quarta-feira, 13 de junho de 2018

O LIVRO MÁGICO DO ANTIGO EGITO III

Estes fatos são desconcertantes para a nossa mentalidade moderna, que associa a magia aos videntes das festas populares ou às práticas mais aberrantes.

O mágico, na civilização do Antigo Egito, é uma personagem
pública que faz parte do universo ”normal”. O que seria ”anormal”, seria viver sem magia; por outras palavras, com os olhos e os ouvidos fechados.

Apto para as mais altas funções, o mágico ocupa um lugar importante na corte do faraó.

Nas aldeias, os mágicos locais, detentores de segredos técnicos por vezes muito úteis para o bem-estar de todos, são pequenos senhores muito escutados e consultados a qualquer propósito pela população.

Possuem o saber sem o qual cada um se sentiria em perigo.

Como sacerdotes, os mágicos recebem uma iniciação sacerdotal. Os que ocupam o cimo da hierarquia são submetidos a um modo de vida que Porfírio evocava nestes termos:

”Pela contemplação atingem o respeito, a segurança da alma e a piedade; pela reflexão atingem a ciência; e pelas duas ascendem à prática de costumes esotéricos e dignos dos tempos de outrora”.

Não esqueçamos que o chefe dos mágicos é o próprio faraó, que transporta as coroas carregadas de magia, a mais concentrada e eficaz. É a entrada no conhecimento que autoriza o mágico a declarar: ”Eu sou o mestre da vida cuja vida se renova eternamente, e o meu nome é Aquele que vive dos ritos”.

Como kherí-hebet, título que significa ”aquele que está encarregado do livro dos rituais”, ele lê em voz alta os textos sagrados, dando-lhes uma animação mágica que os torna plenamente eficazes.

Era nas salas secretas da Casa de Vida que o mágico se iniciava na leitura e na compreensão desses textos utilizados nas cerimônias públicas e privadas.

Existia uma Casa de Vida perto de cada grande templo, de tal modo que em nenhum ponto do território faltavam especialistas responsáveis pela primeira das ciências do governo: a prática dos rituais.

Algumas figuras se destacam no corpo oficial dos mágicos, nomeadamente a do grande sacerdote de Heliópolis, cujo título egípcio, uer mau, significa ”grande vidente” ou ”aquele que vê o (deus) grande”.

A sua vestimenta ritual é uma pele de fera ornada de estrelas, da qual se poderá encontrar uma longínqua analogia no manto cósmico usado pelos reis de França nas cerimônias da coroação.

O sumo sacerdote de Heliópolis, ”chefe supremo dos segredos do céu”, é o guardião da mais antiga tradição solar e de uma magia de Luz que vela pelo renascimento quotidiano da força da vida. Com efeito, sem a aplicação da magia o Sol não se levantaria em cada manhã.

Igualmente mágicos, os sacerdotes da deusa leoa Sekhemet são especialistas da medicina e da cirurgia.

Práticos e conjuradores, a sua gama de competências vai da mais banal picadela de inseto ao mais grave traumatismo. Os seus êmulos mais modestos são curandeiros de aldeia, aptos a praticar os primeiros socorros.
A comunidade iniciática dos construtores de Deir el-Medina, a quem se deve a maior parte dos templos e dos túmulos do Império Novo, tinha contratado um encantador de serpentes e de escorpiões de modo a poderem ser evitados eventuais incidentes.

A magia é indissociável das atividades que classificamos de "artísticas”.

As tocadoras de sistro, os dançarinos, os músicos (masculinos e femininos) que faziam parte do pessoal dos templos, não existem para sacrificar ao prazer estético mas sim para banhar a alma das divindades com eflúvios harmoniosos para poderem continuar a velar pelo equilíbrio e serenidade dos homens.

Nada é gratuito no mundo mágico do Antigo Egito, onde tudo é jogo de correspondências subtis que só os iniciados na magia podem perceber.

Como se tornar mágico? A esta questão essencial, não se pode responder com um ”modo de emprego”.

A prática mágica não é aprovada com um diploma nem julgada por meio de exames. O saber moderno, quase inteiramente codificado, não tem, infelizmente, em conta a experiência vital. Tal não era o caso em civilizações como a do Egito.

Existe, evidentemente, um método para se tornar mágico. Mas esse método não é exposto de uma maneira racional. Os textos não o deixam na sombra, antes apelam ao nosso sentido intuitivo e à nossa inteligência do coração mais do que às nossas faculdades de dedução e análise.

O capítulo 261 dos ”Textos dos Sarcófagos” intitula-se ”Tornar-se Mágico”. Eis o seu conteúdo. O adepto dirige-se aos mágicos que estão em presença do Mestre do universo. Pede-lhes respeito na medida em que os conhece, dado que eles lhe guiaram os passos.

Não é ele aquele que o Único criou antes que fossem instituídas as duas refeições na Terra, o dia e a noite, o bem e o mal, quando o Criador abriu o seu olho único, na sua solidão? O mágico apresenta-se como aquele que maneja o Verbo. É filho da Grande Mãe, daquela que pôs o Criador no mundo, desse que no entanto não tem mãe! O pai dos deuses é o mágico em pessoa. É ele que os faz viver.

Estranho texto, na verdade. Nada há de baixamente técnico nessas páginas, mas é um verdadeiro tratado de metafísica e de espiritualidade que traz à luz um processo de criação. Únicas indicações práticas: o adepto manteve o silêncio durante a cerimônia de entronização, curvou as costas, sentou-se em presença dos mestres qualificados de ”touros do Sol”. Eles reconheceram-lhe a dignidade de ”possuidor de potência” e de herdeiro do Criador.

O adepto veio tomar posse do seu trono e receber as marcas da sua função. Pertence-lhe o que veio à existência antes dos deuses. Também lhes ordena que desçam dos céus e venham ter com ele como sinal de deferência.

A aquisição da qualidade de mágico resulta de uma entrevista com os mestres dessa matéria que julgam o candidato sobre os seus conhecimentos esotéricos, muito mais do que sobre a sua aptidão prática, que será desenvolvida posteriormente. Tal como o morto, ao aceder ao estado de ser iluminado (o akb), reencontra a vida no seu princípio, também o adepto consegue, do mesmo modo e enquanto vivo, comunicar com a Luz da origem, contendo a magia na sua verdadeira pureza.

Primeira revelação feita pelos mestres: qualquer problema humano que se ponha ao mágico tem um modelo no mundo divino.

O mesmo acontecimento foi produzido à escala cósmica antes de ter uma repercussão terrestre. Eis a razão por que o mágico deve conhecer a genealogia divina, a teologia, os diversos relatos que dizem respeito à criação do mundo. Nisso encontrará todas as soluções. Identificando-se com os quatro pontos cardeais, o adepto torna-se Cosmos.

Excelente método para conhecer as suas leis, captar as potências invisíveis e dirigi-las - pelo menos parcialmente - à sua vontade. No momento do ritual de investidura, o mágico é despojado do seu ”eu”, da sua visão demasiado pessoal do mundo, para permitir que o Cosmos o penetre.

As potências invisíveis manifestam-se sob a forma de gênios bons ou maus. O adepto tem de os confrontar. Mais ainda, identifica-se com eles, o que é o melhor meio de os conhecer e de adquirir .

É conhecido um ato de nascimento iniciático de um mágico, assim relatado (Papiro mágico de Leiden, 55): ”Eu sou a face do Carneiro. Juventude é o meu nome. Nasci sob a venerável Perséia em Abidos. Sou a encarnação do grande nobre que está
em Abidos a saber, Osíris, sou o guardião do grande corpo (de Osíris) que está em Uupek” (lugar sagrado de Abidos).

Quer dizer que o adepto participou na reconstituição do corpo de Osíris disperso, provando assim as suas capacidades, antes de se identificar perante o deus ressuscitado o máximo de potência mágica. Poderá lutar contra os gênios resolutamente maléficos, extirpá-los do corpo de um doente.

Quando os gênios malignos atacarem um humano, uma cidade, um campo protegido por um mágico de qualidade, terão de se haver com um adversário de respeito.

O mágico age invocando uma potência que lhe é superior e graças à qual ele se torna eficaz. A fórmula típica dos textos mágicos revela-nos a forma: ”Não sou eu que digo isto, não sou eu quem o repete, mas é o deus que o diz, e é seguramente o deus que o repete”.

Não é pois o mágico que fala, mas sim a potência divina através dele. Na luta do ”bem” contra o ”mal”, não há o afrontamento de um humano contra ”alguma coisa” extra-humana ou super-humana, mas sim um duelo entre forças sobrenaturais, algumas delas positivas, encarnando-se no espírito e no corpo de um mágico. O próprio paciente, quer se trate de um doente a curar ou de um ”médium a manipular”, é identificado com uma divindade que não pode ser destruída. Que melhor segurança para escapar a uma sorte demasiado cruel?

Apuleio (escritor latino, 125 d. C.), o autor de O Asno de Ouro, notável romance iniciático no qual se evocam os mistérios de Ísis e Osíris, era um mágico de nomeada. Na sua obra, relata o encantamento de Lucius, transformado em burro, tendo de percorrer um longo caminho antes de recuperar a forma humana. Só a iniciação nos mistérios o libertará da prisão
da sua animalidade.

Apuleio foi perseguido pelas autoridades judiciárias do seu tempo e acusado de feitiçaria num processo público, tendo de pôr à prova todas as possibilidades da arte da oratória para escapar a uma condenação.

Apuleio nada ignorava da magia egípcia. ”É”, escrevia ele, ”uma arte agradável aos deuses imortais, uma das primeiras coisas que se ensina aos príncipes”.

De fato, o faraó, na sua ”educação” ritual, é identificado magicamente com as divindades.

Àquele que se torna mestre em magia, é declarado ritualmente: ”Misturas-te com os deuses do céu e não é possível estabelecer diferença entre ti e um deles. O teu corpo é Atum (o Criador) para a eternidade”. Não seria nada fácil encontrar melhor para afirmar que o mágico acede às mais altas esferas do espírito. Ali se impregna de poder a fim de ser um interlocutor qualificado das forças do Cosmos. É de resto um ”cosmonauta” antes de estes existirem, explorando universos desconhecidos após uma longa preparação física e psíquica.

O resultado desta aventura foi piedosamente recolhido nos textos de diversos livros:

”Não há em mim nenhum membro privado de deus”, explica o mágico, ”Tot é a proteção de todos os meus membros. Eu sou Ré de cada dia (...) os homens, os deuses, os bem-aventurados, os mortos, nenhum nobre, nenhum sujeito, nenhum sacerdote, poderiam apoderar-se de mim”.

Para dissipar qualquer ambiguidade, cada parte do corpo do mágico é formalmente identificada com a de uma divindade. Por exemplo, a cabeça é a de Atum, o olho direito é o do mesmo Atum quando ele dissipa o crepúsculo, o olho esquerdo é o de Hórus que desalinha o dia da Lua nova quando se corre o risco de se produzir uma má mudança de Lua, as narinas são as de
Tot e de Nut (a deusa do Céu), a boca é a da Enéade de Atum, companhia de nove divindades que rege o Cosmos, os lábios são os de Ísis e de Néftis, os dedos são serpentes de lápis-lazúli, as vértebras são os ossos das costas de Geb, o deus da Terra...

...o ventre é o de Nut, os pés são as abóbadas das plantas dos pés de Chu, o deus do ar luminoso quando atravessa o mar.

Conclusão: ”Não há nele membros que sejam privados de deus que porá a sua chancela sobre o que ele traçou, dado que os amuletos de Heliópolis lhe são aplicados”.

Esta frase enigmática merece um comentário. Colocar uma chancela, para o egípcio, é inscrever o divino no real. Os selos reais são conhecidos desde a I dinastia.

Mais tarde, os mais célebres terão a forma de um escaravelho,
símbolo do ”devir”. Por outras palavras, quando o rei toma uma decisão e a sela, está consciente do seu ”devir”, das consequências dos seus atos.

Em magia, essa tomada de consciência é absolutamente necessária para não se extraviar.

A aplicação dos ”amuletos de Heliópolis” corresponde a um momento primordial da iniciação do mágico. Reconhecido como apto para as suas funções, vê o seu corpo revestido das insígnias de poder que o Mestre mágico presidindo à cerimônia maneja.

Os amuletos são ditos ”de Heliópolis” porque esta antiga cidade do Sol era a capital da magia. São também colocados sobre a múmia para a tornar incorruptível.

É de resto um dos sentidos profundos da mumificação: identificar um despojo mortal com um corpo imortal para que a alma, munida com esse suporte, penetre no Além em país conhecido.

Todo o morto mumificado segundo os rituais torna-se um mágico capaz de ressuscitar. O egípcio não confia na simples crença para franquear o obstáculo do nada. O conhecimento parece-lhe ser um melhor caminho.

Quando o mágico volta o seu olhar para o céu, vê Ré, o deus da Luz. Quando volta o olhar para a terra, vê Geb, príncipe das divindades e deus da Terra. Essas duas divindades ajudam-no a conjurar o mal.

O concurso de Ré é especialmente precioso: graças à Luz divinizada, ele vê tudo e dissipa as trevas.

Ré tem o poder de mudar a morte em vida. Repete essa operação mágica em cada manhã, no lago de chamas, no momento de um combate encarniçado contra os seus inimigos que tentam impedir que a Luz dê de novo a vida.
O mágico também trava essa guerra contra as potências das trevas. Em primeiro lugar no momento da cerimônia de iniciação, depois na sua atividade quotidiana. Tem necessidade da Luz divina para ser aquele que ilumina o Egito, as Duas Terras, vermelha e branca, que rejeita a obscuridade para se tornar o touro das montanhas do Oriente e o leão das montanhas do Ocidente, aquele que percorre em cada dia as extensões celestes.

Quando abre o olho, a luz surge. Quando o fecha, a noite estende-se sobre o mundo. Os deuses ignoram o seu verdadeiro nome.
Identificado com a luz que viaja ao longe, o mágico liberta a estrada do Sol para que ele possa seguir em paz. Colabora portanto na obra solar de cada dia e na regeneração da humanidade.

Segundo o Antigo Egito, o estado de ser mais perfeito que a via iniciática coroa, é akh, a personalidade luminosa, irradiante, de eficiência sobrenatural.

O corpo pertence à terra, o akh pertence ao céu. É este ser iluminado que Ré revela ao mágico capaz de contemplar o Sol, de descobrir o divino contemplando o astro diurno. Muito mais tarde, serão qualificados de ”iluminados” aqueles que tiverem recebido a iniciação; hoje esse termo tornou-se pejorativo. Ser-lhe-á preferido o de ”Filho da Luz”, expressão egípcia que caracteriza o faraó designando-lhe o seu verdadeiro pai e conferindo-lhe a dimensão sobrenatural da sua função.

O mágico astrólogo A astrologia egípcia é um dos campos de pesquisa mais difíceis e menos explorados.
”Não há talvez país”, escreve Diodoro de Sicília falando do Egito, ”onde a ordem e o movimento dos astros sejam observados com mais exatidão do que no Egito.
Eles” (os astrólogos) ”conservam há já um número inacreditável de anos registros em que essas observações são consignadas. Neles se encontram informações acerca da relação de cada planeta com o nascimento dos animais e sobre os astros cuja influência é boa ou má.

No túmulo de Osímandias, em Tebas, havia no terraço um círculo de ouro de 365 côvados de circunferência, dividido em 365 partes; cada divisão indicava um dia do ano e ao lado estava escrito o levantar e deitar naturais dos astros, com os prognósticos que os astrólogos egípcios fundamentavam no exame dos dias”.

O zodíaco de Dendera, documento célebre que mereceria uma interpretação aprofundada, não é o único testemunho da astrologia egípcia que, na Época Alta, se centrava essencialmente na figura do faraó.

Os horóscopos individuais só são atestados tardiamente. Mas o mágico sempre se preocupou com as relações entre a sua ação e as disposições cósmicas.

Segundo o capítulo 144 do ”Livro dos Mortos”, ele toma em consideração a posição das estrelas no céu. Em silêncio e no segredo, consulta os livros de astrologia, apenas acessíveis a iniciados de longa data.

Contrariamente ao que hoje se passa, a astrologia não é facultada a profanos. Mantém-se ciência de templo, que só mãos peritas e espíritos responsáveis manejam.

Graças ao conhecimento das leis astrológicas, podem os bem-aventurados circular à sua vontade no céu, na Terra e no império dos mortos. Acompanha-os o espírito do mágico.

Quando faz as suas observações do céu, o mágico grava sete vezes as suas pegadas no solo. Recita sete vezes fórmulas mágicas em honra da Coxa, quer dizer, da Ursa Maior, orientando-se para Norte, para o eixo do mundo.

Os conhecimentos astrológicos são um dos suportes necessários ao ato mágico. A familiaridade com os astros é indispensável para utilizar as forças do Cosmos, a ponto de poder capturar a Luz e agarrar bem a Lua com as mãos, ou, por outras palavras, dominar a sua influência em vez de a suportar.

(Autor: CHRISTIAN JACQ - continua)