Entre os Arcanos Maiores do Tarot temos a representação das Quatro Virtudes Cardeais:
Justiça (8), Prudência (9), Força (11) e Temperança (14).
Discute-se a respeito das virtudes desde os tempos de Sócrates. Alguns defendem que elas são inerentes ao homem (ou você tem ou você não tem); outros afirmam que se trata de um comportamento adquirido por meio da vontade e do hábito. Para Tomás de Aquino, as virtudes definiam o máximo daquilo que uma pessoa pode ser – ultimum potentiae.
Uma visão a respeito das virtudes ajuda, mas não define as cartas correspondentes como um todo. O Tarot tem as suas particularidades. De qualquer modo, vejo muitas pessoas com leituras tendenciosas com relação ao Arcano 8, ora remetendo a carta para algo que envolve a legalidade da situação, ora abusando das conotações espirituais banalizadas, empregando a expressão karma, por exemplo, como se ela servisse de explicação para tudo. Já estive com uma pessoa que gritava “karma!” quando a Justiça aparecia como se estivesse no bingo… Nada mais tolo. O que podemos extrair destas duas vertentes é o fato que cada um recebe o que lhe é devido, mas é preciso ir além. Quem estabelece, para início de conversa, o que é devido para cada um?
Do ponto-de-vista jurídico, as regras são criadas pelos homens e são aplicadas de acordo com o que cada grupo considera correto para a boa convivência entre seus membros. Nos EUA as leis variam de Estado para Estado, ou seja, mesmo dentro do mesmo país, algo proibido na Califórnia pode ser liberado no Texas – e vice-versa.
Se formos apelar para o Divino, os dogmas existem de acordo com a tradição a qual pertencem e a interpretação – algumas vezes equivocada e/ou oportunista – de seus representantes (ou os que assim se dizem ser).
Poderia entrar em questões delicadas, como a exploração da fé de algumas denominações ou a posição fundamentalista de grupos que distorcem conceitos originalmente elevados, como é o caso do jihad. Mas vou me esquivar disso para dar um exemplo simples e de ordem prática: alimentação.
Os Hare-Krishnas, assim como outros grupos religiosos, são vegetarianos por respeito a toda forma de vida. Os judeus comem carne bovina kosher e estão proibidos de comer suinos e frutos do mar (peixe pode, mas só os de nadadeiras e escamas). Católicos comem de tudo, exceto em datas especiais. Quem poderia dizer o que é verdadeiramente certo “aos olhos de D’us”?
Pinçando mitologias ao redor do mundo, temos Ma’at, que representa a verdade para os egípcios. No momento da morte, ela pesa o coração do homem, condenando-o ao Inferno se ele for mais pesado que uma pena. Para os gregos, Themis governa as leis da natureza e guarda os juramentos que, uma vez proferidos, devem ser cumpridos. Para os romanos, cabe à Iustitia ser porta-voz do que é justo (ius-dicere – “dizer o justo”, origem da palavra justiça).
Uma pessoa que procura aconselhamento, necessariamente não precisa compartilhar das mesmas crenças espirituais de seu conselheiro. Eu posso afirmar que “cada um recebe o que lhe é devido” e isso tem muito a ver com a minha formação, mas ninguém é obrigado acreditar em reencarnação e/ou karma – sem contar que as pessoas têm o mal hábito de associar karma sempre à punições, nunca a recompensas (não, dharma não é o contrário de karma, antes que você pergunte…rs).
Logo, o que estou ponderando aqui é até que ponto o que se convencionou, de modo geral, com relação à Justiça está de todo correto com relação aos atributos desta lâmina.
Sim, ela pode representar questões jurídicas dentro de determinados contextos (também um advogado, uma ação legal, etc.), mas o roteiro não se aplica a tudo, por isso seguem algumas reflexões pessoais:
A carta da Justiça (8) segue a carta do Carro (7), indicando que toda ação tem um preço ou reação. Alguns se valem da Física e outros do Karma para explicar o que acontece, mas existe um fundamento simbólico que antecede tudo isso – a Lei da Interdependência. Um prato da balança está ligado ao outro, de modo que não há como mexer em um sem que algo aconteça com o outro.
A noção de interdependência é anterior à “causa e efeito” porque não se trata apenas de “isso é problema meu”. Uma pessoa que fuma não envenena apenas os seus pulmões, como geralmente afirma, mas ajuda a deteriorar a qualidade do ar da sua casa, da cidade onde vive e, em última escala, todo o planeta é prejudicado, quer ela tenha consciência disso ou não. Fui over? Ok, vamos trazer a questão mais para perto: se estamos alegres, tristes ou enfurecidos, nossas ações afetam diretamente as pessoas que nos cercam e estas podem provocar uma reação em cadeia, multiplicando algo muito bom ou muito ruim.
O fato é que no momento em que adquirimos a consciência da interdependência, nos tornamos mais cuidadosos com nossos atos. Dentro de uma ótica espiritualista, se esta for permitida, devemos estar vigilantes, inclusive, com relação aos pensamentos, pois eles também são agentes de mudança. Não é necessário, inclusive, nem ser tão espiritualista assim: quando estamos bem, quase tudo dá certo e, o que não dá, se resolve rápido. Quando estamos mal, por outro lado, tudo parece contribuir para a perpetuação da tristeza ou mau humor.
A Justiça tem uma coisa curiosa: por um lado ela precisa ser isenta e tratar a todos como iguais, razão pela qual pode ser representada usando venda nos olhos. No entanto, sua natureza é – e precisa ser – discriminativa, pois reconhece nas diferenças o ponto de equilíbrio.
Chama a minha atenção, quando dispomos todos os Arcanos Maiores no modelo septenário, as cartas da Justica e da Temperança ocuparem posições extremas na segunda linha: enquanto a primeira classifica e diferencia, preservando as partes, a segunda anula as individualidades através da fusão. A primeira procura um ponto de equilíbrio (o alinhamento dos pratos), a segunda dispõe dos elementos na medida adequada à cada necessidade.
Da teoria para a prática, toda vez que a Justiça estiver em jogo, não misture as coisas – isso é trabalho para a Temperança. Aqui você é solicitado a pesar, analisar, dissecar, classificar, priorizar, (re)organizar, relacionar prós e contras, ler nas entrelinhas… faça tudo isso e depois não reclame de ter deixado passar algo despercebido. A Justiça pode ser o advogado, mas também o contador, o engenheiro, o cientista, o cirurgião… tudo que requer uma exatidão matemática.
A carta da Justiça fala de acordos, formais ou não. Resgatando o mito de Themis, “palavra dada é palavra empenhada”. Muito cuidado com o que se promete e documentos que se assina. Exija o que lhe foi prometido na justa medida, sem querer levar vantagens ou aceitar menos – e se aceitar menos, assuma isso sem esperar compensações espontâneas, pois elas podem não acontecer. O Arcano VIII fala de responsabilidades: as que temos com relação aos nossos familiares, amigos, trabalhos e vínculos espirituais. Nem tudo é regido por contrato ou nos aparece como opção.
As cartas de número 8 nos Arcanos Menores, por sinal, falam de responsabilidade todo o tempo. Assumir a sua porção em toda e qualquer história é sinal de maturidade e passaporte para virar a página e seguir adiante.
Crowley foi o primeiro a alterar o nome da lâmina, defendendo que o nome “Justiça” está baseado em um princípio humano enquanto “Ajustamento” se refere à natureza, que não é justa, mas exata. O Universo está constantemente em busca do equilíbrio e tudo o que acontece tem este propósito de forma absolutamente impessoal.
Eu gosto de usar a expressão, mas sem esta “bagagem crowleyana”. Aposto mais nos processos de tentativa e erro, na disciplina e no refinamento. Ser bom não é o suficiente, é preciso ser melhor a cada dia. É como entrar para a academia: a nossa capacidade de trabalhar com pesos maiores aumenta com o esforço constante.
A vida não está boa? O trabalho não satisfaz? O relacionamento está difícil? O dinheiro não chega no fim do mês? O que pode ser feito para que se alcance um ponto de equilíbrio? Em que aspectos eu posso exigir algo e em quais posso fazer concessões? Será que uma outra abordagem não se faz necessária? Estou dando o peso certo para cada coisa? Grande parte de nossos sofrimentos derivam da confusão que fazemos em tornar o pequeno, grande; e o grande, pequeno.
A palavra hebraica tsedacá é traduzida como “caridade”, mas, literalmente, significa “fazer justiça”. Existem várias análises com relação a isso e não vou entrar, pelos motivos que escrevi no começo, no mérito religioso. De qualquer forma, vejo o tsedacá como um gesto de gratidão. A gente dá o que a gente tem. Se tem é porque recebeu. Se tem bastante, compartilhe e permita que outras pessoas usufruam do mesmo benefício – de novo vem a questão da interdependência.
Quando a gente bota a energia em movimento ela sempre se renova. O Seis de Ouros pode (e deveria) ser interpretado desta forma. No Rider-Waite temos a balança de volta. Quando ela aparece no jogo, é preciso ter certeza da posição que ocupamos. Por vezes somos aquele que tem o poder de beneficiar o outro, por vezes somos aquele que precisa estar “disponível” para receber ajuda.
Aquele que confere tem a balança nas mãos porque ninguém pode dar o que não tem – um erro que se repete freqüentemente em nossas vidas. Há quem diga que para ter amor é preciso dar amor, mas eu questiono isso. Para ter amor você precisa estar aberto para ele. Ainda que se queira muito, nem sempre nos colocamos em uma condição receptiva. Não se trata de exigir amor, mas permitir que ele venha e se instale em nossas vidas. A regra serve para tudo mais e muitas vezes desconhecemos os mecanismos inconscientes de sabotagem interna.
Considerando, ainda, que a setença está nas mãos de homens – e que estes podem ser justos ou não – acho interessante colocar as cartas de número 4, 8 e 16 lado-a-lado, pois ela ilustra que a mesma mão que dá ou eleva (Imperador) pode ser a mão que retira e derruba (Torre).
Fui trainee de um primeiro programa de trainees de uma grande empresa. Éramos naturalmente hostilizados por alguns que nos viam como “olheiros” da presidência e um diretor, em especial, ria da miopia de seus colegas, pois dizia que os trainees de hoje seriam gerentes e diretores amanhã, de modo que poderiam vir a retribuir o tratamento recebido. “O mundo é redondo porque dá muitas voltas”, filosofava.
Outro exemplo profissional – que sempre considero os mais fáceis de entender – é de um diretor que trabalha com alguns funcionários que não gosta por questões pessoais e veta o crescimento deles na empresa (ou os demite, quando pode ou tem a oportunidade) independente de seus talentos , beneficiando outros nem tão bons assim (ou péssimos!), mas que “lhe fazem a corte”.
A idéia aqui, como sempre, é instigar. Ver as coisas fora do lugar-comum é sempre um exercício estimulante. Os românticos dizem que “aquele que com ferro fere, com ferro será ferido”, mas já vi muita gente promovendo o sofrimento sem que nada lhes aconteça e, ainda que venha o castigo de algum lugar, isso não me serve de alento ou anula o mal realizado. Os reencarnacionistas defenderão que o que não se “paga” em uma vida se “paga” nas próximas e, de novo, isso não me diz muito coisa por mais que acredite ser verdadeiro.
Aí surge a pergunta: “a retidão está em agir de acordo com a lei ou de acordo com a sua consciência?”
A meu ver, integridade e retidão se revelam naturalmente quando estamos conscientes de nossa essência, nos despimos das máscaras e curamos todas as nossas feridas. Enquanto isso não acontece, tudo vem da atenção e do esforço de promover a alegria e eliminar o sofrimento.
“Faz o que for justo. O resto virá por si só.” — Goethe
(Texto: Marcelo Bueno)