quarta-feira, 13 de junho de 2018

O LIVRO MÁGICO DO ANTIGO EGITO




INTRODUÇÃO À MAGIA ETERNA

As bibliotecas são cavernas cheias de tesouros onde, graças aos trabalhos dos antecessores, é possível reconhecer os caminhos que conduzirão à descoberta. Mas toda essa erudição, por mais indispensável que seja, não substitui um contacto vivo com o Egito.

Um egiptólogo que não creia na religião egípcia, que não partilhe uma simpatia total com a civilização que estuda, não poderia, na nossa opinião, pronunciar mais do que palavras sem vida.

O intelectualismo, por mais brilhante que seja, nunca substituiu o sentimento vivido, mesmo numa disciplina científica. Os maiores sábios são aqueles que participam no mistério do universo e tentam exprimi-lo por meio da sua visão do Conhecimento, amadurecida ano após ano.

Sendo isto verdade para ciências tais como a Física, como demonstraram Eisenberg, Einstein e tantos outros, será fácil compreender que o Antigo Egito reclame, da parte de quem o estuda, uma atitude bem diversa do raciocínio glacial e do ”distanciamento” histórico.

Uma noite de Natal, em Lucsor, foi-me oferecido um presente suntuoso: um convite para jantar em casa de uma família de encantadores de serpentes. O avô, amigo da França, falava admiravelmente a nossa língua. Deu-me o lugar de honra, a seu lado, durante a refeição, na presença da mulher e dos seus quatro filhos e três filhas.

No exterior, a noite era suave. Ao crepúsculo, ao desaparecer, o sol tinha-se estilhaçado em dezenas de cores, aniquilando-se pouco a pouco num último raio luminoso que veio morrer nas paredes do templo de Lucsor, a obra-prima do faraó Aménofis III(imagem abaixo) e do seu genial arquiteto, Amen-hotep, filho de Apu (imagem abaixo).

A casa do meu hospedeiro nada tinha de régio. Mobiliada pobremente, com um desejo de galanteria, era no entanto um templo da amizade. Pombos grelhados, arroz, tostas, bolos... todo um festim elaborado para o viajante.

Nesta festa cristã de Natal, no decurso de uma longa refeição que só terminou pouco antes da aurora, a nossa conversa versou sobre um único assunto: a magia. O meu anfitrião e o seu filho preenchiam uma função extraordinária: apanhar serpentes e escorpiões.

Aos jornalistas que de longe a longe os vinham questionar acerca da bizarra profissão, apresentavam-se como pessoas simples, cuidadosas, herdeiras de uma antiga tradição familiar, mercadores de venenos ligados a uma função lucrativa. Tais declarações não me satisfaziam.

No decorrer das minhas pesquisas, eu tinha, como qualquer egiptólogo, deparado com a magia. Muitos ”sábios” tentaram separá-la da religião egípcia, como se fosse uma tara incompatível com a grandeza das concepções metafísicas expostas nos grandes textos.

Mas a magia é resistente. No Egito, está presente em toda a parte, na sinuosidade de um conto que se acredita ”literário”, como no interior de um túmulo ou nas paredes de um templo. Na época dos faraós, aqueles que se ocupavam dos animais venenosos eram mágicos que tinham recebido uma iniciação, tinham conhecimentos, utilizavam fórmulas específicas cuja manipulação requeria qualificações excepcionais.

Lembrei ao meu anfitrião estes conhecimentos. Sorriu, admitindo: ”Temos de reconhecer que ser irmão de uma serpente não está ao alcance de um qualquer... Talvez, efetivamente, uma certa magia seja útil...”.

Segundo as regras da delicadeza oriental, a verdadeira conversa estava lançada. Persuadido de que o meu anfitrião ainda conheceria e praticaria as regras da antiga magia egípcia, confrontei a experiência dele e os meus conhecimentos de egiptólogo. Foi assim que nasceu este livro acerca do mundo mágico da civilização faraônica. Dos textos antigos até à experiência vivida, não há lacunas. Eis a razão por que hoje é possível abordar um assunto outrora tabu.

Hermópolis, a antiga cidade santa do deus Tot, patrono dos mágicos egípcios, o Hermes dos Gregos, não passa hoje de uma cidade em ruínas. No entanto, aqui e além subsistem vestígios da grandeza passada.

Uma das mais impressionantes é o túmulo de Pet Osíris (Pady-usir ), sumo sacerdote de Tot, iniciado nos mistérios. Esse túmulo não é consagrado à morte, mas sim à vida na eternidade.

A entrada dirige ao pronaos, a (primeira câmara), ou a antecâmara cujo teto está repousando sobre 4 pilares. As paredes do pronaos estão decoradas de cenas lindas que mostram as atividades cotidianas do Egito antigo. Entre as cenas fascinantes do pronaos destacam-se: A cena do parto da vaca, enquanto o artista era muito sensibilizado com a dor da vaca que dá luz.

Dali se chega ao naos (a câmara interna) em cujo chão se abre um poço de 8 m de profundidade que dirige à câmara mortuária onde foi achado o corpo de Pet-Osiris dentro de um sarcófago. O naos está decorado de cenas impressionantes da agricultura, a colheita, o pastoreio , e atividades de Pet-Osiris na sua fazenda, a armazenagem nos celeiros, cenas dos artesanatos diferentes e das obras dos carpinteiros, os ourives, oleiros, e tapeteiros…etc. Segue algumas figuras encontradas nas paredes do túmulo:
Os seus admiráveis textos foram redigidos para ajudar o homem a realizar-se, a encontrar a verdade profunda do seu ser, sem a qual nenhuma felicidade poderá ser vivida na Terra. Numa das paredes do túmulo de Pet Osíris leem-se estas frases:

”Aquele que se coloca na via do deus, passa toda a sua vida na alegria, cumulado de riquezas, mais do que os seus pares, envelhece na sua cidade, é um homem venerado na sua província, os seus membros mantêm-se jovens como os de uma criança. Os filhos estão diante dele, numerosos e considerados os primeiros da cidade; esses filhos sucedem-se de geração em geração... Chega enfim à necrópole em alegria, no belo embalsamamento do trabalho de Anúbis”.

Para atingir a sabedoria evocada pelo grande sacerdote PetOsíris, não basta a boa vontade. Torna-se indispensável uma certa ciência a que os Egípcios chamavam ”magia”. Esta noção-chave, hoje confundida com a magia negra, com a feitiçaria, com os poderes psíquicos e outros fenômenos mais ou menos inquietantes, tinha, na época dos faraós, um significado preciso.

Religião e magia não podem ser separadas uma da outra. Pode-se imaginar um ritual sem irradiação mágica? Não é verdade que as religiões do livro (Cristianismo, Judaísmo, Islamismo), embora por vezes se defendam disso, exercem uma magia sobre a alma humana, a fim de a fazer aceder a realidades que os nossos sentidos se revelam incapazes de registrar?

Em notas, o leitor será remetido para os textos egípcios, a maior parte dos quais apenas acessíveis aos especialistas.

O aspecto fundamental da documentação escrita, completada pela informação oral, é que várias vezes desvendam as chaves.

Os escribas egípcios redigiram milhares de páginas, reunidas em recolhas que os egiptólogos classificam de ”mágico-religiosas”.

Uma leitura rápida, necessariamente superficial, desses escritos leva-nos à conclusão de que os Egípcios formulavam votos:

“viver uma vida longa sobre a Terra, não ser privado de alimentos no Além, não morrer da mordedura de uma serpente, manter-se saudável na Terra, gozar de todas as capacidades físicas, entrar e sair pelas portas orientais do Céu (isto é, ter um espírito suficientemente formado para ”circular” no Cosmos), conhecer as almas dos ocidentais (quer dizer, aceder aos mistérios dos Antigos)”.

Como se vê, misturam-se esperanças materiais e esperanças espirituais. Essa é uma das características essenciais do pensamento egípcio. Há um Céu, há uma Terra, ambos agem um sobre o outro.

A nossa vida terrestre, nos seus aspectos mais vulgares, está impregnada de uma força espiritual a que os sábios do Egito chamam heka, ”magia”. Este termo, de etimologia incerta, significa provavelmente ”reger os poderes”, o que efetivamente constitui o cume da arte do mágico.

Quem deseja praticar a magia deve adquirir a consciência dos poderes que regem qualquer vida, manipulando-os experimentalmente. Não há lugar para qualquer experiência estritamente individual: como veremos, o aprendiz mágico forma-se nas escolas especializadas dos templos, sob a vigilância de mestres que não o deixam agir à sua vontade nem ao sabor da sua fantasia.

Revelação essencial dos sábios: a Magia, concebida como força criadora, foi criada antes da criação que conhecemos. É filha do deus do Sol cujos raios de luz são uma manifestação mágica, porque portadores de vida.

Para o egípcio antigo, tudo vive. Pensar que alguma coisa é inanimada, prova que o nosso olhar não se abriu corretamente para a realidade. O homem, tal como qualquer outra parcela viva, é o resultado de um jogo de forças. Poderá suportá-las passivamente ou poderá tentar identificá-las.

A qualidade do seu destino irá depender da resposta que der a estas questões. As forças mágicas parecem-nos hostis na medida em que o nosso grau de conhecimentos é insuficiente. O cientista contemporâneo critica facilmente o primitivo que se extasia ou se assusta perante fenômenos naturais que julga sobrenaturais. Mas esse mesmo cientista, apesar de todo o seu saber, mantém-se escravo de zonas de sombra que por vezes tornam falso o raciocínio mais seguro de si.

Isto quer dizer que o homem de hoje, tal como o de ontem, se confronta com o desconhecido, fonte e finalidade da sua existência. Nesse domínio, os mágicos do Antigo Egito têm muito para nos ensinar. A força sobrenatural que mantém a vida não está fora do alcance da inteligência humana. Reside no coração do ser, no seu templo interior. Ao descobri-la e ao utilizá-la depois, o mágico constatava que a sua ação tinha repercussões neste mundo e no outro, como se não existisse qualquer barreira real entre eles.

Conhecer Heka,o deus da magia (imagem abaixo), é descobrir o poder dos poderes, penetrar no jogo harmonioso das divindades. E também o morto, aquele que passa para o outro lado do espelho, deve conservar o seu poder mágico para atingir a última realidade. Esta magia pode ser definida como a energia essencial que circula no universo, tanto dos deuses como dos humanos.

Não existem ”vivos” e ”mortos”, mas sim seres mais ou menos capazes de captar essa energia contida no nome secreto dos deuses. Estudando os hieróglifos, isto é, ”as palavras dos deuses”, progride-se no conhecimento desses nomes carregados de energia. No Egito, nada se mantém intelectual no mau sentido do termo, quer dizer, cortado do real. Eis por que qualquer objeto animado mágica e ritualmente por exemplo, as coroas reais - registra um segredo vital.

Espírito e matéria tecem-se na mesma substância. O importante, na prática da magia, é identificar o laço que une todas as coisas, que reúne o conjunto das criaturas numa cadeia de união cósmica.

As linhas precedentes provam suficientemente que não se deve reduzir a magia do Antigo Egito a uma feitiçaria de baixo estofo. Na realidade, encontramo-nos perante uma ciência sagrada que exige especialistas com boa formação, capazes de apreender as forças mais secretas do universo.

Segundo um texto magnífico, intitulado Ensinamento para Merikaré, ”o Criador deu ao homem a magia para repelir o efeito fulgurante do que acontece inesperadamente”.

Dito de outro modo, todos somos escravos de um certo determinismo. A maior parte das vezes, os acontecimentos felizes ou infelizes apanham-nos desprevenidos. Não somos donos do nosso destino.

O Egito não nega esse determinismo, mas considera que é possível escapar-lhe utilizando a magia. Pela prática dessa arte, podemos modificar o nosso destino, lutar contra as tendências negativas da aventura humana, quer esta seja coletiva ou individual, afastar os perigos de que tomamos consciência.

No Egito, a magia era considerada uma ciência exata. Embora certos amadores, como os feiticeiros de aldeia, utilizassem algumas receitas mágicas elementares, a grande magia de Estado era revelada apenas a uma elite de escribas, que se devem comparar aos físicos contemporâneos da energia atômica.

Com efeito, essa magia é destinada a preservar a ordem do mundo. Um ato como esse não é fruto de uma improvisação ou de um qualquer ilusionismo. Repousa sobre uma linha contínua de experiências controladas pelo mágico.

A existência humana repousa sobre um equilíbrio precário. Muitos perigos a ameaçam: gênios malignos, forças negativas, mortos errantes, múltiplas manifestações do ”mau-olhado”, quer dizer, de uma energia negativa que, pelo seu simples poder, destrói tudo o que existe.

O primeiro dever do mágico é travar essa negatividade, preservar aquilo que existe. Mas deve igualmente velar para que os momentos de ”passagem” se desenrolem corretamente. O nascimento, o casamento, a morte, o fim de um ano e o início do seguinte, são outros tantos exemplos de situações muito delicadas em que a intervenção mágica é indispensável.

Os mágicos afirmam que os seus segredos remontam à mais alta Antiguidade. Não é a referência a uma convenção, mas sim o cuidado de se referir aos modelos primordiais, aos mitos da Criação.

De uma certa maneira, o mágico está em contacto direto com o Arquiteto dos mundos. Qualquer ato mágico é, por definição, um ato criador enraizado nas profundezas da origem. O mágico ”refaz tal como foi feito no começo”, coloca no presente ”a primeira vez”, restitui o mundo ”àquele tempo”. O tempo mágico é um tempo primordial. Pelo estudo da magia chegamos à centelha de onde jorrou toda a Criação.

O deus da magia, Heka, é uma criação da Luz. (Heka foi companheiro de Rá no momento da criação, juntamente com Sia e Hu. Esses três deuses eram essenciais em qualquer forma de magia: Sia significando o Conhecimento, e Hu significando a Sabedoria. Heka significa literalmente Magia, do encanto ou do poder da expressao criadora. Os sacerdotes de Mênfis associavam esses três deuses com a criação do mundo por meio da palavra divina de Ptah).

Falar de magia ”negra” e de magia ”branca” é considerado uma decadência. Na realidade, existe apenas uma magia solar, portadora da Luz, que favorece a iluminação do mágico. O resto é somente ilusionismo, feitiçaria ou busca de poderes.

No mundo das divindades, o deus da magia tem uma função precisa: afastar o que deve ser afastado, evitar que o mal e a falta de harmonia perturbem a ordem das coisas.

Quando é realmente habitado pela força divina, o mágico preenche igualmente essa função. É Hórus. A magia da sua mãe Ísis está nos seus membros. É Rei de nomes misteriosos, é aquele que se encontrava no oceano de energia das primeiras idades. Identifica-se com os maiores deuses do panteão, sentindo a magia no próprio corpo como força viva: circula-lhe nos pés, nas mãos, na cabeça, no corpo inteiro.

É sabido que a força mágica emite uma luz, e que em certas ocasiões irradia um cheiro característico.

”E eis que recolhi esse poder mágico em todo o lugar onde se encontra, em todo o homem no qual se encontra”, diz o mágico no capítulo 4 do ”Livro dos Mortos”. ”É mais rápido que o galgo, mais pronto que a luz”.

O mágico enche o seu ventre de poder mágico; estanca a sede graças a ela. Essa magia no ventre sobe seguidamente ao espírito, como um fluido que circula nos canais secretos do corpo. Dessa maneira, o mágico, filho de Ré, senhor da Luz e do Sol, e de Tot, encarnado pela Lua, descobre a extensão das suas percepções. O seu saber está consignado num escrito que vem da moradia do deus do Sol, depois de ter sido selado no palácio de Tot.

Sem magia, a sobrevivência é impossível. As fórmulas apropriadas fornecem àquele que se apresenta perante as portas da morte a coragem e a ciência adequadas para franquear o obstáculo sem ser aniquilado.

O mágico viaja no céu. Diante da estrela Orion afirma ter comido as potências vitais e ter-se nutrido dos espíritos dos antigos deuses cujos nomes secretos conhece.

Orion escuta o viajante do Além. Reconhece que ele adquiriu efetivamente todos os poderes, que nenhum foi esquecido. Eis por que o ressuscitado, identificado com uma estrela, brilhará nas alturas celestes.

Esse é o destino do mágico: tornar-se uma luz no Cosmos, para iluminar o caminho dos outros homens. A magia é um assunto de percepção. Ora, o centro das mais subtis percepções é o coração. Não o órgão de carne, mas sim o centro imaterial do ser. Esse coração, na concepção do Egito, é o testemunho da vida do homem. É impossível mentir-lhe ou enganá-lo.

O coração consciência concebe, pensa, dá ordens aos nervos, aos músculos, aos membros. É ele que permite que os sentidos funcionem corretamente. Tudo parte do coração e tudo a ele volta, ele é emissor e receptor. Sensações e impressões são a ele conduzidas para que faça delas a síntese e extraia a lição dessas informações vindas do mundo exterior.

Segundo a mitologia da cidade de Mênfis, o deus Ptah (imagem abaixo) concebeu o mundo no próprio coração antes de o exprimir pela língua. Em cada ser consciente desperta um coração herdeiro do coração divino.

Receptáculo da força divina, o coração responde pela retidão do mágico perante os seus juízes, aqui e no Além.

A qualidade da prática mágica está estreitamente ligada à qualidade do coração. Ao mágico compete desenvolver essas faculdades intuitivas que lhe permitirão descobrir o cofre misterioso do Conhecimento, prefiguração do Graal. O coração lhe ditará o meio de o abrir de modo a descobrir a essência da magia.

Um amuleto especial, o escaravelho do coração, detém um papel determinante no momento da passagem da morte terrestre para a vida eterna. O escaravelho (abaixo) é o símbolo das metamorfoses e das mutações. Colocando-o no coração da múmia, o mágico confere ao morto o poder de atravessar as zonas mais obscuras onde o ser se arrisca a sofrer graves atentados.

No momento da abordagem feliz das margens dos paraísos, o coração do homem justo ser-lhe-á restituído. Esse dom é preparado na Terra durante a vida do indivíduo.

A atitude mágica consiste em fazer com que pulse em si um coração de origem celeste que venha a despertar a percepção do invisível.

A magia era considerada no Estado egípcio como atividade primordial. Os livros mágicos não são escritos por autores que os redigem segundo a sua fantasia, sendo antes obra de instituições oficiais como a Casa de Vida, e fazem parte dos arquivos reais. Um dos primeiros objetivos da magia é, com efeito, proteger o faraó de qualquer influência negativa.

Como escreveu Jean Yoyotte, ”a visão egípcia do mundo procede de uma alta magia de Estado, coerente, raciocinada, admiravelmente perceptível e serena”.

Estaríamos bem enganados se acreditássemos que a magia, na época dos faraós, era uma atividade individual. Essa foi a expressão mais decadente e a menos rica de significado.

Os Egípcios utilizaram sobretudo os rituais dos templos, celebrados em todo o país. Todo o ato cultual é mágico.

Pensemos, por exemplo, no fato de o faraó ser o único habilitado a dirigir os ritos necessários para manter a presença dos deuses na Terra. A imagem do rei, gravada na parede de cada templo, anima-se magicamente para entrar na alma do sacerdote que efetivamente dirigirá a cerimônia.

O maior centro mágico do Egito era provavelmente a cidade santa de Heliópolis, a cidade do Sol (à altura do Cairo), onde se elaborava a mais antiga teologia. Ali eram conservados numerosos papiros ”mágicos”, no sentido amplo do termo, incluindo textos médicos, botânicos, zoológicos ou matemáticos.

A maior parte dos sábios e dos filósofos gregos dirigiram-se a Heliópolis para aí receberem comunicação de uma parte dessa ciência acumulada durante séculos. Foi ali, nomeadamente, que Platão foi informado da lenda da Atlântida que fez correr tanta tinta e cujo verdadeiro significado ainda hoje nos é ignoto, e só pode ser deduzido dos textos egípcios.

O primeiro princípio mágico é a necessidade da oferenda aos deuses. Graças a esse ato, a Criação continua.
(Papiro Ramses fazendo oferendas de vinho a Horus)

”Darmaet (a harmonia universal) ao mestre de maet (o Criador)”, segundo a fórmula ritual, é permitir que a vida se prolongue.

O que o Antigo Egito mais temia era o caos, esse estado de negatividade oposto a maet, a ordem das coisas. Não basta a boa vontade para evitar a desordem que, a prazo, condena toda a civilização.

A magia é uma arma de valor excepcional, graças à qual as barcas solares circulam corretamente nos céus, os mortos recebem o alimento que lhes é devido, o Estado funciona e celebram-se as festividades. Sem a intervenção mágica do Estado, as importantes cheias do Nilo não teriam lugar, as culturas não seriam irrigadas, os caçadores não poderiam matar caça, os pescadores não pescariam peixes, os artesãos não acabariam as suas obras, os templos não poderiam cumprir a sua missão.

Uma visão como esta surpreende-nos. Tantos fenômenos nos parecem hoje tão ”naturais” que já não conseguimos discernir o seu significado recôndito.A caça, por exemplo, era para o egípcio uma aventura muito especial que consistia em entrar no mundo das forças obscuras, não dominadas pelo homem. O perigo poderia acontecer a cada instante, quer tomasse a forma de um animal do deserto ou de um crocodilo furioso. O caçador considerava que o seu papel era afrontar as forças do mal. Para as dominar, também se utilizavam fórmulas mágicas.

O rei mágico, ‘O faraó do Egito’, não tem pai nem mãe. Vive a vida e não morre a morte. É o grande mágico por excelência, porque nele se encarna a força da vida.

No Império Antigo só o faraó está apto a comunicar com o princípio divino para que a humanidade subsista. É pois o rei, mestre das forças naturais e sobrenaturais, que detém o poder real, que adquiriu comendo as forças mágicas quando de um banquete extraordinário, duplicado de uma perturbação cósmica a acompanhar a vinda do rei aos espaços celestes.

As estrelas escurecem. A luz rarefaz-se. O céu e a terra tremem. Um personagem aterrador provoca esses acontecimentos: o faraó em pessoa. Ele é aquele que se nutre dos seus pais e mães. É um mestre de sageza do qual a mão não conhece o nome. A sua glória está no céu, o seu poder está no horizonte como o de Atum, o Criador que o engendrou.

O rei tornou-se mais poderoso que ele. Touro do céu, ele assimila o ser de cada divindade. Come homens e deuses. Khonsu(abaixo), um deus temível, mata os seres de que o rei tem necessidade e extrai, para si, o que há nos seus corpos. Outro gênio, Chesemu, cozinha-os.

O faraó, protegido por Ísis, avança para Osíris. A deusa ostenta no penteado o signo hieroglífico do trono que define a sua natureza simbólica. Ela é a deusa-trono de onde nascem os reis.

Com a mão direita emite um fluido que atinge a nuca do faraó, um dos centros vitais da sua Pessoa. Com a mão esquerda segura o braço direito do monarca: ato mágico necessário, porque o faraó aperta no punho os dois cetros que lhe permitem exercer a soberania sobre a terra dos homens.

O rei veste-se segundo a sua função: coroa dupla (juntando em uma só a coroa branca do Alto Egito e a coroa vermelha do
Baixo Egito), a peruca nemes e o grande saiote de cerimônia.

Diante de Osíris é deposto um pequeno altar no qual se encontram flores e um queimador de perfume. O rei oferece ao deus da ressurreição a essência sutil de todas as coisas (As capelas de Tutankhamon) para ele nas pedras de um lar.

“O rei come-lhes a magia, engole-lhes os espíritos. Os gordos são para a refeição da manhã, os médios para a refeição do dia, os pequenos para a ceia.”

“O faraó apanha os corações dos deuses, come a coroa vermelha, engole a verde. Todo o Cosmos reconhece o seu domínio. Nutre-se dos pulmões dos sages e da sua magia. O seu tempo de vida é a eternidade.”

Este texto foi classificado de ”hino canibal”, supondo que aludia a rituais muito arcaicos. Na realidade, era um modo de invocar a captação do poder mágico pela ingestão direta da vitalidade divina considerada como alimento. Cheio de magia, o faraó está protegido. O ser maléfico que o mordesse só conseguiria envenenar-se a si mesmo. Cada parte do corpo real está divinizada.

O ventre do faraó, por exemplo, é Nut, a deusa do Céu. Ora, a força mágica encontra-se precisamente nesse ”ventre celeste”.

Face aos deuses, o faraó manifesta a sua autoridade. Ordena-lhes que construam uma escada para ele subir ao céu. Se não obedecem, não terão alimentos nem oferendas. Mas o rei toma uma precaução. Não é ele, enquanto indivíduo, que se exprime, mas sim o poder divino: ”Não sou eu que vos digo isso, a vós, deuses, é a Magia que vos diz isso”.

Quando o faraó completa a sua ascensão, a magia está aos seus pés. ”O céu treme”, afirma ele, ”a terra estremece diante de mim, porque eu sou um mágico, possuo a magia”. É ele, de resto, que instala os deuses nos seus tronos, provando desse modo o seu máximo poderio reconhecido pelo Cosmos.

No Egito do Império Antigo, tudo o que diz respeito à pessoa real é de ordem mágica. Como o faraó é o único sacerdote, tem por função ”carregar” magicamente os rituais do Estado.

O nome real está contido numa ”carteia”, cujo nome egípcio, chenit, significa ”o que cerca” (ou seja o contentor do universo sobre o qual reina o faraó). Segundo o princípio do jogo de palavras, capital para a compreensão do funcionamento da língua hieroglífica, esse termo implica também a ideia de ”conjura”. O nome real está protegido magicamente pela carteia. Atributos, insígnias, roupagens reais, estão carregados de magia.

A coroa vem em primeiro lugar na lista desses objetos. É considerada como um ser vivo, como uma deusa, a um tempo leoa agressiva e serpente que ataca os inimigos do rei. Cantam-se-lhe hinos. Só o faraó é capaz de usá-la e de utilizar as suas virtudes secretas.

Abaixo, a Coroa branca longa, ‘hedjet’ , usada pelos Faraós do Alto Egito. Mencionada nos Textos das Pirâmides, num episodio que narra o rei a devorá-la com o objetivo de se impregnar com o seu poder:

Aproveito para demonstrar alguns tipos de coras usadas no Egito:

Coroas: Antes de serem unificados, Alto e Baixo Egito tinham formas de governo diferentes, consequentemente, coroas diferentes. Esta representação apresenta a coroa branca, também chamada de hedjet, especifica para o faraó do Alto Egito; a coroa vermelha, deshert, do Baixo Egito; a coroa dupla, simbolizando a união das duas terras; e a coroa azul, usada em guerra.

Segundo Maneton, o sacerdote de Sebennitos que na época grega consagrou uma obra célebre à história dos reis do Egito, o faraó Athotis (I dinastia, imagem abaixo) era um médico que redigia livros de anatomia. Praticou portanto uma arte mágica, abrindo o caminho para os seus sucessores. Nessa perspectiva, considera-se que todos os faraós foram mágicos institucionais.

No Império Antigo, Imhotep (imagem abaixo) foi o mais célebre dos mágicos. A sua nomeada era tal que, séculos mais tarde, os Gregos o identificaram com o seu deus da medicina, Asclépio.

No Império Novo, os escribas prestavam culto ao ”deus” Imhotep; antes de escrever, deitavam na terra um pouco de água em memória do seu ilustre patrono.

A personalidade de Imhotep era de resto essencial para perceber a extensão do ”campo mágico” no Antigo Egito. Esse personagem não era um pequeno feiticeiro de aldeia, mas sim o Primeiro Ministro do todo-poderoso faraó Djoser e o inventor da arquitetura de pedra cuja primeira obra-prima foi a pirâmide de degraus de Sakara. Por outras palavras, um homem de Estado de primeiro plano cujas competências mágicas eram julgadas indispensáveis para levar corretamente a cabo a sua função.

Certas ”receitas”, atribuídas a Imhotep, foram transmitidas à posteridade. Como esta: ”Tomar uma mesa de madeira de oliveira de quatro pés. Colocá-la num sítio puro, no meio; cobri-la completamente com um tecido. Meter quatro tijolos debaixo da mesa, uns em cima dos outros. Diante da mesa, um turíbulo de argila...

Colocar carvão de madeira de oliveira no turíbulo, uma gansa selvagem gorda triturada com mirra, fazendo bolinhas e colocando-as no braseiro, pronunciar uma fórmula, passar a noite sem falar a quem quer que seja, na terra. Ver-se-á o deus sob a forma de um sacerdote vestido de linho. O mágico evoca então aquele que está sentado nas trevas, mas no meio dos grandes deuses, buscando e recebendo os raios do Sol”.

Hordjedef (abaixo), um dos filhos de Khéops, era notado pelos seus extensos conhecimentos e as suas sábias palavras. Descobriu diversos livros antigos de magia, cujas fórmulas foram integradas nos escritos rituais.

Khaemuaset, quarto filho de outro faraó célebre, Ramsés II, era sumo sacerdote de Ptah em Mênfis.

Construiu e restaurou numerosos monumentos. Tinha uma paixão pela arqueologia e pelo estudo dos documentos antigos. Passava por ser um grande sábio e inspirou duas histórias de magia acerca das quais voltaremos a falar.

Hórus, filho de Panéchi, era um mágico que viveu na Época Baixa. Teve de combater um mago etíope que ameaçava a segurança do Estado. Este Hórus tinha vivido quinze séculos antes e tinha reencarnado para vir em socorro do seu país.

É ao mágico Esatum(abaixo), sacerdote que viveu na época de Nectanebo II (359-341), que se deve a salvaguarda da famosa Estela de Metternich.


Esatum constatara que uma inscrição num templo da cidade santa de Heliópolis tinha sido retirada. Para que esse precioso testemunho não se perdesse, mandou copiar o texto numa esteia que chegou até a nós. Esta pequena galeria de retratos tinha como simples objetivo ilustrar a continuidade do estatuto de mágico no decurso dos séculos que viram desenrolar-se a aventura egípcia. Seria possível, evidentemente, citar dezenas de outras figuras.

Pensemos ainda em Harnuphis (abaixo), o último mágico egípcio de grande renome. Estava presente nos campos de batalha da Mordávia, em 172, no lugar em que guerreava o exército de Marco Aurélio.

Faltou a água e os gregos, privados de aprovisionamento, arriscavam-se a morrer de sede. O mágico egípcio provocou a chuva, apavorando os bárbaros e salvando os soldados de Marco Aurélio.

A velha ciência da terra do Egito provava assim que nada tinha perdido da sua eficácia.

(Autor: CHRISTIAN JACQ - CONTINUA)