quarta-feira, 13 de junho de 2018

SIMBOLOGIA


A cosmogonia é uma ciência cultivada por todos os povos arcaicos e tradicionais e se refere ao conhecimento do homem (pequeno cosmos) e do universo (homem grande). Repete-se de modo unânime e de maneira perene ao longo do tempo (história) e do espaço (geografia), descrevendo uma única realidade, a do cosmos. Esta realidade, por outro lado, é a mesma que nós, os contemporâneos, vivemos e habitamos, pois é essencialmente imutável apesar das mutantes formas em que pode ser expressa ou apreendida, já que se mantém perenemente viva.

O modo normal pelo qual essa Cosmogonia, Universal e Perene se expressa é o símbolo, ou um conjunto de símbolos em ação, constituindo códigos e estruturas que se conjugam permanentemente entre si, manifestando e veiculando a realidade, ou seja, toda a possibilidade do discurso universal, que se faz audível e compreensível por seu intermédio.

O símbolo é, portanto, a tradução inteligível de uma realidade cosmogônica e, ao mesmo tempo, essa realidade em si, ao nível em que ela se expressa.

Para o caso da cosmogonia nos interessam particularmente os símbolos numéricos e geométricos, que, como se sabe, mantém uma perfeita correspondência entre si. Constituem módulos paradigmáticos, presentes em todas as culturas, já que formam a estrutura de qualquer construção, neste caso, da Construção Universal... É importante ressaltar que aquilo que a simbólica manifesta dentro de si, no mais profundo de sua intimidade, não é senão a totalidade do cosmos, atual e constante. Ela própria, a Cosmogonia Perene e Universal – e não só a ciência que trata dela – que é válida para todo tempo e lugar na dimensão do humano, não é nada mais que um símbolo de algo muito mais amplo que a transcende, já que pode ser concebida e explicada como uma modalidade arquetípica do Ser Universal.

Pode-se pensar, equivocadamente, que as estruturas simbólicas são meras convenções utilizadas para descrever a realidade. Isso só seria válido na medida em que se aplicasse igualmente a qualquer manifestação, que é sempre uma determinação, uma fixação, começando pela linguagem, pelo verbo. Porém, é óbvio que não há maneira de apreender a realidade senão é por meio do símbolo (linguístico, numérico, geométrico, etc.) e dos códigos que este forma.

O símbolo não é arbitrário, e reflete autenticamente o que expressa, requisito sem o qual seria impossível qualquer relação ou comunicação. Deve-se ter em mente que, por tomar uma forma, constitui uma estrutura na torrente do não-enunciado, na vida larval e caótica do vir a ser. Os antigos conheciam sobejamente esta verdade, e daí o valor criativo que atribuíam à palavra. Ou seja: o sujeito participa de qualquer fato objetivo e portanto o gera; a história de seus ciclos também testemunha esta inter-relação constante.

No entanto, a irrealidade do mundo – e do homem – só pode ser observada porque existe, e deve ser, nesse caso, sujeito e objeto de alguma revelação. Os símbolos, como os conceitos ou os seres, são imprescindíveis no plano do Universo, e alguns códigos como o aritmético ou o geométrico, entre outros, não são convenções casuais, mas expressam realidades arquetípicas e formam a base de qualquer estrutura, não só no "exterior" mas também no "interior". A ponto que de se poder dizer que estas imagens constituem categorias próprias do pensamento, e fazem do homem um autêntico intermediário entre o conhecido e o desconhecido, ou seja: o maior dos símbolos, capaz de unificar por sua mediação a multidão do disperso.

Talvez a Roda seja o mais universal dentre os símbolos de todos os povos. Isso se deve, por um lado, ao fato de que este símbolo aparece unanimemente, direta ou indiretamente, em todas as tradições, e parece ser consubstancial ao homem.

Por outro lado, a própria universalidade dos significados da roda, e sua conexão direta ou indireta com os demais símbolos sagrados, em especial, números e figuras geométricas, fazem dela uma espécie de modelo simbólico, uma imagem do cosmos. Pois a roda no plano é um círculo, e a circularidade é uma manifestação espontânea de todo o cosmos; portanto essa energia há de provir de um ponto central que a irradia, tal qual o caso de uma roda, símbolo do movimento e também da imobilidade, que pode girar e reiterar seus ciclos, possibilitando a marcha graças a um eixo imóvel. No plano isso se representa como um centro do qual a circunferência extrai sua forma (com cordel ou compasso, é imprescindível ter um ponto fixo para traçar a circunferência) por irradiação, tal qual a energia potencial do eixo se transmite ao aro por mediação dos raios das rodas, análogos ao raio da circunferência. Qualquer pessoa que traça uma circunferência sabe que esta depende do ponto central e não ao contrário.

Entre o ponto central e a circunferência se configura o círculo; o valor aritmético associado ao primeiro é a unidade, que é uma representação natural do ponto geométrico, e à segunda o nove, que é o número do ciclo por ser o da circularidade, como mais adiante veremos. A soma de ambos nos dá a dezena (1 + 9 = 10) que é modelo numérico da tetraktys pitagórica, o qual pode ser relacionado com qualquer outra aritmosofia, já que os números – e as figuras geométricas – são módulos harmônicos arquetípicos, válidos em todo o manifestado e, portanto, para qualquer tempo e lugar dentro deste ciclo humano.

Assim, pois, não devemos estranhar que neste trabalho sejam tratados em conjunto os símbolos da roda e do círculo, o da espiral e o da esfera, pois esta, por exemplo, não é senão o círculo na tridimensionalidade. Igualmente, que se mencionem símbolos estreitamente associados ao da roda como o da cruz, o quadrado, e outros, assim como que se recorra às distintas tradições onde se encontra testemunhado.

Não obstante, este símbolo está presente em nossa própria Tradição e se acha ao nosso alcance trabalhar com ele. No própria dia-a-dia podemos observá-lo constantemente; de fato é evidente na própria vida, pois como observamos, as coisas se produzem com um movimento circular e portanto são cíclicas, o que é um pensamento emitido por todas as doutrinas metafísicas.

A figura esquemática da roda no plano foi associada ao sol por numerosos povos e de fato ainda hoje é o símbolo astrológico desse astro; em alquimia representa o ouro, seu equivalente terrestre. Daí a associar o percurso do sol com um carro dourado, ou de fogo, é só um passo. De fato seu alcance é significativamente mais amplo e se corresponde com a ideia arquetípica de Centro: aquilo que é capaz de gerar uma ordem na massa amorfa do caos; o ponto imóvel imprescindível a toda criação, o motor graças ao qual o devir tem um sentido.

Este ponto central da Roda do Mundo se comunica com a periferia, como já se disse, através de raios, que são portanto intermediários entre ambos; e enquanto a roda gira sobre si mesma simbolizando o movimento e o tempo, o eixo permanece fixo expressando a imobilidade e o eterno.

O círculo e a esfera foram tomados por numerosos povos e distintos autores antigos como figuras perfeitas e expressões da  totalidade.  A roda em particular está associada aos ciclos que repete uma e outra vez e, portanto, ao relativo, ao passageiro, ao contingente, porém sobretudo à recorrência, à reiteração. Como se poderá observar, e assim o continuaremos vendo, este símbolo se presta a inumeráveis transposições ao plano metafísico, ontológico e cósmico e é objeto de conhecimento e especulação.

O que é um ponto central ao círculo, é o eixo com relação à esfera, motivo pelo qual centro e eixo se correspondem exatamente, sendo o primeiro um símbolo plano e o outro símbolo tridimensional do mesmo conceito.

Se o ponto é virtual, não manifestado e geometricamente não existe, a periferia da roda será visível e representará, na ordem cósmica, a manifestação universal e, no mundo do homem, qualquer expressão, razão pela qual também se pode equiparar o ponto e o círculo, a potência e o ato, e por conseguinte, a contemplação e a ação.

A primeira divisão a que pode dar lugar o símbolo da roda é a bipartição da figura que a representa em duas metades análogas e exatas. Estas representam os dois movimentos, de ascensão e descenso, que realiza a roda no percurso de um ciclo, seja o do sol no ano, ou o do dia, ou o da lua em um mês, ou o da vida de um ser humano; o de princípio e fim com o qual está assinada qualquer criação.

Princípio e fim têm uma origem e um destino comum, o que dá lugar, além disso, às ideias de reincidência ou repetição, crenças e conceitos de todos os povos arcaicos e tradicionais que viveram sempre um tempo cíclico e não linear e indefinido, tal como o nós concebemos atualmente.

Qualquer ponto da periferia – os que são de número indefinido e podem simbolizar, cada um, a vida de um homem na imensidão do criado – é um reflexo do centro e se encontra conectado a ele pelo raio, porém enquanto que no aro todo é sucessivo, do ponto de vista central as coisas são simultâneas.

Esta figura também pode ser adaptada obviamente aos conceitos de interior e exterior, de luz e reflexo, e também de realidade e ilusão, posto que a permanência do ponto não se altera diante das formas mutantes e sempre perecíveis do transcorrer periférico.

Nos diz René Guénon que: "O centro é, antes de tudo, a origem, o ponto de partida de todas as coisas; é o ponto principal, sem forma nem dimensões, portanto indivisível, e, por conseguinte, a única imagem que se pode dar à Unidade primordial. Dele, por irradiação, são produzidas todas as coisas, assim como a Unidade produz todos os números, sem que por isso sua essência fique modificada ou afetada de qualquer maneira".

Todos os pontos da circunferência estão a igual distância do centro, lhe são equidistantes, motivo pelo qual as inumeráveis energias do cosmos se neutralizam em seu seio.

Geometricamente é o eixo vertical que atravessa distintos planos circulares horizontais, que ele mesmo gera, os que giram como rodas ao seu redor formando a cadeia de mundos, os diferentes estados de um Ser Universal.

A energia da irradiação chegada a seus próprios limites retorna a sua fonte por mediação do mesmo raio que as conecta, para ser reabsorvida no Princípio, que novamente volta a emaná-la para a periferia, constituindo esta inter-relação, ad extra e ad intra, uma espécie de respiração universal selada pelas leis cósmicas da dialética. Por isso é que o Centro, ou o Eixo, é a Origem e o Princípio, e irradiando tudo d'Ele, a Ele tudo retorna.

O centro é pois uma região mítica, uma ideia arquetípica que, não obstante, se manifesta em determinados pontos da circunferência que, desta maneira, passam a ser centros para o sistema que eles geram, sempre e quando sejam autênticos reflexos do ponto original ou, o que é o mesmo, que esse Centro fosse uma teofania, ou uma hierofania, um lugar, pessoa ou objeto que expressasse a unidade de um modo particular, e que igualmente a irradiasse.

Nesse caso os distintos centros ou pontos significativos na periferia seriam focos "cosmizados" que estariam estabelecendo contato com o ponto médio, rompendo assim com o movimento homogêneo e reiterativo da Roda. Por este caminho o sábio perfeito, segundo o taoismo, poderia acessar o "ponto central da Roda", em comunhão com o princípio, em absoluto repouso, imitando "sua ação não atuante".

Nota: O alquimista, matemático e cabalista John Dee, astrólogo da rainha Isabel I da Inglaterra, cujos instrumentos mágicos (espelho, pantáculos, bola de cristal) se conservam expostos no Museu Britânico, escreve no Teorema II de seu Mônada Hieroglífica:

"É pois pela virtude do ponto e da mônada que as coisas começaram a ser desde o princípio. E todas as que são afetadas na periferia, por grandes que elas sejam, não podem, de nenhuma maneira, existir sem a ajuda do ponto central"

(Texto: Federico Gonzalez - Continua)