segunda-feira, 11 de junho de 2018
ARCANO VII E A VIDA
Dentre os Arcanos Maiores retratados pelo baralho de Marseille e seus correlatos, é o único que a sugerir claramente um deslocamento, indicando que você sai (ou deve sair) de onde (do estado) se encontra neste momento. No próprio Marseille, a carta do Eremita, ainda que possa sugerir deslocamento em algum momento (para muitos ele é apenas um farol na escuridão), o mesmo se dá de forma lenta e meticulosa. Diria, inclusive, que ele não está indo, mas voltando para compartilhar suas experiências, mas isso é outra história. Depois do Rider-Waite, a carta do Sol passou a contar com a figura de um menino à cavalo ao invés de duas crianças dentro de um cercado.
Se não nos colocamos em constante movimento, acabamos por ficar enclausurados pelos tijolos (a cristalização de crenças e condicionamentos) mentais e emocionais que vão surgindo e são empilhados ao nosso redor (O Carro, 7, que tem A Torre, 16, como sombra) – e sabemos muito bem como esta história termina. É hábito dizer que A Torre força as mudanças que A Morte não promoveu por livre e espontânea vontade, mas não se trata só dela.
A carta que antecede O Carro é O Enamorado: toda vez que chegamos a uma encruzilhada em nossas vidas é preciso cortar (como faz A Morte) com alguma coisa, pois optar (diferente de conciliar – O Papa) é “escolher entre”. É necessário assumir uma postura diferente, mudar o rumo das coisas, deixar o velho para trás para que o novo se manifeste. Às vezes é muito fácil fazer isso, às vezes não.
O herói conta com a ajuda de dois cavalos para impulsioná-lo, símbolos de força e poder. Por serem dois, indicam o poder inerente ao indivíduo e a capacidade de manifestar este poder.
Observe, contudo, que os cavalos não parecem estar alinhados. Ainda que cavalos e cavaleiro olhem para a direita (deles) – o lado que evoca o futuro, o crescimento, a doação, o amor e a misericórdia – o cavalo da esquerda tem seu corpo voltado para a direção oposta – o lado que evoca o passado, as necessidades do ego e, muito provavelmente, o medo de abrir mão do certo pelo duvidoso, ainda que o “certo” provoque alguma (ou muita!) dor.
A vida é um campo de batalha. Lutamos a cada instante pela nossa sobrevivência e sanidade – ilusão pensar o contrário. All we need is love, tudo bem. Não se trata de desejar a luta ou ter prazer com ela, mas de estar pronto, quando necessário. Muitas vezes a recusa em lutar é exatamente o que nos coloca em uma condição onde o caos prevalece – de novo a história do 7 que traz o 16 consigo.
Outro ponto importante é que as batalhas mais importantes não são travadas FORA, mas DENTRO de nós mesmos, por isso, antes da maldizer a sorte ou qualquer pessoa de seu relacionamento, busque na sua mente e no seu coração os elementos que verdadeiramente alimentam o seu sofrimento.
Na literatura indiana encontramos um clássico de todos os tempo, o Bhagavad Gita, que narra a experiência da batalha vivida por Arjuna, que está perdido em meio a uma guerra que ele não pediu para participar, mas não tem como ignorar.
Arjuna está à frente dos Pandavas, enquanto seu primo Duryodhama lidera os Kauravas. Antes que a batalha tenha início, os dois buscam o auxílio de Krishna – que é D’us sob a forma de um avatar – ao mesmo tempo, de modo que ele oferece uma alternativa para ambos: um poderá contar com todas as suas armas e todo o seu exército; o outro contará apenas com a sua presença como condutor de sua carruagem.
Arjuna, obviamente, opta por contar com D’us ao seu lado – para a felicidade de Duryodhama, cuja visão se limitava às coisas materiais.
Olhe de novo para a carta do Carro. Onde estão as rédeas que conduzem os cavalos? Quando é a alma, e não o ego, que escolhe um caminho (ou seja, quando não somos motivados pelo poder, pela vaidade ou pelos aspectos mais primitivos do nosso ser), entregamos as rédeas de nossa caruagem para D’us – e isso é mais do que suficiente.
A dificuldade que surge é que “entregar para D’us” significa sair do controle das coisas e tudo o que mais prezamos é a ilusão de que temos tudo sob controle, ainda que a realidade que conhecemos esteja desmoronando como um castelo de cartas ao vento. Dizemos alto “Que seja feita a Vossa Vontade”, mas suplicamos internamente “por favor, que ela não seja diferente da minha”.
A gente “entrega para D’us” e espera que o movimento aconteça, mas, às vezes, O Carro parece (veja bem, “parece”) não sair do lugar. E aí, tanto pode ser porque existe um tempo certo para cada ação ou porque as mudanças ocorrem de dentro para fora e só nesta última etapa a mente consciente consegue acompanhar o processo.
Em um dos comentários a respeito do Bhagavad Gita, encontramos a frase: “Mais vale uma morte merecida do que muitas indevidas”.
De fato, algumas coisas precisam morrer, dentro de nós, para que outras tenham vida. Matar o desejo de controle, por exemplo, é necessário, ainda que seja algo equivalente a exterminar o Jason, do Sexta-Feira 13 – quando menos você espera, lá está ele de volta. Por isso mesmo, orai e vigiai.
Osho dizia que não há grande diferença entre o covarde e o corajoso, além do fato que o covarde escuta os seus medos e os obedece, enquanto o corajoso escuta seus medos, afasta-os e segue em frente. O corajoso não é corajoso porque não tem medos, mas porque os têm e continua assim mesmo.
O medo surge quando estamos desconectados da vida. Desfrute a vida – isso também é do Osho – e o medo desaparecerá. A palavrar coragem vem do latim cor, que significa “coração”, assim, coragem tem a ver somente com “seguir o coração”, experimente.
De acordo com a tradição judaica, existe a Torá, revelada por D’us no Monte Sinai, escrita com letras de fogo, e um conjunto de relatos paralelos que deveriam ser passados de pai para filho, compilados no ano 500 DC, na forma de um livro, o Midrash Rabbah. Os midrashim descrevem, muitas vezes, os bastidores de cada evento, de modo a trazer uma nova luz a cada ensinamento.
De forma muito resumida, dois anjos vão à casa de Lot, em Sodoma, e avisa que D’us irá destruir tudo, mas que a vida dele e de sua família será poupada, contato que eles saiam rapidamente da cidade e, em momento algum, olhem para trás.
A mulher de Lot, cujo nome não é revelado em momento algum, denuncia a presença dos forasteiros, de modo que os habitantes tantam capturá-los. Lot arrasta a mulher e as filhas solteiras para fora da cidade. As filhas casadas se recusam a sair.
Alguns estudiosos dizem que ela se transformou em sal porque foi com sal que os traiu – teria pedido sal nos vizinhos avisando que era para servir os visitantes que haviam chegado de surpresa – mas eu arriscaria dizer que isso tem a ver com o poder de preservação do sal. Na própria Torá o pacto entre D’us e os homens é feito com sal para indicar que Ele jamais os abandonaria, mesmo que eles errassem repetidas vezes.
Tal como ocorreu à mulher de Lot, sempre nos transformamos em um pilar de sal quando estancamos entre o lugar/a condição em que não devemos permanecer (simplesmente porque não é boa para nós) e o lugar/a condição para onde devemos ir. Tentamos preservas as coisas, as pessoas, os vínculos – de forma consciente ou não – quando mais nada daquilo agrega valor às nossas vidas. Salgamos algo fresco para que ele não apodreça, mas não há como deter (pior, retroceder) um processo em franca deteriorização. Resistimos, achamos que – passando mais um tempo – tudo melhora, pensamos no trabalho que dará promover mudanças.
Devemos nos afastar da Torre quando ela começa a desmoronar. Pegar o Carro e seguir para além, sem olhar para trás. Se ficarmos, corremos o risco de sermos soterrados. Se avançarmos de forma vacilante, corremos o risco de olharmos para trás e viramos sal.
Gosto do Arcano VII do Waite, que coloca uma cidade ao fundo. Sair da cidade é sair da segurança, da zona de conforto. Buda largou tudo o que tinha para viver na floresta. A Torre e os muros da cidade têm a mesma cor.
A palavra usada para “pilar”, netsib, deriva de natsab, que significa “ficar parado em pé”, como um soldado em posição de sentido. Ela congelou, estancou, se recusou seguir adiante. Mesmo que Lot tentasse puxá-la, não conseguiria. A mulher de Lot olhou para trás. Quem não olharia? Ela estava deixando toda sua vida para trás, amigos, parentes, duas filhas – talvez netos, não sei.
O sal é extraído das águas do mar. A água evapora, fica o sal. A água é a expressão do Amor. O sal é a expressão do Julgamento. Quando falta o desejo de compartilhar, a água, fica apenas o desejo de receber, o sal. Ela não pensou no que poderia estar ganhando, apenas no que estava perdendo. Quantas vezes não agimos da mesma forma?
Talvez ela tenha pensado: “e se aqueles dois caras não são anjos de D’us coisíssima nenhuma?”. As pessoas, por vezes, nos falam de coisas com uma convicção profética. Nos dizem o que devemos e o que não devemos fazer. Seriam todas anjos/mensageiros de D’us? Nem sempre.
Fora o problema de lidar com o nosso próprio ego, por vezes temos que nos desviar do ego dos outros – seus medos, apegos, vaidades, … Sempre tem alguém que julga ter todas as respostas. Que acha que sabe o que é certo para você, põe o dedo em riste, desafia, faz ameaças. Será que sabe mesmo? Como reconhecer um anjo? Pergunte ao seu coração sem se deixar influenciar por afetos ou aversões. Não basta estar atento aos sinais, é preciso classificá-los para evitar enganos.
Um dos desafios do Carro é exatamente a autonomia, pois, na seqüência de cartas, ele foi treinado para seguir ordens que vêm de fora sem maiores questionamentos. Foram anos de condicionamentos. Seguir a intuição poderia ser algo passível de pena de morte. O mundo não quer que você pense, apenas que siga as regras.
O que chamamos de “despertar de uma nova consciência” (lembrando que há vários níveis de consciência a serem alcançados), nada mais é do que o reconhecimento do modo como percebemos a realidade através dos filtros de nossas crenças, associações e interpretações . Quando ele identifica que faz isso ou aquilo com base em motivações que não lhe pertencem, surge a oportunidade de fazer diferente.
Talvez por isso, colocadas lado-a-lado, o Arcano VII ainda olhe para o seu antecessor, refletindo, lucidamente, “ah, no passado eu agiria desta maneira por causa disso e daquilo, mas hoje sou livre para tomar novos rumos”.
Que você, como eu, possa entregar de coração as rédeas de seus cavalos e corajosamente ir onde nenhum homem esteve antes para explorar novos mundos, novas vidas, novas civilizações.
(Texto: Marcelo Bueno)