quarta-feira, 13 de junho de 2018

LIVRO MÁGICO DO ANTIGO EGITO V



CAPÍTULO II
OS PODERES DO MÁGICO

O mágico de Lucsor e os filhos dele não ficaram de modo algum surpreendidos com os velhos textos que eu referira. Encontravam esses textos o eco de uma prática secular, transmitida de geração em geração. Quem poderia duvidar dos imensos poderes de um mágico, baseados nas suas capacidades de conhecimento? O seu único verdadeiro temor, neste mundo e no outro, é o de ser privado das suas capacidades mágicas em consequência de intervenção de alguma potência maléfica. Mas ele dispõe de uma fórmula especial para afastar esse perigo:

”Não permitir que o poder mágico de um homem lhe seja retirado no reino subterrâneo”. Adquirida esta certeza, é preciso combater o mal que tenta sempre atingir os seres em estado de menor resistência.

O mágico, referindo combates levados a cabo no mundo divino, afasta as influências nocivas, tal como o deus Ré se salvou a si mesmo do temível crocodilo Sobek, como Hórus se salvou a si próprio do lúbrico Bebon.

Combater o mal exige técnicas elaboradas. O mágico extrai a força perniciosa do corpo do indivíduo atingido e transfere-a para outro lugar: por exemplo, para um animal. Ora aparece sob a forma masculina, ora sob a forma feminina. Por isso o mágico desconfia especialmente dos espectros e das almas errantes, multiformes, que é difícil descobrir. Assim, ameaça destruir os túmulos de onde elas vêm, para as privar da sua ”base” terrestre, ou ameaça suprimir-lhes as oferendas, para as fazer morrer de fome.

É fácil compreender que o renome dos mágicos do Egito se tenha difundido com tanto brilho em todo o Mundo Antigo.

Segundo os autores gregos e latinos, eles sabiam curar os doentes, utilizar os simples, predizer o futuro e até fazer chover. Os verdadeiros poderes mágicos foram, infelizmente, reduzidos a operações simplistas, como o fato de dar a uma mulher uma cabeleira esplendorosa que nunca ficará branca, ou lançar sobre um inimigo um sortilégio para que fique careca.

O Papiro de Leiden expõe assim uma série de práticas espetaculares: praticar a adivinhação, afastar os maus espíritos, fabricar unguentos, favorecer os sonhos, fazer uma mulher ficar apaixonada, matar os inimigos, utilizar uma fórmula para repelir o medo que domina um homem de noite ou de dia. Tudo isso repousa em bases tradicionais, pouco a pouco esquecidas.Para se dar à adivinhação, utiliza-se um vaso cheio de água.

Identificado com Hórus, o Antigo, grande deus cósmico, o mágico interroga os deuses por intermédio de um ”médium” jovem que tem em si a verdade. O mágico ordena-lhe que abra os olhos, para que veja a Luz. É necessário, a todo o custo, afastar do ”médium” as trevas, de modo a que o seu espírito penetre no mundo dos deuses e encontre a resposta para a pergunta que foi formulada. O vaso é um excelente suporte para comunicar com o céu e o mundo intermediário.

O mágico é capaz de se adormecer a si mesmo, criando um sono hipnótico ao colocar-se diante de uma luz ou contemplando a Lua, ou ainda recitando sete vezes uma fórmula mágica.

Entre as técnicas mágicas oficiais, o oráculo teve um grande sucesso no Egito do Império Novo e na Época Baixa. O mágico de Estado coloca questões a uma estátua divina da qual espera uma resposta, por vezes concretizada por um gesto, quando a efígie sagrada inclina a cabeça para dizer ”sim” ou ”não”.

Os clientes ”particulares” consultam as divindades em pequenos oratórios, quer oralmente quer por escrito, acerca dos assuntos quotidianos que preocupam a humanidade: a promoção social, o futuro, os bens materiais, o amor.

Nunca será de mais sublinhar que qualquer aquisição de poder mágico
repousa no processo de identificação abundantemente ilustrado nos textos egípcios. O mágico ”torna-se” nas forças que criam o mundo: por exemplo, a Abundância personificada. Não para seu benefício pessoal, mas sim para que um paciente beneficie dos efeitos benéficos da sua arte.

Nos templos, a magia está onipresente. Pela prática dos rituais, pelo próprio significado da arquitetura e da escultura, mas também em consequência de uma realidade surpreendente: as imagens gravadas nas paredes são animadas, vivas.

Adquirem vida quando são pronunciadas as palavras rituais. No momento da cerimônia matinal, a mais importante do dia, a imagem do faraó ”desce” - ao mesmo tempo e em todos os templos do Egito - das paredes onde está e encarna no corpo do sacerdote encarregado de agir em seu lugar.

Segundo uma esteia da época de Ramsés IV, os próprios templos são
protegidos magicamente por amuletos e fórmulas de modo a que seja expulso todo o mal do seu corpo. ”Corpo” é a palavra justa, uma vez que cada santuário é considerado um ser vivo.

O que se encontra nos templos (esteias, baixos-relevos, mobiliário, etc.), assim como nos túmulos, deve ser preservado magicamente. Quem ousasse levantar a mão sobre esses objetos ou sobre os decretos administrativos registrados nas paredes dos monumentos, pereceria sob o gládio de Amon ou o fogo de Sekhemet, a deusa leoa.

As cidades, tal como os templos, gozavam de uma proteção mágica. O caso da aglomeração tebana é característico. Tebas, Ermant, Medamud, Tod, eram os quatro santuários do deus Montu.

O de Medamud continha quatro estátuas, lar mágico para o conjunto da região. Um texto explica que ”Amon-Ré, chefe dos deuses, está no meio do Olho direito, completo nos seus elementos (...) O que é Tebas, é Medamud: o Olho completo nos seus elementos pelo fato de que Sua Majestade, Amon- Ré, se encontra no número dos cinco deuses que fazem existir Tebas como um Olho direito completo. Os quatro Montu estão à sua guarda. Estão reunidos nesta cidade para repelir o inimigo de Tebas”.

Os Montu, divindades guerreiras, olhar aberto para o mundo, têm o encargo de proteger Tebas contra os seus inimigos visíveis e invisíveis. Com efeito, Tebas é considerada como o Olho saudável e completo, o udjat, usado frequentemente como ”amuleto”.

O plano dos templos tebanos, especialmente o de Medamud, encarna esse Olho cósmico, chave principal da simbólica egípcia. Não esqueçamos que o signo do Olho, em hieroglífica, significa ”fazer, criar”.

Também existe uma fórmula para a proteção da casa familiar e dos seus elementos, a janela, as fechaduras, o quarto, a cama... A cada um dos lugares da casa é afetada uma divindade protetora: um falcão fêmea, Ptah, chefe dos artesãos, ”aquele cujo nome se encontra escondido” e outros gênios. Assim, os inimigos não entrarão nem de noite nem de dia.

Vencer a morte O mágico é ”especialista”, tanto da vida como da morte. Quando a alma abandona o corpo, tudo se desune. Os elementos que constituem o ser, até aí associados pelo fenômeno ”vida”, deixam de coabitar.

A morte é portanto uma passagem muito perigosa, porque os diferentes
elementos correm o risco de se manterem dissociados do outro lado do espelho. Dá-se então a ”segunda morte”, a extinção definitiva do ser, possibilidade que implica necessariamente a ação mágica: preservar a coerência do ser durante a passagem deste mundo para o outro, fazê-lo reviver do outro lado na sua plenitude.

A mumificação é um ato mágico. Conservar as vísceras em vasos especiais,os vasos de vísceras, é um dos cuidados a ter. Cada vaso é colocado sob a proteção de uma divindade, um dos filhos de Hórus, em número de quatro:

Imseti, com cabeça de homem, protege o fígado;

Hapi, com cabeça de babuíno, os pulmões;

Duamutef, com cabeça de cão, o estômago;

Kebehsenuef, com cabeça de falcão, os intestinos.

Não são apenas os órgãos materiais que beneficiam dos favores divinos, mas também os princípios subtis que esses órgãos abrigam.

Segundo o esoterismo egípcio, o ser é composto por diversas ”qualidades”, sendo as mais conhecidas o akh (Khu), a irradiação, o ba, o poder de encarnação, e o ka, a potência vital. Existe também o beka, a capacidade mágica do indivíduo.

Cada elemento tem uma existência independente. A arte do mágico consiste em fazer com que todas passem pelas aberturas do céu, de modo que o ser completo possa ir e vir, dirigir-se para a Luz.

Segundo a expressão extraordinária dos ”Textos das Pirâmides”, o morto não partiu morto, mas sim vivo. Esta constatação aplica-se ao faraó e aos iniciados regenerados pelos ritos.

O objetivo da magia funerária é essa vida ressuscitada que necessita do funcionamento perfeito do coração consciência, dos órgãos vitais, a livre deslocação nos espaços celestes, o gozo das energias subtis contidas nos alimentos e nas bebidas servidos nos festins do Além.

Se o mágico deixasse de ser mestre na sua arte, isso seria uma catástrofe cósmica: o Sol não voltaria a levantar-se, o céu seria privado de deuses, a ordem do mundo seria subvertida, o culto deixaria de ser celebrado, todo o ritmo das coisas seria perturbado. Enquanto mestre da energia, o mágico permite às forças luminosas exprimirem-se em toda a sua plenitude. Um dos seus nomes mais frequentes é ”poderes de Heliópolis”, a cidade do Sol.

Essas forças engendram a prosperidade. Quando a energia se desequilibra, esses poderes deixam de se exprimir. As crianças deixam de nascer.

Notas: O akh, simbolizado por uma íbis, é o poder sobrenatural dos deuses e do rei. O ba é a faculdade móbil do ser, evocada por um pássaro de cabeça humana. Os baú (plural egípcio do termo) das cidades são o seu poder sobrenatural, o seu gênio próprio. O ka é a Força; o ka dos alimentos, por exemplo, é o seu aspecto energético. Potência sexual, o ka é a animação da matéria.

A preservação e a transmissão da vida são ações mágicas. Corpos aparentemente inertes são animados por elas. Uma estátua, por exemplo, parece ser apenas um objeto de pedra. Pelo rito da ”abertura da boca”, a estátua é tornada viva. Habita-a uma presença espiritual.

Nas mastabas, túmulos do Império Antigo, o serdab, pequena e exígua peça, contém uma estátua - viva - do morto. O ka do defunto está presente nessa estátua.

Beneficio da recitação das fórmulas, que lhe proporcionam a energia de que tem necessidade.

Os famosos ”modelos” colocados nos túmulos não são brinquedos mas sim objetos mágicos: por exemplo, as pequenas barcas de madeira com os seus remadores tornam-se, no Além, meios de transporte bem reais que permitem ao viajante vogar pelas águas eternas do Cosmos.

A vida é ameaçada por forças hostis, nomeadamente por almas escapadas dos túmulos, por erros mágicos ou insuficiências rituais. Erram, provocando graves perdas físicas ou psíquicas. Compete ao mágico neutralizar essas almas, uma vez que no interior da Casa de Vida ele apreende os segredos do invisível. A quem conhece a estatueta chamada ”Vida”, que é o coração desta instituição mágica, é dito:

”Estarás ao abrigo da morte súbita, estarás ao abrigo do fogo, estarás ao abrigo do céu, que não se desmoronará, e a terra não se afundará e Ré não fará cinzas com os deuses e deusas”.

Esta estatueta ”Vida” é mumificada, depois untada com unguentos e uma substância chamada ”pedra divina”, sendo por fim deitada num caixão. É consagrada antes de se lhe abrir a boca e de ser colocada numa pele de carneiro, uma ”pele de ressurreição”. A ”Vida”, assim protegida, é conservada num lugar da Casa de Vida onde é constantemente regenerada pelos ritos.

Simbolicamente, a Casa de Vida é um pátio arenoso cercado por um muro com quatro portas, em cujo interior se ergue uma tenda para abrigar um relicário que contém uma múmia de Osíris. Em torno existem várias construções: alojamentos, lojas, oficinas, onde se formam os especialistas que são chamados a preencher funções rituais.

Abertura da boca, abertura dos olhos: atos que transformam o cadáver em ser vivo. O mágico pratica a abertura da boca com uma enxó de ferro, faz uma fumigação colocando incenso sobre uma chama, purifica com a água da juventude”. É pedido a Ptah, pai dos deuses, que favoreça a abertura da boca e dos olhos tal como o fez para o deus Sokar, na oficina dos escultores de Mênfis chamada ”a moradia do Ouro”.

Uma das mais belas ilustrações desse rito encontra-se no túmulo de Tutankhamon, no qual o rei Ai, vestido com uma pele de pantera, abre a boca do jovem rei morto, representado em Osíris.

Ponto capital: o sarcófago não é um túmulo nem um lugar fechado. É considerado como um navio e como o ventre do céu. No Império Médio, pintam nas paredes exteriores portas falsas e dois olhos à altura dos do rosto da múmia. O espírito do ”morto” entra no sarcófago e sai.

Do mesmo modo, o túmulo é um lugar de passagem. A porta falsa, inicialmente colocada no meio do lado este da mastaba, estabelece a comunicação entre o Aqui e o Além. O espírito passa através da matéria.

O nome, chave do poder mágico O conhecimento do nome é o verdadeiro
conhecimento: pronunciar o nome é modelar uma imagem espiritual, revelar a essência de um ser. Ao nomear, cria-se. Conhecendo os verdadeiros nomes, escondidos para o profano, vive-se uma mestria.

O mais grave para um ser é ver o seu nome destruído. Por isso a magia toma todas as precauções para que o nome dure eternamente. Os elementos do nome, as letras que o compõem, são sons portadores de energia. Quando o mágico fala ritualmente, utiliza esses sons como uma matéria animada, age sobre o mundo exterior, modifica-o se tanto for necessário.

( Autor: CHRISTIAN JACQ - CONTINUA)