quarta-feira, 13 de junho de 2018

A BARCA DE RÁ II



Os egipcios acreditavam que durante a noite, apesar do deus-Sol se tornar invisível, a divindade continuava a sua jornada. Ao pôr-do-sol o deus passava da barca do dia para a barca da noite e, junto com outras divindades, navegava nas águas subterrâneas através das regiões das horas noturnas, iluminando o mundo das sombras e vencendo criaturas hostis. 

Uma das obras que narra essa viagem é chamada modernamente de Livro de Him no Inferno e, entre outras coisas, ela descreve as serpentes que habitavam o além-túmulo. As paredes da tumba de Tutmósis III (c. 1479 a 1425 a.C.) imitam um enorme papiro com cenas desse livro, como essa que vemos abaixo na qual uma serpente e mais doze deidades arrastam a barca de Rá.


Nessa jornada, enquanto visitava o reino dos mortos, a divindade lutava contra vários demônios que tentavam impedir sua passagem. As serpentes estavam entre os adversários mais perigosos e o demônio líder de todos eles era a grande serpente Apófis. Ela era a serpente que habitava o Nilo celeste e algumas vezes surgia do fundo das águas para atacar o deus-Sol e fazer sua barca soçobrar. Gigantesca, ela acaba sendo derrotada pelo deus Seth, que, na proa do barco solar, a transpassa com o arpão. 

De acordo com a literatura eegipcia, o inferno dividia-se em 12 regiões que correspondiam às 12 horas da noite e o deus-Sol levava uma hora para atravessar cada uma delas. Nesse trajeto os demônios procuravam obstruir sua passagem e impedir que ele ressurgisse na Terra no dia seguinte.

O egiptólogo Alan Shorter nos diz que nos relatos dessa jornada deparamo-nos com uma hoste de misteriosos seres, enquanto lagos de fogo, vítimas sacrificadas e cem números de serpentes compõem juntas, um verdadeiro pesadelo. 
Ao iniciar a viagem a divindade já sai acompanhada por serpentes, mas estas são suas companheiras: 12 deusas com forma de ofídios cujo trabalho consiste em iluminar a escuridão. 

Na quarta região, o deus sol enfrenta inúmeras serpentes fantásticas com cabeças humanas e muitas pernas curtinhas ou com asas e múltiplas cabeças de cobra. Uma dentre essas serpentes é dotada de pernas e braços humanos e três cabeças, duas numa das extremidades do corpo e uma na outra. Essa última é segurada por um deus que mantém o monstro sob controle. 

Tal serpente é a divindade conhecida pelo nome de Nehebkau, a qual tem uma trajetória de vida interessante: inicialmente ela era apenas um réptil monstruoso que ameaçava os mortos mas, posteriormente, foi domesticada e passou a ser ministro do próprio deus-Sol. Em sua nova função era provedora de alimentos para os falecidos, inclusive para o faraó, a quem protegia e recebia no mundo subterrâneo servindo-lhe comida. Regenerado, esse deus invisível passou a ser conhecido como aquele que protege os espíritos e exercia seu poder protetor não apenas no além-túmulo, mas também durante a vida das pessoas. 

O Texto das Pirâmides refere-se a ele como esposo da deusa Selkis e, por consequência, associado aos encantamentos contra picadas venenosas. Dizia-se que esse deus havia engolido sete najas, do que advinha o seu poder mágico. 

Outra tradição afirmava que o deus era filho de Geb e Renenutet, o que o associava à terra e à fecundidade, o que, por sua vez, podia ser o fator responsável pelos seus poderes. Em um dos encantamentos do Livro dos Mortos o defunto pede para outras deidades que lhe recomendem a Nehebkau, de maneira que seu coração possa ser aceito na vida após a morte. 

Nehebkau também foi chamado de aquele que mantém as energias reunidas, pelo que se desejava significar que nele estavam reunidas as energias do universo em sua totalidade. Ele era um ser primevo e, como tal, um réptil indestrutível e invulnerável. Como um ser primevo, Nehebkau pertencia ao mito da criação e nunca teve, tanto quanto se sabe, um centro de culto próprio ou um culto significativo nos grandes templos. 

No portal da terceira região, por exemplo, ficava postada a serpente Qaby. O espaço defronte ao portão é guardado por serpentes que cospem fogo. Entretanto, quando o deus-Sol chega ao local, nove deuses que ali se encontram defendendo os muros louvam-no dizendo: 

Aberto está o portão para o Morador do Horizonte, escancarada a porta ao Morador dos Céus! Salve e seja bem-vindo, viajante que percorreste o ocidente inteiro!

Na sexta região habitava a serpente chamada Am-akhu e conhecida como Devoradora dos espíritos. É representada rastejando, mas com a cabeça erguida. Por sobre o ponto mais proeminente de cada uma das quatro ondulações de seu corpo surge uma cabeça humana barbada: são as cabeças dos quatro filhos de Hórus, as divindades guardiãs dos vasos canopos. Sua função era a de devorar as sombras e de engolir os espíritos dos inimigos de Rá, de onde advém o seu epíteto de devoradora dos espíritos, e destruir aqueles que fossem hostis ao deus-Sol no mundo subterrâneo.


NA oitava região há seres misteriosos que habitam as águas. Aí também se encontram os inimigos de Osíris, retratados na ilustração acima em número de doze, em posturas de agonia, em grande confusão, de braços atados, enquanto uma imensa serpente de nome Khéti, vomita fogo sobre eles. Ao lado, Hórus, o filho de Osíris, a primeira silhueta à esquerda na figura acima, profere uma sentença terrível para os prisioneiros: 

Sereis cortados em pedaços e passareis a não mais existir! Vossas almas serão destruídas, não mais vivereis, pelo que fizestes ao meu pai Osíris! [...] Ó Khéti, minha serpente, tu, Fogo Poderoso, de cuja boca sai esta chama que está em meu Olho, cujas ondulações são guardadas por meus filhos, abre a tua boca, move tuas mandíbulas, vomita o teu fogo contra os inimigos de meu pai, queima seus corpos, devora as almas com o hálito quente de tua boca e com o fogo que está em teu ventre!

Na nona região habitam 12 najas, ou seja, uma dúzia de serpentes uraei, que cospem fogo pela boca e, dessa maneira, iluminam a escuridão do mundo subterrâneo para Osíris. São elas, também, que provocam a destruição daqueles que são derrotados no além-túmulo. São elas, ainda, que rechaçam as serpentes de todo tipo que rastejam pelo chão e que não tenham formas reconhecidas pelas divindades do submundo. Elas vivem do sangue daqueles que elas fazem em pedaços diariamente; mas só são destruídos, na verdade, aqueles que não conhecem as fórmulas mágicas. Quem as conhece, consegue passar incólume por essas cobras sem ser queimado. 

Na décima região ocorrem os ataques do pior inimigo de Rá, a serpente Apófis, que representava as tempestades e as trevas. Enfrentada por deuses munidos de facas e atada pelo pescoço com uma longa corrente, firmemente mantida por mais de 20 divindades, o monstro não obtém sucesso. O deus-Sol atravessa os domínios da serpente enquanto ela permanece presa em seus grilhões. 

Na décima primeira região, ou seja, já quando o Sol se prepara para renascer em um novo dia, novamente a serpente Apófis ameaça o barco de Rá. Mais uma vez diversas divindades, armadas de enormes facas, enfrentam o monstro, que aqui também surge preso ao solo por cinco correntes.

Finalmente, após superar os obstáculos e vencer todos os inimigos, inclusive o líder de todos eles, a imensa serpente Apófis, o deus-Sol chegava à décima segunda região que é o fim do mundo subterrâneo. 

Tendo o barco solar chegado até aqui, o deus Rá preparava-se para emergir das águas de Nun, a divindade que personifica as águas primordiais, novamente sob a forma de um disco que iluminaria os céus deste mundo. Estando na água, o barco é mantido pelos braços do próprio deus Nun. 


Rá aparece na embarcação sob a forma de um escaravelho que empurra um disco solar. À sua esquerda está Ísis e à sua direita Néftis. Outros oito deuses fazem parte da tripulação. 

Acima do barco há uma espécie de ilha formada pelo corpo de um deus curvado, de maneira que a ponta de seus pés lhe atingem a cabeça. Nesta se apoia Nut, a deusa céu, com os braços e mãos esticadas para receber o disco do Sol que o escaravelho move em sua direção. Assim, o deus-Sol vence finalmente a última etapa de sua viagem noturna e ressurge para brilhar mais um dia sobre a Terra.
(Continua)