Capítulo XIV
Onde uma certa quantidade de indivíduos deseja participar de uma cerimônia mágica composta na qual todos possam desempenhar um papel ativo, há uma forma de ritual de grupo concebida para essa finalidade particular chamada de ritual dramático. Assim, cada pessoa que participa contribui com força de vontade e energia a favor da criação de uma manifestação espiritual. Quase todos os Mistérios da Antigüidade assumiam essa forma, e os ritos de Iniciação das fraternidades secretas de todas as épocas eram conduzidos em conformidade com esse princípio. É fato extremamente bem conhecido os rituais serem particularmente úteis em matéria de iniciação.
É igualmente corroborado que tais cerimônias desempenhavam um papel preponderante nos mistérios mágicos do Tibete, onde a aceitação de um lanoo era celebrada por um rito consagrando o discípulo à execução da Grande Obra. A história do ioga budista Milarepa é perfeitamente clara quanto ao importante ponto de nas mãos de seu guru ele ter recebido diversas iniciações cerimoniais, quando várias divindades e poderes espirituais foram invocados para dentro de um círculo, ou mandala, onde ele permanecia. Além disso, é conhecimento comum o fato de o candidato à iniciação bramânica testemunhar um ritual de purificação e consagração. Que havia rituais de iniciação no antigo Egito é também demasiado notório para exigir especial ênfase e o rumor de cerimônias mágicas no Egito nos alcançou enriquecido de muitos detalhes sugestivos e significativos itens de informação. Com efeito, se o princípio subjacente do ritual dramático de grupo, iniciático ou mágico, é a consagração da Grande Obra e a exaltação da consciência, então dispomos de incontestável evidência de que cerimônias concebidas similarmente foram representadas ao longo da Antigüidade.
O princípio básico é idêntico ao de todo ritual mágico, a invocação num sentido ou outro de um deus. Mas no caso do ritual dramático, o método procede através de um apelo estético à imaginação, retratando sob forma dramática a corrente dos eventos maiores na história da vida de um deus, e ocasionalmente o ciclo terrestre de um homem ideal ou homem-deus, tal como Dionísio, Krishna, Baco, Osíris, etc., alguém que atingiu aquela sabedoria e plenitude espiritual pelas quais o teurgo também está em busca. Viver na atmosfera de criação nova e repetir as façanhas realizadas pelo deus constitui um método sumamente excelente para a exaltação da alma. Essa idéia é chamada de princípio da comemoração e é um constituinte integral de toda cerimônia mágica. Da observação de de Occulta Philosophia fica bastante evidente que H. C.
Agrippa e aqueles dos quais recebeu seu conhecimento entendiam perfeitamente o princípio teórico envolvido nessa forma de magia, o qual exige o ensaio do personagem do deus a ser invocado, ou uma repetição dos acontecimentos que ocorreram no ciclo de vida de seu emissário mundano. Não apenas deve este princípio fazer parte do ritual dramático aprovado, como também todo e qualquer aspecto da cerimônia mágica, seja realizado por um indivíduo ou um grupo, deve ser marcado pela entusiástica repetição de uma série de incidentes altamente significativos da história do deus, o ensaio servindo assim para dar autoridade e ênfase suplementares ao processo duplo de consagração e invocação. Mesmo num aspecto relativamente tão trivial como a preparação preliminar das armas e instrumentos, Agrippa corretamente recomenda a repetição das façanhas sagradas; e como um exemplo do princípio comemorativo que ele advoga, podemos citar com proveito o procedimento proveniente de The Fourth Book of Occult Philosophy (O Quarto Livro da Filosofia Oculta) para a consagração da água: “Assim, na consagração da água, devemos comemorar como Deus colocou o firmamento no meio das águas, e de que maneira Deus colocou a fonte das águas no paraíso terreno... e também como Cristo foi batizado no Jordão, tendo daí santificado e limpo as águas. Ademais, certos nomes divinos têm que ser invocados, que com isto estão em conformidade; como que Deus é uma fonte viva, água viva, a fonte da misericórdia, e os nomes de tipo similar”.
O leitor poderá, também, observar a forma comemorativa do ritual de A Goécia, que é citado no último capítulo deste livro. A invocação tenta descobrir as palavras de autoridade que foram empregadas nas Escrituras para a execução de certas proezas. Não constitui, entretanto, um exemplo especialmente bom desse tipo de ritual. As Bacantes de Eurípides é um exemplo de primeira categoria de qual forma deveria assumir um ritual dramático completo. O ritual deve ser construído de tal modo que cada celebrante desempenhe um papel, sem, ao mesmo tempo, tornar a ação do drama dispersa e incoerente. As regras da arte teatral e do drama se aplicam perfeitamente à construção desses rituais.
A evidência histórica a nossa disposição demonstra claramente que a “peça de paixão” da vida do grande deus Osíris, rei do Tuat, era realmente um complexo ritual dramático que o invocava, uma cerimônia comemorativa envolvendo a repetição de quase todos os atos que ocorreram a Osíris no curso de sua vida lendária na Terra entre os homens. Na base desta celebração e de todos os outros tipos similares, temos a invocação de um deus, ou do avatar em quem ele habita, e por meio desse ensaio dramático o teurgo procura exaltar sua imaginação e consciência de sorte que possa culminar na crise estática da união divina. Para o indivíduo cujo senso estético e poético é altamente desenvolvido, essa espécie de cerimônia é, de longe, a mais eficiente. É perfeitamente evidente que uma representação simbólica do que era antes um efetivo processo espiritual numa personalidade altamente reverenciada só pode auxiliar na reprodução da união colocando o teurgo em relação de simpatia e harmonia mágica – mediante o efeito em sua imaginação – com a tendência ascendente da peça para a meta suprema.
Em suma, o teurgo imagina a si mesmo no drama sendo o deus que sofreu, ele próprio, experiências similares, as várias partes da peça e os rituais recitados servindo apenas para tornar a identificação mais completa. É este fato que levou certas gerações de magos precariamente iniciados a adotar para o uso cerimonial máscaras de verdade, itens grotescos e legítimos artifícios teatrais. Estaremos diante do tema central do ritual dramático quer escolhamos como exemplo a missa da Igreja Católica Romana, a realização do ritual do Adeptus Minor da Ordem Hermética da Golden Dawn, o Terceiro Grau da Francomaçonaria, ou a celebração das orgias dionisíacas tal como esboçadas em As Bacantes. Em cada caso a vida de um Adepto iluminado é ensaiada sob plena forma cerimonial, isto é, a história de um ser cuja consciência foi tornada divina é magicamente celebrada.
O método de representação retrata um homem que morre real ou misticamente e que realiza sua própria ressurreição como um deus, irradiando sabedoria e poder divinos. Visto que Osíris era para os egípcios o melhor exemplo de alguém que superou sua humanidade e atingiu a união divina, assim passando para a posteridade como o tipo e símbolo de regeneração, vários capítulos e versículos do Livro dos Mortos representam o morto identificando a si mesmo como aquele deus dirigindo-se aos assessores no salão do julgamento. O ritual dramático que os egípcios realizavam para a invocação de Osíris em Ábidos era uma peça que parece ter consistido de oito atos. “O primeiro era uma procissão na qual o antigo deus da morte, Upwawet, tornava reto o caminho para Osíris. No segundo a própria grande divindade aparecia na barca sagrada, que era também colocada à disposição de um número limitado dos mais ilustres dos visitantes peregrinos. A viagem da embarcação era retardada por atores vestidos como os inimigos de Osíris, Set e sua companhia... Seguia-se um combate no qual ferimentos reais parecem ter sido dados e recebidos... Este evento parece ter ocorrido durante o terceiro ato, que era uma alegoria dos triunfos de Osíris. O quarto ato retratava a saída de Thoth, provavelmente em busca do corpo da vítima divina. Seguiam-se as cerimônias de preparo para o funeral de Osíris e a marcha do populacho ao santuário do deserto além de Ábidos para inumar o deus em seu túmulo. Em seguida era representada uma grande batalha entre o vingador Hórus e Set, e no ato final Osíris reaparecia, sua vida recuperada, e adentrava o templo de Ábidos numa procissão triunfal (Os Mistérios do Egito, Lewis Spence).”
Não apenas havia os Mistérios de Osíris, no tempo em que os mitos ligados ao deus eram ensaiados, como também rituais de grupo para a invocação de Ísis, Hathor, Amon e Pasht e outros deuses eram celebrados sem referência a qualquer indivíduo humano cuja relação com eles fosse aquela de um avatar. Na missa católica a vida e o ministério divinos do Filho do Deus cristão são celebrados, em seguida a crucificação de seu salvador, e sua ressurreição final em glória seguida da assunção aos céus. Em épocas mais antigas, esta celebração da missa era acompanhada por procissões deslumbrantes e cortejos dos mistérios cheios de suntuosidade, esplendor e pompa, embora se deva confessar que na ausência da técnica mágica toda essa ostentação externa contava muito pouco. O Terceiro Grau dos maçons dramatiza o assassinato do Mestre, Hiram Abiff, e sua ressurreição se segue posteriormente por um ato mágico, o soar da palavra mágica perdida devolvendo H. A. à vida.
Os eventos, ricos em movimento, realização e organização na vida do lendário fundador da Ordem Rosacruz, Christian Rosenkreutz, também o símbolo de Jesus, o Filho de Deus, são totalmente dramatizados com grande beleza no ritual de Adeptus Minor da Ordem da Golden Dawn. Sua finalidade, também, é que através da simpatia atuando sobre uma imaginação refinada, o teurgo possa identificar a si mesmo com a consciência exemplar da qual Rosenkreutz era o símbolo, e cuja história está sendo repetida ante ele. Numa cena, a mais importante e eloqüente desse ritual, o principal oficiante hierofântico é visto deitado como se estivesse morto no pastos ou túmulo místico. Por meio de orações e invocações, o Adepto é simbolicamente ressuscitado da tumba em cumprimento da profecia da grande fundador. Na hora solene da ressurreição, quando a cerimônia revela a ressurreição do Adepto como Christian Rosenkreutz do pastos onde ele estava enterrado, o Adepto Maior profere triunfalmente: “Pois sei que meu redentor vive e que ele se postará no derradeiro dia sobre a Terra. Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém virá ao Pai a não ser por mim. Eu sou o purificado; eu atravessei os Portais das Trevas para a Luz; lutei sobre a Terra pelo bem; findei minha obra; eu adentrei o invisível. Eu sou o Sol no seu nascer. Eu passei através da hora nublada e noturna. Eu sou Amon, o Oculto, aquele que abre o dia. Eu sou Osíris Onnophris, o Justificado. Eu sou o Senhor da Vida que triunfa sobre a Morte; não há nenhuma parte de mim que não pertença aos deuses. Eu sou o preparador da senda e aquele que resgata para o interior da Luz. Que aquela Luz surja das Trevas! Antes eu era cego, mas agora vejo. Eu sou o reconciliador com o inefável. Eu sou o habitante do invisível. Que o brilho alvo do Espírito divino desça!
Essa peã de êxtase não é para ser interpretada como um mero discurso de palavras grandiloqüentes. Se o Adepto realizou adequadamente sua obra mágica, e se encobriu perfeitamente com a forma mágica apropriada, e se identificou com a consciência do deus, os outros participantes da cerimônia experimentarão uma exaltação paralela ao discurso de triunfo.
As formas mais usuais do ritual dramático tais como aplicadas às iniciações funcionam aproximadamente mais ou menos da maneira que se segue. Após sua entrada nas câmaras externas do Templo de Iniciação, onde ele é imediatamente vendado, vestido com um toga preta e circundado três vezes pela cintura com um cordel, o neófito é conduzido pelo guardião às estações onde estão presidindo oficiantes nos pontos cardeais. O objetivo da venda é representar a cegueira da ilusória vida mundana e a ignorância nas quais o ser humano incorrigível se debate, vítima involuntária da tragédia perpetuamente representada de nascimento, decadência e morte dolorosos. O cordel é triplo para representar os três elementos maiores: fogo, ar e água; a toga é preta para representar também o negrume da vida e Saturno, que é morte, o grande ceifador de tudo.
O neófito circumpercorre o templo diversas vezes, e durante seu circumpercurso os oficiantes, que deverão ser no futuro seus instrutores mágicos e que igualmente representam os deuses sumamente benfazejos, exigem do neófito as afirmações de seus objetivos e aspirações. Este procedimento automaticamente chama nossa atenção para o Livro dos Mortos, onde no capítulo CXLVI e naqueles que se seguem a este, os anjos e os deuses encarregados dos pilones sagrados ou as grandes estações a serem ultrapassadas pelos mortos a caminho do Amentet, indagam destes últimos seus negócios. Como reação à sua resposta de que o nome do guardião é conhecido – com cujo conhecimento o nome não é senão um símbolo – e que ele vem para responder a Thoth, conseqüentemente em busca da sabedoria superior, cada um deles lhes dão permissão para prosseguir. “Passa, diz a sentinela do pilone. Tu és puro!”
É possível ver no Museu Britânico um excelente ritual de iniciação intitulado “O Mistério do Julgamento da Alma”, reconstruído por M. W. Blackden a partir dos capítulos de O Livro dos Mortos que tratam da ascensão do morto ao salão do julgamento, e sua beatificação na ilha da verdade. Demonstra de uma maneira extremamente boa que pode muito bem ter sido que os textos que chegaram a nós sob o título de O Livro dos Mortos eram fragmentos de um ritual de iniciação usado na época em que o Egito florescia com os Sacerdotes-Reis-Adeptos o dirigindo. O ritual do neófito da Golden Dawn, de modo semelhante, incorporou em si elementos egípcios muito similares. Neste ritual vários oficiantes, representando os deuses cósmicos, retardam o progresso do neófito em seu circumpercurso das estações do templo. “Tu não podes passar por mim, diz o Guardião do Oeste, a menos que possas dizer meu nome.” E a resposta em nome do candidato é dada: “Escuridão é o Teu Nome! Tu és o Grandioso da Caminho das Sombras.” Diante disto profere-se a prescrição: “Filho da Terra, medo é fracasso. Sê tu, portanto, destemido, pois no coração do covarde a virtude não habita! Tu me conheceste, assim segue em frente! “ À medida que o ritual prossegue com muitos desafios e respostas semelhantes vários pontos de instrução mágica são apresentados, acompanhados por consagrações pelo fogo e a água, purificando assim o neófito para a jornada posterior.
Estas consagrações efetuadas pelos representantes dos deuses no templo nos pontos cardeais constituem a preparação para a realização da Grande Obra. Por meio de invocações as forças celestiais do além são infundidas no ser do neófito, dotando-o de coragem e vontade que o capacitam a perseverar resolutamente até o fim. Então a venda, o cordel e a veste negra são removidos, dando lugar a um manto ou faixa atirados aos ombros para simbolizar a pureza da vida e a grandeza da aspiração que atingiu o candidato. Terminadas as consagrações e concluídas as invocações das essências, um certo conhecimento fundamental de magia e o alfabeto filosófico é comunicado sob um voto de segredo. Isto, como um todo, omitindo-se um grande número de pontos secundários e variações triviais, constitui a base do ritual de iniciação do neófito.
Se não houver, todavia, o prosseguimento do trabalho mágico prático em seu próprio interesse, essas iniciações e rituais não terão qualquer proveito para o neófito. Que servem efetivamente de preparação é verdadeiro, e também transmitem uma certa consagração e sacramentalização tornando a tarefa do neófito mais compreensível e talvez menos perigosa devido a virtude deles. A título de confirmação, lembraremos que Milarepa depois de suas iniciações foi imediatamente aconselhado por Marpa a iniciar o trabalho prático, que em seu caso era meditação e concentração.
Ao aprendiz preparado seja por meio de treino seja por meio de alguma peculiaridade de nascimento – o qual, em qualquer caso devido à reencarnação implica numa atenção anterior a estas coisas – a iniciação cerimonial tem um efeito distinto ao conceder ao aprendizuma visão efêmera, porém resplendente da meta espiritual buscada por ele e que ele agora indistintamente encara. E de fato assim é se os oficiantes do templo forem hierofantes não apenas no nome mas em realidade, devidamente versados de um ponto de vista prático na rotina e técnica mágicas, pois quando um oficiante do templo representa o papel de um deus, se ele estiver familiarizado com os métodos da técnica mágica, assumirá a forma daquele deus tão perfeitamente que as emanações magnéticas provenientes do deus nele fluirão para a alma interior do neófito.
Esse assumir de formas divinas tal como anteriormente descrito, pode ser levado bastante longe, mesmo ao ponto da efetiva transformação, e há registro de exemplos autênticos nos quais o neófito, se suficientemente sensitivo, vê à distância no salão não simplesmente um ser humano atuando arbitrariamente como hierofante, mas sim uma gigantesca figura divina, fulgurante e espantosa, do deus que o homem representa cerimonialmente. Quando, como afirmei, os hierofantes são magos treinados, como eram na época do antigo Egito, a iniciação dos neófitos não se limitar a ser um serviço formal sem significado, mas é uma cerimônia de extrema realidade e poder.
Isto concerne aos rituais de iniciação. O ritual dramático que não envolve nenhuma questão de iniciação é bastante similar do prisma da concepção e execução. Diversos indivíduos ensaiam em concerto para seu próprio mútuo benefício a vida de um deus, e por meio de repetidas invocações, comemorando mediante o discurso e a ação incidentes e acontecimentos da história daquele deus, e têm êxito em fazer aparecer o deus numa área consagrada. Acatando a técnica mágica e exaltando a si mesmos suficientemente além do plano dualístico normal de consciência ocorrerá uma união duradoura entre os participantes e a divindade. As Bacantes é um exemplo notável de um ritual dramático grego. Na verdade, de um ponto de vista cerimonial, é tudo que um ritual dramático deve ser quanto à forma. E é tão excelente que aqueles que nele têm interesse hoje o fazem devido ao seu sentimento de que se trata de uma esplêndida tragédia teatral. No caso de uma companhia de indivíduos iniciados que estão bem familiarizados com a invocação, trabalhando simpaticamente entre si, e exercendo a vontade e a imaginação na forma mágica prescrita, a peça pode ser transformada numa poderosíssima invocação dramática de Dionísio. A tradução em versos rimados do Professor Gilbert Murray é mais uma obra-prima clássica de poesia recriativa do que uma tradução literal do grego, transmitindo com suma fidelidade a atmosfera religiosa e o espírito ditirâmbico da veneração a Baco. Há nesta peça uma suplicação ao deus no estilo exaltado tão típico de todas as invocações:
“Aparece, aparece, qualquer que seja tua forma ou nome
Ó Touro da Montanha, Serpente de Cem Cabeças,
Leão de Flama ardente!
Ó Deus, Besta, Mistério, vem! ... “
Abordando o mesmo tema mágico, há um esplêndido hino a Dionísio proveniente dos Hinos místicos de Orfeu, traduzido por Thomas Taylor:
“Vem, abençoado Dionísio, o variamente nomeado,
De face taurina, gerado do trovão, Baco afamado.
Deus bassariano, de universal poder,
De quem espadas, sangue e ira sagrada causam prazer:
No céu regozijando, louco, Deus de alto som,
Furioso inspirador, da vara o portador:
Pelos Deuses reverenciado, que com a humanidade está presente,
Propício vem, com mui regozijadora mente.”
Muita prática e ensaio se fazem necessários para dar eficácia a esses rituais dramáticos, além do trabalho mágico que se segue, como foi salientado. Sem este último absolutamente nada pode ser efetuado. A técnica astral de ascensão nos planos, investigando-se os símbolos pela visão, a formulação das formas ou máscaras dos deuses e a vibração dos nomes bem como as celebrações de alguma forma de eucaristia representam necessidades no caminho da magia. É verdade que se exige uma enorme quantidade de paciência, mas isto se verifica verdadeiro em relação a todas as coisas que valem a pena de uma maneira ou de outra. O teurgo deverá prosseguir diariamente com essas práticas invocatórias e rituais até atingir o estágio em que se sinta que detém o poder sob seu controle. Na verdade, o que há de mais essencial para o sucesso em todas as formas de magia – seja o ritual dramático ou qualquer outra coisa – é a perseverança. Não importa o que mais seja feito, o mago deve cultivar a paciência. É mister que ele se prenda com firmeza e sem desânimo a um programa pré-organizado de trabalho mágico. O curso que ele formulou e jurou executar representa o logos de sua vontade, do qual ele não ousa se desviar uma única polegada ou mesmo uma fração de polegada. Temores e dúvidas igualmente o assaltarão por certo. Amigos e inimigos igualmente ameaçarão a paz de sua mente e a serenidade de sua alma, e tentarão maximamente perturbar seu equilíbrio espiritual com tagarelice ociosa a respeito do perigo da magia e a incerteza de seus resultados. A hoste inteira do céu, para mencionar só de passagem as miríades de legiões do inferno, conspirarão e estarão soltas contra ele. Mas somente se ele desistir, desprezando seu voto e rejeitando sua aspiração, estará o mago irreversivelmente perdido. O desastre horrendo estará à espreita à frente! Uma vez tenha o voto mágico sido assumido voltado para o sucesso, ele terá que perseverar resolutamente sem se preocupar com seja lá o que for que aconteça. Se for colhido pela morte no desenrolar de seu trabalho, que prossiga, mesmo assim, adiante, de uma vida para outra, com a alma bem concentrada e o olhar espiritual fixado firmemente nas alturas, fazendo um vigoroso juramento de que dará continuidade a esse labor.
Lévi uma vez observou que o mago tem que trabalhar como se fosse detentor da onipotência e como se a eternidade estivesse a sua disposição. Ocorre-me uma lenda singela, porém bela, na qual esse tema está presente, incitando o mago a seguir à frente para a Casa do Repouso sem interromper seu empenho, isento de dúvida e medo, trabalhando por aquela meta que ele primeiramente criou e que agora considera nebulosamente na distância longínqua da aurora dourada na Terra Sagrada. Mal conhecida atualmente e esporadicamente objeto de referência, aparece num pequeno livro intitulado The Book of the Heart Girt with the Serpent (O Livro do Coração Cintado pela Serpente), de Aleister Crowley. Embora eu não advogue em nome deste poeta, considero, contudo, essa pequena obra uma das mais profundas e primorosas jamais escritas. A citação abaixo serve como exemplo tanto de sua prosa quanto de suas idéias relativamente à questão que agora abordamos.
“Houve também um colibri que falou a Cerastes e lhe implorou veneno. E a grande cobra de Khem, o Sagrado, a serpente Uraeus real, respondeu-lhe e disse: Eu velejei sobre o céu de Nu no carro chamado Milhões de Anos e não vi qualquer criatura acima de Seb que fosse igual a mim. O veneno de minha presa é a herança de meu pai, e do pai de meu pai... Como dá-lo a ti? Vive tu e teus filhos como eu e meus pais vivemos, mesmo até cem milhões de gerações, e pode ser que a misericórdia dos Poderosos conceda aos teus filhos uma gota do veneno da Antigüidade.
“Então o colibri afligiu-se em seu espírito e voou para as flores, e foi como se nada tivesse sido conversado entre eles. Entretanto, pouco depois, uma serpente o feriu e ele morreu.
“Mas uma íbis que meditava às margens do Nilo, o belo deus, ouviu e atendeu. E pôs de lado seus modos de íbis e se tornou como uma serpente, dizendo: Talvez numa centena de milhões de milhões de gerações de meus filhos eles obtenham uma gota do veneno da presa da Exaltada. E vede: antes que a lua crescesse três vezes ele se transformou numa serpente Uraeus e o veneno da presa foi nele e em sua semente estabelecido por todo o sempre.”
Para o mago é esse espírito sublime de vontade e determinação indomáveis que nada pode vencer que é indispensável. É o poder da vontade que de facto constitui o mago e na ausência deste poder nada de qualquer monta pode ser feito. A realização não é atingida em quatro e vinte horas, nem mesmo em vários pores-do-sol; a visão resplandecente e o perfume que consome a própria substância da alma podem estar muitos anos no futuro – mesmo muitas encarnações nas vagas trevas do porvir. Quiçá para alguns a concretização do desejo mais íntimo e da aspiração por Adonai seja uma meta que pertence a um outro mundo, um outro eon e exista na natureza de um sonho. Outros indivíduos podem julgar este um objetivo cujo doce fruto se torna rapidamente disponível à mão com escasso dispêndio de trabalho para ser colhido. Num caso ou no outro nenhum aprendiz está na posição de afirmar no princípio em que momento a meta poderá ser alcançada. Tampouco se trata de um problema que mereça preocupação pois a alma cresce e progride à medida que a compreensão e a intuição se expandem através de atos sucessivos do espírito na estrada da magia da luz. As asas se tornam então mais vigorosas, o próprio vôo se tornando mais longo, e a lâmpada interior alimentada com o azeite da sabedoria permanece continuamente acesa. Ao mago é imperioso considerar sempre esta luz interior e levá-la pacientemente consigo pelos desvios e estradas dos homens, até que ele se transforme nessa luz.
Acima de tudo o que é exigido é aquela imperturbável aspiração e vontade indomável ... daí ao trabalho! Que a aspiração do mago seja como a da sábia íbis de Khem. Dispa-se de seus modos humanos e vista-se daqueles do deus! O Conhecimento e a Conversação podem ser uma dádiva que não lhe seja concedida por centenas e milhares de anos, mas quem sabe para onde o espírito se inclina? Pode ser que por inflexível determinação, como aquela da íbis, para lograr a meta, não importa quanto tempo possa levar, floresça a flor dourada da vida de Adonai no interior do coração mais celeremente do que de outra forma poderia ter sido o caso.
Enquanto isto, deve-se dar prosseguimento ao trabalho mágico. Ao teurgo compete diariamente ascender nos planos num esforço de elevar-se mais e mais, e lutar por seu caminho para as esferas translucentes da luz límpida do fogo. A passagem de cada estação verá sua aspiração cada vez mais forte, transmitindo-lhe a força para desimcumbir sua tarefa de conquista e união mágicas. Todas as coisas têm que ser trazidas para dentro da esfera de sua vontade, tanto os céus excelsos quanto os infernos mais inferiores. Essa vontade tem que ser imposta aos mais vis habitantes do astral e estes terão que se curvar diante de todo desejo seu e todo seu domínio. É óbvio que sobre os ombros do mago pesa uma tremenda responsabilidade, a qual cresce a cada passo à frente que ele dá, e à medida que transcorre cada hora de sua carreira.
“A natureza nos ensina, e os oráculos também afirmam, que mesmo os germes nocivos da matéria podem igualmente ser tornados úteis e bons.” Consequentemente, a responsabilidade que cabe ao mago como um penhor sagrado é esta: a ele e somente a ele compete a tarefa de transformar o universo e de transmutar os elementos grosseiros da matéria na substância do espírito verdadeiro. Toda sua vida terá que se transformar numa constante operação alquímica e durante esta vida ele distilará no alambique de seu coração a grosseria do mundo para que se converta na essência dos céus sem nuvens. Sua cabeça, também, tem que se elevar além das nuvens à medida que ele, de pé e ereto, terá seus pés firmemente sobre a terra multicolorida. Somente tenacidade e persistência facultarão essa retidão do espírito e esse poder adamantino da vontade. E estes são os pólos gêmeos que proporcionam resistência e extensão ao báculo do mago. Todos os ramos da teurgia devem ser objeto de persistência ao longo dos anos, não maculados pela cobiça pelos frutos das ações do mago. Em todos os casos, como todos podem ver, a arte divina constrói caráter e vontade e no devido tempo um karma favorável será criado em cujo senda nenhum obstáculo ousará se interpor, quando o Anjo se apressará em elevar a alma – sua amada há tanto tempo, e consumar as núpcias místicas prolongadas para tantos numa idade exaustiva. “Nesse dia o Senhor será Um, e Seu Nome será Um.”
E mesmo que não atinjamos a unidade com Adonai, há na magia um grande ganho visto que por meio dela buscamos transmutar o grosseiro no sutil e no puro. E esta é a redenção do mundo. Muito brevemente todo o nosso ser circundará um sol invisível de esplendor e seremos mais e mais atraídos para ele, como o aço é atraído para o magneto. Embora possam ser necessários eons para que finalmente cheguemos perto, ainda assim nos sentimos talvez como Adão deveria ter sentido se tivesse visto tremeluzindo através das trevas do exílio em que lutava o brilho do paraíso celeste e soubesse que este não estava realmente perdido, mas que após a purificação dele, Adão, lhe seria concedido um pouco dele em que entrasse e caminhasse. Dispor desta certeza não é pouca coisa. Trata-se de uma visão que não deve ser encarada com trivialidade. Embora inevitavelmente tenhamos que falhar e cair reiteradas vezes, há horas e minutos de prazer e alegria quando os anjos das alturas trajam novamente ante nossa vista seus antigos aspectos de glória, e nós somos fundidos no calor e fogo do êxtase e contentamento, cientes de que nós, os mortos por séculos e longas eras, podemos ainda ressuscitar de novo.
(Autor: ISRAEL REGARDIE)