Esta lâmina traz uma mulher que dilui o vinho de uma taça com um pouco de água de uma ânfora.
A figura da Temperança, inicialmente, é um apelo à moderação que surge junto com a preocupação relativa aos excessos associados, principalmente, à comida, à bebida e ao sexo.
Não se trata, contudo, de uma proposta de abstinência. Como pregava Aristóteles, “tanto a deficiência como o excesso de exercício destroem a força”, logo, antes de qualquer outra coisa, é o reconhecimento do que é saudável e o trabalho para permanecer dentro destes limites.
Temperança deriva de temperar e entendemos que o tempero realça um sabor quando, na verdade, temperar tem por objetivo suavizar (tornar mais brando) aquilo que é temperado.
O vinho diluído em água tem o seu teor alcoólico reduzido, diminuindo, também, o risco da embriaguez. Talvez sirva de ícone por ser o elemento com possibilidade de “maior estrago social”. Desde de Noah (Noé) que o vinho tem má fama, mas entre os judeus é revelado que o valor numérico de yayin (“vinho”) e sod (“secredo”) é o mesmo (70), sendo sod um nível de profundo conhecimento dos códigos presentes na Torá.
Tomado na dose correta, “o vinho entra e os segredos [do Universo] emergem”, ditado muitas vezes alterado com uma conotação negativa para “o vinho entra e as palavras saem” exatamente porque as pessoas se perdem no torpor do álcool.
Água e vinho, contudo, compartilham de outra referência simbólica: na tradição judaica, a água está associada à Chessed (Misericórdia) e o vinho à Guevurá (Severidade), de modo que colocar água no vinho também pode ser interpretado como adição de Amor ao Julgamento.
Se na Severidade a lei é “bateu, levou”, quando há Misericórdia, existe um estado de latência entre causa e efeito, dando oportunidade ao aprendizado/evolução do intemperante. Muitas vezes não se trata de evitar a punição, mas permitir até que esta semente de karma negativo seja purificada antes que ecloda.
Temperaça, por sua vez, destacava os atributos da alma sobre os do corpo – ou a razão que domina os instintos – ganhando conotações mais espirituais/alquímicas com o passar do tempo.
Algumas pessoas, por exemplo, não gostam da carta da Temperança para relacionamentos porque falta paixão, mas paixão é fogo morro acima – é rápido e consome tudo ao redor. O fogo bem regulado – podendo ser mais intenso quando necessário – é aquele que se faz útil por muito mais tempo.
Porém, é a imagem da mulher que com água (Amor) tempera o fogo (Paixão). É neste ponto que consciência e autocontrole se fazem mais necessários, pois com a primeira se determina a dose certa e com a segunda dominamos o impulso de querer mais e mais, o que pode ser difícil – você sabe que é errado, mas se deixa levar pela busca do prazer imediato, pela vaidade e/ou pela ira ainda que se martirize com culpas depois.
As dualidades estão presentes em muitas lâminas do Tarot: o Mago aponta para o Céu com uma das mãos e para a Terra com a outra; a Papisa se coloca entre duas colunas; o Papa tem dois acólitos, o Enamorado duas mulheres e o Diabo dois escravos; o Carro é puxado por dois cavalos; o Sol traz duas crianças; a Justiça carrega uma balança com dois pratos.
A Temperança parece não fugir à regra, mas uma coisa a diferencia: ela traz consigo a habilidade de reunir dois elementos para criar um terceiro completamente novo.
Existe uma abordagem mais espiritualista a este respeito. Romper com as dualidades, neste caminho, seria alcançar uma conexão genuína com a Unidade, que está além do tempo, espaço e movimento, mas não estou levando o assunto a este nível da experiência – que na Temperança, por sinal, ainda está longe da real possibilidade de auto-realização da carta do Mundo.
A dualidade aqui é tema porque a mente ordinária (no sentido de comum, e não de inferior) está habituada a perceber o mundo através das comparações: eu reconheço a saúde a partir da doença, o belo a partir do feio, e por aí vai.
Estabelecer o peso de uma coisa a partir de outra, por sinal, é bem do feitio da carta da Justiça e uma conseqüência natural disso é uma visão de mundo dividida entre “gosto” e “não gosto”, que em suas condições extremas, levam ao apego e à aversão. Não se trata aqui de se discutir preferências, mas como se reage a elas.
Penso nas cartas do Tarot que melhor representariam estas forças e vejo o Diabo (15) e a Morte (13), respectivamente, e a Temperança (14) entre eles.
Em uma das etapas do processo alquímico – e é muito difícil descrever a Temperança sem ficar tentado escrever um pouco sobre Alquimia – o Sol e a Lua (o conteúdo das ânforas dourada e prateada, respectivamente) são dissolvidos em um único recipiente para que deles se obtenha a prima matéria (o elemento primordial ou indiferenciado) que dará origem, mais adiante, à Pedra Filosofal. No Solutio, a água faz com que cada componente perca a sua identidade; eliminando as resistências de ambos.
“A Morte transforma; a Temperança transmuta”.
A água evapora, condensa e precipita, mas não deixa de ser água – isto é transformação. Quando a essência é alterada, como no caso do chumbo (Pb) que se converte em ouro (Au) – dois elementos distintos na tabela periódica – estamos diante de uma transmutação.
A presença da Temperança em um jogo pode indicar a mudança que se faz necessária se encontra em um nível mais profundo. Muitas vezes entra em cena tratamentos psicológicos de resignificação das falsas crenças ou as terapias que mexem no corpo energético, como é o caso da Cura Prânica, que atua no conteúdo emocional do paciente removendo elos psíquicos que o impedem de seguir em frente.
Algumas pessoas falam mal de um relacionamento marcado pela Temperança, mas, pela minha ótica, o que acontece muitas vezes é que as energias mescladas promovem mudanças significativas nos padrões de comportamento de ambos para melhor.
“Isto também ocorre com a carta da Morte?” Ocorre. A diferença é que a Morte muda pela cobrança que o outro me faz ou eu mesmo me faço para estar à altura do outro – na maioria das vezes, um processo unilateral. A mudança da Temperança (de novo cabe o uso da palavra transmutação) é sutil, faz com que as diferenças não “se atritem” e promove alterações positivas, de dentro para fora, na forma de pensar, sentir e se relacionar – entre eles e com o mundo que os cerca.
Muda para melhor porque está implícito na Temperança – ou no processo alquímico, como um todo – o refinamento dos seus componentes.
Obviamente, se a Temperança não está bem no jogo de um casal, podemos pensar que não existe troca entre eles ou que esta mistura de energia os está envenenando e o mais provável é que eles não se percebam prejudicados até que algo mais radical aconteça.
E que o anjo da Temperança promova a alquimia interior que você necessita para que uma nova consciência desperte em direção à liberdade e à integridade.
(Texto: Marcelo Bueno)