domingo, 27 de novembro de 2022

A história de "Mãe Preta do Congá"...

 

A história de "Mãe Preta do Congá"...


Vocês podem me chamar de Mãe Preta ou Mãe Pretinha... Carrego esse nome com orgulho, porque ele me libertou e me religou ao meu passado de africana.
Eu nasci na África do Sul, entre os anos de 1723 e 1725. Naquela época não era costume prestarmos atenção em datas. Costumávamos olhar o sol, a lua e as estrelas. E também olhávamos os movimentos das águas e dos animais, para sabermos se haveria seca.
Meu pai era um Nganga da Tribo Ngangela. Nossa tribo vivia a princípio ao sul do Continente Africano. Depois, com as invasões e perseguições dos Europeus, adentramos o Continente e nos mudamos.
Por isso, hoje em dia, quando vocês estudam nosso povo, percebem a extinção de muitas raças e a migração de muitas tribos, para outros territórios...
Nós éramos um povo coletor e caçador. Coletávamos o alimento nos bosques. E também caçávamos. Andávamos nus e vivíamos em pequenas casas, construídas com cipós e capim. Vivíamos com simplicidade, alegria e fartura.
Mas, um dia tudo mudou... Eu estava com sete anos de idade, quando homens estranhos chegaram com gaiolas, cordas e armas. Nossa tribo era pacífica e nem percebeu o que estava acontecendo!
Alguns de nós tentaram resistir ou fugir... Meu pai lutou e foi morto e minha mãe foi enjaulada. Todos fomos caçados e enjaulados como animais! 
Deixarei de narrar todo o horror de nosso transporte até a terra de vocês, porque ainda sinto tristeza quando relembro essa parte...
Quando chegamos ao vosso Continente, muitos de nós haviam morrido ou estavam fracos e desnutridos. Aqueles que sobreviveram foram considerados fortes e capazes. Eu sobrevivi, só que me senti a pior das criaturas!
Todos nós fomos separados e comercializados em praça pública... Um espetáculo grotesco e repugnante! Exibidos como cavalos de raça, que mostram os dentes e os cascos para demonstrar sua capacidade. 
Me perdoem a observação. Sinto dor ao pensar que seres humanos comercializam outros seres humanos. E também sinto dor, por todos os absurdos que a humanidade comete e cometeu em nome da superioridade.
Prosseguindo: minha mãe morreu na viagem de doença e tristeza. Eu cheguei à essa terra e fui comprada por um rico mercador de joias.
Ele vivia com a esposa e filhos na região de Ouro Preto, em Minas Gerais. Assim que cheguei, passei a ser sua serva pessoal e escrava sexual.
Fui alojada junto com outros escravos num cômodo ao lado da casa. Ninguém falava minha língua, pois éramos todos de etnias diferentes. Para nos comunicar usávamos gestos e sinais.
Cada vez que o mercador saía para negociar me levava com ele. Assim vivi dez anos, até engravidar e ser vendida por sua esposa a um outro dono.
Minha nova casa era uma fazenda distante e meu novo proprietário era mais gentil. Fui colocada junto aos outros escravos, onde as acomodações eram melhores do que minha antiga residência. A comida também era melhor...
Ali, nesse lugar, tive meu filho, um mestiço de olhos amendoados, a quem dei o nome de José. Eu já entendia a língua e compreendia os costumes.
Eu ainda não sabia onde estava... Mas, depois de um ano descobri que era em um lugar chamado Campinas.
Passei a trabalhar na lavoura de cana-de-açúcar e no engenho. O trabalho preencheu meu tempo e os anos voaram...
Meu novo patrão nunca me encostou e eu o agradeço por isso. Eu nunca casei... Os anos de servidão sexual me bastaram suficientemente.
O tempo passou e eu permaneci naquela fazenda até o final de meus dias. Foi bom, porque ali, pelo menos, recebíamos um tratamento melhor.
Meu filho José cresceu e passou a me ajudar na lavoura. Com o tempo lhe ensinei os costumes de nossa gente e lhe contei tudo o que eu sabia...
Falei de nossa terra, de nossa tribo e de nossos antepassados. Ensinei a ele o que meus pais me ensinaram... Ensinei José a ser um Ganga (Nganga).
Desde que recordei os costumes de meu povo, decidi atender a todos que me procuravam...
Eu fazia unguentos, chás e emplastros para tratar feridas ou machucados. E também benzia... E foi a partir desse momento que fiquei conhecida como "Mãe Preta".
Atendi todos os dias do resto da minha vida. E só parei de atender no dia em que fechei os olhos para esse mundo.