quinta-feira, 9 de junho de 2022

VÓ CATARINA E SUA HISTÓRIA

 VÓ CATARINA E SUA HISTÓRIA


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📿📿📿

Foi sentada num toco, que Vovó Catarina, segurando sua bengala e acariciando um rosário, me contou sua história.
Dos tempos de menina quase nada restou, ao menos nada que quisesse contar-me. Sua narrativa já a encontra adulta, cativa numa fazenda, numa terra chamada Brasil.

Espremida entre outras negras, numa senzala, Catarina tem por obrigação trazer ao mundo outras almas, lucro para seu senhor.
Suas mãos de parteira habilidosa aparavam aquelas criaturas que nasciam sob a insígnia da escravidão. Escravidão de almas, de direitos, de raízes, de querer, de tudo! Marcados todos, com o sinal do dono, marcados todos para apenas sobreviver. Cada criança nascida enchia seu coração de dor pelo destino que lhes estava reservado.

Seu compromisso perante seu senhor não era apenas trazer ao mundo aqueles pequenos infelizes, mas sim “peças” fortes e capazes para o trabalho.

Se o destino deixava que lhe escapasse algum, era severamente punida pelo prejuízo causado. Por isso, pagava com dor, corpo castigado, preso ao tronco, cada alma que Zambi levava.

A mulher que nunca foi mãe é agora avó de muitos, por isso passa a ser chamada de Vovó Catarina.

A menina negra, contrabandeada de sua terra natal pela ganância, arrancada de suas raízes pela cor da sua pele, vendida como mercadoria, açoitada por feitores, cumpre o seu destino de parteira. Traz ao mundo, dentro da senzala imunda, dezenas de crianças de sua cor, para compartilhar seu próprio sofrimento, o sofrimento reservado àqueles que não possuem direito, nem ao menos ao próprio corpo.

Vovó Catarina, do alto de sua sabedoria, diz saber que a escravidão, tanto quanto cruel, não foi inútil.
Serviu para resgatar os erros cometidos por seu povo, quando ainda encarnados em terras africanas. “A justiça de Deus não comete enganos.”

Cada negro aprisionado estava, também, acorrentado aos seus próprios erros, resgatando-os, um a um, com dor, humilhação e sangue.

Diz ela: “Não há povo mais sofrido, até hoje, do que o que tem a mesma cor que a minha. Cada preto e preta, que hoje está trabalhando nessa casa, tem seus próprios pecados para pagar, e um dia, se assim for preciso, voltarão reencarnados para quitar suas dívidas”.

Vovó Catarina exibe até hoje, em suas mãos, as marcas dos ferros que a prenderam ao tronco.Ao permitir que eu as visse – suas mãos e suas cicatrizes -, abriu meu coração e meus ouvidos para os detalhes de uma história que ainda não haviam sido contados.

Apenas uma vez vi uma névoa de tristeza embaçar seus olhos, que possuem uma alegria quase infantil. Ao se referir ao resgate que seu povo teve que suportar com cativeiro, imaginei, porque apenas posso imaginar, o que se passou naquelas planícies africanas, banhadas pelo oceano Atlântico; quando ainda se falava apenas o Banto, com todos os seus dialetos; bem antes de se tornar colônia portuguesa.

Se um dia, essa história for contada, espero estar lá para ouvir.

Por enquanto, nos resta respeitar a dignidade com que estas almas suportaram sua dor.

Salve os Pretos Velhos