptura, homens de traços raciais e étnicos notadamente belicosos, vêm externar objetivamente a indômita vontade de agir, lutar ou guerrear, não importando o ilogismo da causa. Mais ainda. Aqueles de natureza selvagem, os de personalidades mal ajustadas, os mal intencionados, os cruéis e toda uma gama de homens dominados por tantos outros sentimentos malévolos, transformam-se facilmente em sanguinários assassinos. E sendo muito milhões nessa intermediária situação entre o instinto animal e a visão racional humana, com maior potencial destruidor a existir, comparados aos apelos da sobrevivência natural selvática, a ação torna-se, em anima mundi, enorme e compressora massa explosiva altamente demolitória.
A angustiante sensação da corrente novamente o deixou e Sorman pôde respirar mais livremente, logo notando pontos de absorção na Terra, onde o trabalho instruído e guiado pela FIA se desenrolava. Era algo quase insano: não fosse pela interpolação das naves a desviar incessantemente os fluxos do grande oceano de energia primária, atraídos em conjunto com o teor negativo da nuvem escura, essa teria sido uma guerra totalmente perdida. O dreno continuava. O lado noturno do planeta parecia sofrer mais com os ataques subumanos, porque as hordas dos seres grotescos que para lá se dirigiam, arrastando em suas repelentes auras as formas-cascões dos homens desencarnados, estimulavam revoltas populares.
Sorman temeu que os esforços terrenos da irmandade e aliados, conjuminados com a ação tecnológica e propósitos supernais dos Mestres Superiores, resultassem em nada. Via a energia primária e a negativa, drenadas, subir em menores quantidades ou velocidade do que aquelas precipitadas. Isso talvez fosse somente ocasional ou momentâneo, como ação e reação, entretanto, a atmosfera terrena sofria grandes revolvimentos; os reinos sentiam-se profundamente afetados e os homens ameaçavam produzir incomparável destruição em cadeia. O planeta achava-se envolto e sufocado pelas grandes correntes das energias invasoras; sua estabilidade global estava prestes a se romper.
Uma reflexão atravessou-lhe a mente: se a energia primária existia por uma natural expansão, resultante da explosão de um vórtice há bilhões de quilômetros ou anos-luzes da Terra, e a nuvem escura nascera da ação dessa energia primária nos orbes anteriormente visitados, ambas, então, teriam naturalmente se constituídas em dois fenômenos distintos. Havia acontecido, por assim dizer, um tipo adernado da polaridade negativa trazendo um produto altamente explosivo na forma de uma nuvem escura. Essa nuvem escura, em realidade, existia pela habilidade e força destrutiva da Grande Face Negra. Mas era algo já formado à parte da própria energia primária. Assim, como poderiam ambas ser sugadas num só amálgama?
Antes que pudesse inferir outra qualquer conjetura, a sensação retornou provocando-lhe gemido. De novo a visão tornou-se turva, mas desta feita não se apagou. Assim mesmo, naquele sofrimento, ele teve a lucidez de desejar voltar a contemplar o trabalho das naves e das cabeças, e foi lançado ao espaço superior. Pela segunda vez, via-se diante das naves e das máquinas, e pela terceira vez, numa nova e imediata subida, estava diante das cabeças. Conforme ocorrera antes, a energia saia-lhe do corpo em forma de escuros esguichos, indo penetrar à testa de uma das grandes cabeças. Essas se mantinham de olhos fechados em profunda concentração, como se meditassem. Por um momento a sensação foi-lhe mais forte, quase insuportável; ele imaginou que os círculos lá embaixo teriam suportado uma tensão maior, exigindo-lhes esforço adicional. Fechou os olhos como a desejar que a simples e instintiva atitude viesse-lhe proporcionar uma resistência superior, mas nada aconteceu: a torturante sensação permanecia. Ele tentou adaptar-se a nova situação: abriu os olhos, se dando conta de estar mais próximo das cabeças, particularmente daquela que lhe absorvia a energia negativa.
Embora com redobrada dificuldade pela presença mais incisiva da corrente, pôde perceber a energia em duas nuances com dois caminhos distintos. Uma nuance, ao sair pelo topo das cabeças, projetava-se em raios brancos formando a nuvem. A outra nuance, chumbo, anteriormente não percebida, expandia-se em leque aberto. Ambas as projeções somavam-se àquilo que todas as cabeças igualmente construíam, ou seja, a descomunal nuvem branca e um gigantesco e giratório disco chumbo.
À medida que o gigantesco disco girava, coletando na sua superfície as ondas da energia chumbo dos leques, um núcleo central formava outro disco menor para onde toda a energia era levada, girando mais rápido que o disco maior. Desse núcleo central ou disco menor, vinha elevar-se um tubo a perder de vista, girando com maior velocidade que o seu núcleo, conduzindo a energia em seu bojo. O bojo do tubo era a própria energia ali constituída, e, muito além – Sorman desta feita só pode perceber fugazmente – o tubo se desmanchava numa espécie de massa, algo a lembrar-lhe do monumental vórtice e da energia-forma produzida. Então, ele ouviu um grande estrondar e estremeceu, e não conseguindo discernir mais nada estancou. A forte sensação também estancara. Estancaram da mesma maneira as visões e as viagens entre um e outro insólito cenário.
Um tanto aparvalhado viu-se, de súbito, seguro pelas mãos, entre Verônica e Lucéa, a formar com elas, Michel e Bruno o pequeno círculo da grande ponte. O pequeno círculo, sendo a principal âncora da ponte, sob o comando de Bruno, permanecera em corrente por pouco mais de meia hora. Os círculos maiores, mais afastados, neste mesmo tempo passaram por diversos revezamentos. À ordem de Bruno, eles largaram as mãos e desfizeram a corrente. A garoa não cessara; o frio se intensificara embora o vento açoitasse em rajadas menos intensas e mais espaçadas.
O grupo espalhou-se pelas proximidades. Verônica, Michel e Lucéa encostaram-se na rocha, ao passo que Bruno e Sorman permaneceram em pé. Ambos começaram a se movimentar. Sorman abaixou-se por três vezes, ficando de cócoras, e, em pé, abriu amplamente os braços, trazendo-os paralelamente esticados adiante; abriu e fechou os dedos das mãos, batendo os punhos um contra o outro e simulou rápida corrida sem sair do lugar. Bruno realizou menos movimentos: levantou uma perna, após outra; abriu os braços, flexionando-os contra o tórax, depois esfregou as mãos. Os três, colados à rocha, somente observavam; Michel tinha uma das pernas encolhidas e o pé apoiado.
- As naves estão realizando um fantástico trabalho de absorção das energias primária e negativa – comentou Sorman enquanto descobria a cabeça, soltando o capuz às costas e passava as mãos aos cabelos, alisando-os.
- As naves? Você as viu? – admirou-se Bruno. Eles todos o miraram com redobrada atenção e Bruno solicitou-lhe relatar tudo o que vira.
A bem recebida oferta da equipe de assistência e serviços, de um chá quente e biscoitos, veio interromper a narrativa. Enquanto aproveitavam o frugal alimento, aquecendo-se com o líquido, Sorman continuava a descrever as visões. Ao final, todos mergulharam em rápidas reflexões.
- A quantidade da energia primária é verdadeiramente descomunal – ele mesmo quebrou o breve silêncio – e não teríamos a menor chance de absorvê-la ou desviá-la em razoáveis proporções unicamente com nossos próprios recursos. Os Mestres Superiores tiveram a grande sabedoria de se prepararem adequadamente, de forma abrangente, atraindo simultaneamente o conteúdo negativo da nuvem escura.
- Baseado nessas observações, você calcula que o trabalho poderá estar terminado em quanto tempo? – perguntou Bruno.
- Impossível mensurar concretamente pelas diversas circunstâncias da ação das energias. Também não tive condições de verificar qual é o espaço atualmente ocupado pela grande onda da energia primária e nuvem escura. Mas acredito ser necessário outro trabalho, de talvez inimagináveis recursos e tecnologia dos Superiores, para uma contenção das energias. Se o descomunal vórtice em processo de expansão cósmica estiver ainda gerando a energia, é provável que sua cauda seja nesta hora incomensurável. Nesse caso... – ele fez uma pausa, não desejando pronunciar uma drástica e terrível sentença.
- Nesse caso não haverá mesmo qualquer previsão de tempo ou de consequências mundiais, ao final de tudo – completou Bruno.
- Certamente – finalizou Sorman.
Novamente o silêncio os tomou. Uma súbita rajada de vento fez mover-lhes as roupas e provocou esparramos mais fortes da garoa. O rosto e cabelos de Sorman umedeciam. Ao longe, relâmpagos davam relevos às negras formações de nuvens. A tarde caía, mas as sombras haviam chegado mais cedo. Luzes já estavam acesas sobre galhos de árvores e nos improvisados postes de paus. A superficial claridade ainda não se fizera sentir intensamente por que a tarde, apesar dos avanços das sombras, subsistia.
- Deixe-me insistir em conjeturas – Michel dessa vez quebrou o silêncio – pelo que você conseguiu presenciar, ainda assim é possível realizar uma projeção se as trevas permanecerão fortalecidas ou não quando tudo terminar?
Os olhos negros de Sorman se elevaram ao quase negro espaço e baixaram à terra umedecida. Pareciam lançar inconsciente prece ao Todo-Poderoso a fim de que manifestasse milagrosa intervenção até as profundezas do mundo. Depois respondeu ao Terceiro Mestre Terra, mirando unicamente o rosto de seu interlocutor:
- Sobretudo acredito nos recursos de nossos superiores. Mas do plano onde se encontram, o alcance de suas ações sobre a população diabólica – invisível ou encarnada – precisará ser por nós considerada e ponderada. É evidente que as ações são levadas a termo para tentar impedir efeitos desastrosos e devastadores ao planeta. Admito ser praticamente impossível um resultado completamente favorável. Haverá, sim, de todas as formas, um efeito negativo. Somente mais tarde será possível saber da verdadeira proporção deste saldo desfavorável.
Sorman levou novamente as mãos aos cabelos, espalhando-os com rápidos toques, procurando retirar-lhes a umidade. Em seguida, recolocou o capuz, aproximando-se de Lucéa. O moreno rosto sorriu largamente, como a dar-lhe as boas vindas, e ela apoiou-se em seu antebraço.
- Relaxemos por mais tempo – disse Bruno, girando em direção aos círculos, afastando-se sobre a molhada relva. Enquanto andava, vinham-lhe muitas e fugidias imagens. Uma delas fixou-se em sua mente, pedindo-lhe vida e sucessões. Ao acolhê-la, reviu o momento em que deixava a casa e buscava isolar-se.
o o o
Chovia farta e abundantemente naquela manhã. Sorman permanecera ante o portal da varanda com Lucéa. A notícia que o ministro trouxera desencadeara no Supremo uma série de preocupações, pois em princípio não sabia como lidar com a nuvem escura. Os planos contra a invasão da energia primária já tinham sido elaborados, estando praticamente prontos. A idealização do Superior fora excelente; os diversos círculos captariam a energia em campos mentais, e a projetariam para a Terra a fim de ser invertida na sua polaridade. Feito isso, a energia retornaria da Terra para os círculos superiores, daí, através de outras manobras de transferência, ao reservatório dos arquétipos.
Representantes dos Mestres Superiores haviam feito somente um contato. Tinham vindo ao seu estúdio na Grande Casa, trazendo sugestões e orientações: fato raro, não acontecido ainda neste atual ciclo de encarnação da célula. Mas a recente notícia viera aumentar-lhe o desassossego. Como manobrar com essa nuvem escura, sob a declarada intenção da Grande Face Negra em provocar momentos de destruição no planeta?
Logo alcançou o portão de Manoel. Ao som dos gonzos e de um cincerro, Manoel imediatamente surgiu à varanda, vendo com espanto o estado encharcadiço do patrão, apesar do guarda-chuvas. Quis trazê-lo para dentro e enquanto se enxugasse correria à sua casa em busca de roupas secas. Mas Bruno negou-se a tal convite, ordenando-lhe retirar o jipe de sob a cobertura de telhas e o levasse à Casa Rosa.
Em lá chegando, Bruno subiu as escadarias no pequeno monte e percorreu as vielas. Em pouco tempo abria o portão de ferro e caminhava sobre a via gramada, debaixo do frondoso arvoredo. No centro deste lugar, orlado de jardins e roseirais excelentemente cuidados, dominava o castelinho. O diminuto prédio fora assim chamado desde o princípio, mas na verdade em nada se parecia com um pequeno castelo. Sendo circular, lembrava mais um pagode chinês que possuísse grandes janelas de vidro e telhado no formato de um chapéu de bico, com abas ligeiramente encurvadas para cima. Duas fileiras justapostas de telhas transparentes encarreiravam-se em circunferências contornando o cone, entremeando-se às telhas de barro.
O castelinho fora construído sobre uma laje de concreto também em formato circular. Esta base tinha menos de um metro de altura, sendo revestida à sua volta por peças de louça em tons azul e dourado. Havia uma estreita varanda circundando a construção, de piso revestido pelas mesmas peças de louça, e uma cerca em madeira envernizada, em treliça, com corrimão abaulado, que acompanhava a varanda em todo o percurso, excetuando-se os vãos de entrada e saída. As duas portas corrediças ficavam diametralmente opostas: a de entrada era voltada para o portão da frente, que Bruno abrira; a outra, de saída, dava para o fundo do terreno. As portas eram antecedidas ou sucedidas por três degraus em mármore branco.
Bruno houvera despedido Manoel, lá embaixo, nas proximidades da Casa Rosa, não sem antes alertá-lo de que avisasse as filhas que aqui permaneceria em retiro por tempo indeterminado. Mais tarde, deveriam trazer-lhe os alimentos de praxe. Logo palmilharia os degraus da pequena escada, abriria o cadeado e faria correr suavemente a porta de madeira laminada, penetrando descalço e solitariamente no ambiente.
Incômoda penumbra pairava no seu interior. Bruno acendeu uma carreira de luzes coloridas instaladas sob o teto circular. A claridade produziu brilho nos lambris das paredes e sobre o assoalho de largas e perfeitas tábuas. No local mais alto do teto, dentro do cone revestido em madeira, em seu ápice interno, uma única lâmpada ali dependurada complementava esse luminoso corolário, fazendo derramar uma luz azul como de um ponto estelar.
Ele dirigiu-se ao armário provocando deslize da porta e retirou de um cabide seu uniforme azul. Lançou mão de uma toalha branca, despiu-se e se enxugou. Após vestir-se, tomou a roupa molhada, levando-a para fora, e a depositou sobre o corrimão da cerca. Seus pés estavam frios; voltou ao armário para buscar as pantufas, encontrando-as na prateleira dos calçados. Olhou em torno, achando o ambiente triste apesar das coloridas luzes, e resolveu puxar todas as brancas cortinas, descerrando a vista externa. Abriu algumas frestas nas janelas para um arejamento, observando que a chuva não arrefecera; o gramado mostrava-se encharcado e muitas poças já se formavam. O céu estava completamente encoberto: tudo concorria para uma aura de enfado e tristeza, e sentou-se num lugar qualquer, na confortável almofada, aquietando-se sobre um dos bancos semicirculares encostados à parede.
Por mais de três minutos permaneceu completamente imóvel, apoiado no encosto. Nesse meio tempo vieram-lhe à lembrança cenas de situações nas quais, como Irmão Supremo participara, que diziam respeito à manipulação de certas energias. Momentos importantes ou transcendentes na vida da célula, e da própria humanidade, eram necessariamente precedidos pela liberação dos fluxos das energias. Invariavelmente os rituais nos diversos núcleos da FIA por todo o mundo, e principalmente aqui nesta metrópole, realizavam o chamamento dos fluxos. Daí em diante, os fluxos desciam em cascatas para personificar, ou concretizar pensamentos, ideias, projetos e ação diretiva, em seus respectivos ciclos ou subciclos. Bruno manipulava a energia primordialmente in natura, mas de todas as maneiras a revelação desses momentos não lhe chegava através de ampla e consciente visão. Recebia-a mais tarde, no cérebro físico, por reflexos ou refrações graduais e parciais. O processador é virtualmente outro; é o luminoso corpo, o Cristo consciência; sabia disto.
Na Terra a situação neste momento apresentava-se exatamente ao inverso. As energias de que tratavam – nisto já incluía a nuvem escura – precisavam ser transferidas não da alma para o mundo, mas, sim, do mundo para a alma, daí mais para cima, ao mundo arquétipo. A considerar as dimensões e natureza de ambas, não saberia dizer como manobrá-las simultaneamente.
Um rápido tremor fê-lo despertar dessas divagações; ele se levantou dirigindo-se ao comutador na parede, apagando todas as lâmpadas coloridas, exceto a azul no ápice interno do cone. Havia sob o cone uma poltrona giratória de grande espaldar e para lá se dirigiu assentando-se. A luz azul, em consequência da claridade espalhada no lugar, incidia pouco difusa; ele girou a leste, imaginando naquela hora da manhã a posição do Sol sobre as nuvens carregadas. Desejou falar com Mendez, estabelecendo contato telepático, transmitindo-lhe imagens de toda a situação. Pediu-lhe que se deslocasse para a Grande Casa dos Estúdios e Câmaras a fim de se entrevistarem. Com efeito, algum tempo depois conversavam:
- Preciso retirar-me das atividades da FIA, talvez por alguns dias – disse Bruno ao final da conversa. - Seu plano de libertar os prisioneiros do núcleo parece-me bom. Não posso agora ater-me aos detalhes por que necessito ir-me. Converse com Sorman, ele é meu substituto para determinados assuntos, como todos sabem. Dê-lhe liberdade para opinar sobre essa tentativa.
- Assim farei, Bruno, fique tranquilo. Oxalá tenhamos as melhores notícias em seu retorno - respondeu prontamente Mendez com característico sotaque espanhol. Bruno somente meneou afirmativamente com a cabeça e Mendez se retirou.
o o o
A pequena nave o deixou ao portão do Jardim Ardente, no alto da montanha. As guardiãs – duas gigantescas águias – pularam de sobre as árvores, pelo lado de dentro, soltando guinchos a festejar. Abriam e fechavam as enormes asas e saltitavam.
- Saudações, amigas, já estava saudoso. Em resposta, elas soltaram novos, porém estridentes guinchos; não demorou surgiu um homem louro, de jaqueta e calças verdes, em rápida carreira, trazendo à mão uma grande chave, presa à imensa e desproporcional argola.
- Senhor Bruno! – disse surpreso.
- Sim, Hernandes. Ele abriu o portão de ferro.
- Já faz algum tempo! – falou sorrindo enquanto fechava o portão, após Bruno adentrar.
- Minhas amigas! Bruno aproximou-se levantando um braço acima da cabeça, acariciando-lhes o peito. Elas emitiram chilreios, abrindo e fechando novamente as asas.
Eram magnificamente grandes, de proporções pré-históricas. Possuíam penas em diversas cores, como se desenhadas ou pintadas à mão. Na maior parte, detinham nas bordas a cor ígnea, como chamas, e o interior azul. Por todo o corpo, entre as carreiras de penas, envolviam-nas finos e bem modelados anéis na cor branca ou dourada. Os bicos eram perfeitamente dourados – quase brilhavam – bem como as patas e pernas; essa mesma cor ornava-lhes uma coroa de penas salientes bem no topo da cabeça. Também a cor ígnea, total e completamente, vinha ser encontrada no lado interno de suas asas, e quando as abriam, davam a impressão de acender duas grandes fogueiras.
- Quase três anos, irmão – Bruno voltava-se definitivamente para Hernandes. – Naquela ocasião, obtive a inspiração para rescrever nossa última centúria.
Indescritível aroma espalhava-se no ar. A alameda diante deles, embora larga, inserida numa densa vegetação, não permitia, dali, a nada discernir. Começaram a andar. As gigantescas águias voaram novamente para as altíssimas árvores com ruídos. Logo, ante a grama roxa, ambos se depararam com muitas folhas de majestosos antúrios e grandes samambaias. Eles pisavam sobre largas pedras em trilhas paralelas e elas pareciam possuir grande vitalidade. Milhares de minúsculos pontos vermelhos rebrilhavam sob uma capa azulada na transparente superfície. Bruno, vez por outra, baixava a cabeça a fim de desviar-se das folhas ou de compridíssimos caules. Hernandes, nem tanto: tinha baixa estatura; era ligeiramente roliço e de bochechas coradas. Possuía traços hispânicos, os cabelos eram louros, com pequenos cachos à volta da farta cabeleira e sobre a testa, que pareciam desmentir ou confirmar a evidência racial.
- Há alguém mais aqui? – perguntou o visitante a certa altura.
- Não, senhor. Os chineses se foram faz dois dias.
- Quem?
- Mestres Tong e Huang.
- Ora, teria imenso prazer em revê-los. Eles, afinal, conseguiram o que buscavam?
- Somente Mestre Tong. O outro foi embora muito triste.
Chegaram após subir uma leve e prolongada inclinação e degraus de acesso à varanda do chalé. Um calor diferente permeava a atmosfera, provocando sensação de leveza e bem estar. A meio caminho da estreita varanda, Bruno parou e encostou-se na cerca, apoiando as mãos no corrimão, olhando lá fora a magnificente claridade. Era imensa; abria-se para cima suntuosamente como inimaginável flor. Os olhos do Supremo brilharam sob um misto de respeito e apreensão, e suspirou. Hernandes, a seu lado, observou-lhe aquele tipo de emoção e ansiedade espiritual. Bruno voltou-se para adiante reiniciando os passos. Pouco depois no quarto sentava-se na cama.
- Posso preparar o banho ablutor? – perguntou Hernandes.
Bruno elevou o olhar para a porta assentindo com gesto de cabeça. Poucos minutos depois, traspassava de permeio as longas e verticais lâminas da cortina, adentrando a sala de banhos. Suave névoa se elevava do interior da pequena e circular piscina sob o assoalho. Folhas e pétalas de flores, em variados matizes, navegavam ao quase imperceptível movimento da água azulada. Sutil odor pairava pelo ar, resultante da soma das várias misturas dos ingredientes ali utilizados. A luz proveniente da janela aberta projetava-se sobre a piscina, e era suficiente. Somente umas poucas e inexpressivas penumbras resistiam nos cantos.
Hernandes, de joelhos, arqueado, tendo às mãos pequena ânfora de puro e reluzente ouro, vertia na água um tipo de essência amarelada. Enquanto realizava isso murmurava uma inaudível oração. Tendo procedido a adição, trouxe a ânfora a sua volta e a tampou, tomando de sobre um pano ao chão a diminuta pá de igual ouro, começando a revolver a água com movimentos circulares. Novo aroma evolou-se, vindo juntar-se ao odor já espalhado. Ao término, enxugou rapidamente a pá, enrolando-a no mesmo pano, e somente então cessou de murmurar. Levantando-se olhou pela primeira vez para Bruno desde que aqui ele entrara.
- Está tudo pronto, senhor Bruno! - informou satisfeito. Bruno esboçou tímido sorriso, despiu-se e se acercou da piscina, agachando-se e sentando-se à beira. Em ato contínuo, apoiou-se com ambas as mãos, impulsionando o corpo para adiante, tocando o fundo, andando até o meio da piscina. A morna água alcançava-lhe o alto das coxas; ele fechou os olhos fazendo uma oração. Depois se ajoelhou: a água subiu-lhe ao coração; ele prendeu a respiração, dobrando-se, e mergulhou completamente a cabeça, permanecendo assim por um punhado de segundos. Quando emergiu, trouxe duas pétalas nos cabelos. Levantou-se e deixou a piscina.
Hernandes estendeu-lhe o roupão branco; ele se enfiou em suas mangas, enlaçando-o frouxamente. Tomou a toalha, a seguir ofertada, e com rápidos toques – sem esfregar – procurou enxugar o rosto e a cabeça, abandonando o lugar. Minutos depois Hernandes novamente se anunciava à porta do quarto, obtendo permissão para entrar. Portava sobre um braço a roupa e segurava um par de sandálias, deixando-os sobre a cama, próximo dele. Tão logo Hernandes se retirou, Bruno despiu-se e vestiu a roupa: era uma jaqueta e calças azuis, e calçou o par de sandálias na mesma cor. A jaqueta abria-se até o meio do peito; dali desciam até a barra sete botões forrados. Sobre a gola e junto à carreira dos botões, bem como à barra tocando às coxas, margeavam dois delgados e paralelos filetes de ouro. Filetes como esses vinham também adornar às bordas dos ombros, das longas mangas e dos largos punhos. Da mesma forma, filetes apareciam de cima abaixo nos frisos laterais externos das calças, e, todos – desde a jaqueta – lançavam rápidos rebrilhos a exemplo de diminutas faíscas, sempre que a luz diretamente neles incidia.
Bruno assomou à varanda. Nesse momento tudo nele ganhara especial realce: o alto porte, a fortaleza física, a pele negra especialmente lisa, o semblante espelhando austeridade, a bela veste! Impressionaria qualquer público. Haveria nesse homem uma rara essência, um propósito superior. Bruno teria tudo isso e desceu ao solo pisando a relva arroxeada, caminhando em direção ao Jardim. Mas a despeito dessa incomum aura, seu íntimo revelava apreensão. Talvez devesse a um sentimento guardado de infantil respeito ou temor à claridade, ou à própria realidade. Isso o incomodava. Evidenciava-se não ter sido capaz de buscar em si mesmo a solução de um problema, e o vergonhoso pensamento acompanhou-o no decurso de seus passos.
A claridade crescia à medida de seu avanço. Seria fato comum, natural, físico ou mesmo ótico; entretanto, a dimensão da claridade era algo sobrejacente, superior, vindo-lhe à percepção imaginativa e intuitiva por fugidios relances, escapando-lhe ao controle. E por instantes o confundiram, pois entre um e outro desses relances o ego voltara a submergir em seu próprio e pessoal conteúdo, naquilo a que seus pensamentos aportara. Haveria, assim, duas formas e uma só representação – já sabia disso – mas existiria uma substancial diferença em relação à sua última visita ao Jardim, caracterizada pelo móvel dessa nova solicitação.
Em cumprimento ao ritual, uma das gigantescas águias pousou a poucos metros do Portal, ruflando as imensas asas, deixando-as abertas, impedindo sua progressão. Bruno juntou as mãos estendidas diante do rosto em suave gesto, dobrou-se em vênia, e voltou à posição original. Então pronunciou firmemente:
- Minha vontade é força, meu propósito é Deus, minha intenção é o mundo. Deixai que mais eu me aproxime do Portal, onde além arde a Chama do Saber!
A águia, mantendo as asas aberta, soltou um guincho dando três pulos para trás; Bruno deu três largos passos adiante; parou e novamente pronunciou as mesmas palavras. Ela soltou um mesmo guincho e de novo lançou-se para trás em três pulos. Bruno adiantou-se como antes e pela terceira vez pronunciou as mesmas palavras. A águia deu mais três pulos para trás, e a um metro do Portal soltou um novo guincho, porém desta vez estridente e horripilante. Então bateu as asas, provocando vento que mexeu com galhos e folhas do arvoredo mais próximo, e alçou voo em direção oposta ao Jardim.
Os passos seguintes de Bruno foram lentos e trouxe os olhos pousados no chão. Repetia mentalmente o objeto da visita como a reafirmação de uma senha que lhe permitiria adentrar. A um metro do Portal, no exato lugar onde a águia por último permanecera, ele parou e elevou a cabeça. O Portal era magnífico! Duas largas e frisadas colunas resplandeciam uma luz não totalmente branca, porém translúcida. Essa luz vinha irradiar-se para frente e pelas laterais externas. Acima tinha o arco, constituído de sete cores como pequeno arco-íris que pousava as extremidades sobre capitéis. Nada naquele portal teria a solidez da matéria: havia supina suavidade em todas as suas formas. Nada depreendia senão magnitude e admiração, e rebrilhava sem ferir ou ofuscar a visão. Não obstante, transmitia a exata idéia de ali existir intransponível fortaleza para quem não viesse incorporado de um real motivo, com a mente purificada. O coração poderia estar pesaroso ou entristecido por que, afinal, ele vinha pedir, mas o cerne do pensamento precisaria estar anelado a uma nobre razão e impessoal objetivo. O Portal do Jardim Ardente era de todos os modos luz concentrada, formalizada em poder – isto se tornava evidente!
Mas havia uma cortina completamente negra como um pedaço da noite, separando o Jardim do mundo exterior. A claridade anunciada detrás das imensas folhagens das gigantescas árvores era impossível ser contida ou ignorada, e deveria mesmo ser observada por qualquer um. O caminho, entretanto, a via única de entrada e o que mais ao derredor pudesse existir, achavam-se encobertos. Ao Portal muitos chegariam, mas ao seu umbral nem todos ultrapassariam. E dentre os que ultrapassassem, nem todos obteriam aquilo que tinham vindo buscar. Este era o grande dilema e a prova subterfugia.
Segue Parte III
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Rayom Ra
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