A magia superior, como foi demonstrado, tem como um dos seus objetivos uma comunhão com o divino tanto aqui quanto no porvir, uma união para ser obtida não por meio de uma mera doutrina e especulações intelectuais estéreis, mas sim pelo exercício de outras faculdades e poderes mais espirituais em ritos e cerimônias. Por divino os teurgos reconheciam um princípio eterno espiritualmente dinâmico, e sua manifestação refrata em seres cuja consciência, individual e separadamente, são de um grau de espiritualidade tão grandioso e sublime a ponto de realmente merecerem o nome de deuses. Essa é, obviamente, a visão objetiva, e eu me referirei aos deuses neste capítulo somente desse ponto de vista, deixando ao leitor a liberdade de interpretá-los de modo diverso, se assim o quiserem.
Uma advertência deve, entretanto, ser feita aqui. Não se deve pensar que os teurgos e os filósofos divinos eram politeístas em qualquer sentido comum. Uma tal conclusão estaria, de fato, bem distante do que é realmente verdadeiro. Mesmo para os egípcios, que possuíam um panteão repleto de hierarquias e deuses celestiais e que são acusados tão frequentemente de serem primitiva e grosseiramente politeístas, E. A. Wallis Budge profere uma defesa, pois embora os não-instruídos apreciassem uma pluralidade de deuses, “os sacerdotes e as classes instruídas que eram capazes de ler e compreender os livros adotaram a concepção do Deus único, o criador de todos os seres no céu e na terra, os quais, por falta de uma palavra melhor, eram chamados de deuses”.
Essa é a posição do ponto de vista empregado na magia. Primariamente, há apenas uma Vida onipresente que penetra todo o cosmos. Permeia e vibra em todo canto e porção do espaço, sustentando a vida individual de todo ser que existe em qualquer um dos mundos infinitos. Desconhecido em si mesmo, visto que é onipresente e ilimitado em toda direção e exaltado além do alcance intelectual, jamais poderia ser compreendido pela mente humana. Mas é preciso que se compreenda que a partir Dele procedem todos os deuses, todas as almas humanas e espíritos e toda coisa concebível que é.
De um certo modo, incompreensível ao nosso entendimento finito, a energia negativa e passiva homogeneamente espalhada através do espaço se tornou vivificada, formando ela mesma centros ativos primários que, com o desenrolar de eons de tempo, expandiu-se e gradualmente evoluiu para o cosmos. Com esses centros, as primeiras manifestações, brotou da homogeneidade latente um grupo heterogêneo de entidades divinas ou forças inteligentes cósmicas que se tornaram os arquitetos e construtores do universo. Da própria essência espiritual individual deles, hierarquias menores nasceram, as quais, por sua vez, emanaram ou criaram a partir de si mesmas ainda outros grupos até que finalmente as almas humanas vieram a ser a descendência refletida dos deuses abençoados.
Essas forças inteligentes receberam nomes variados, deuses, daimons, essências universais, dhyan chohans, eons, teletarchae e muitos outros. Todos implicam a mesma idéia fundamental de centros conscientes (embora não necessariamente autoconscientes, intelectuais) de força, sabedoria e inteligência que emanam ou criam, de uma maneira ou de outra, a partir de si mesmos o universo finito manifesto.
Essas forças cósmicas ou deuses eram estudados pelos teurgos egípcios com muito rigor, e seus atributos cuidadosamente observados e registrados sob a forma de parábolas, alegorias, mitos e lendas. Mesmo nos pictogramas convencionais de suas divindades, cada um dos emblemas tem uma importante significação que é ao mesmo tempo profunda nas suas implicações e simplesmente eloqüente na descrição das características de determinado deus. Por exemplo, uma pena azul levada à mão de um dos deuses, ou encimando a cobertura de cabeça, implicava a verdade, firmeza e retidão, enquanto um cetro tinha a finalidade de transmitir a idéia de que um certo deus era detentor de suprema autoridade e soberania. Cada símbolo e sigillum portados pelo deus em alguma parte de sua pessoa constituíam uma pista para a natureza inerente a ele.
Os mitos e as lendas relativos aos deuses passados à posteridade pelos sacerdotes egípcios não eram meras invenções ociosas produzidas por homens ignorantes, embora imaginativos, que não tinham coisa melhor para fazer, ocupando-se com a narração de histórias e a urdidura de ficções agradáveis ou desagradáveis baseadas em invencionice. Pelo contrário, longe de puerilidade, em cada uma dessas lendas e descrições pictóricas dos deuses está oculto um patrimônio de conhecimento transcendental para todo aquele que for capaz de percebê-lo.
Relativamente a um povo tão perspicaz como o egípcio, um povo que desenvolveu uma civilização resistente cujos restos permanecem como nobres monumentos até os dias de hoje, dificilmente se poderia acreditar que seus mitos não passem de contos interessantes, como se os deuses reconhecidos por eles não tivessem existido ou tenham sido, no máximo, fantasias infantis. Jamais se deve considerar que o panteão egípcio, particularmente os deuses associados aos cultos teúrgicos, era em qualquer grau mítico no sentido de que era o resultado do jogo divertido de uma fértil faculdade inventiva.
O homem primitivo não “criou” os deuses, como pensam tantos aprendizes modernos de teologia comparativa, destituídos de toda simpatia e gênio religioso. O que ele realmente fez, talvez inconscientemente, foi aplicar nomes (e mesmo esses nomes eram carregados de significado) e faculdades quase humanas a esses “poderes” ou grandes forças da natureza que observava com tanta precisão, e que ele acreditava serem, com justeza suficiente, manifestações ou símbolos do divino. Todos os pensamentos e idéias, todo o grande saber e conhecimento dos egípcios encontraram sua expressão pictórica na alegoria, na parábola e nas pinturas. Assim nós os recebemos hoje. Descartar seu sistema bem desenvolvido de lenda e mitologia instrutivas como absurdo e infantil só indica a postura de uma inteligência superficial e pueril.
Pode-se demonstrar que basta um pouco de estudo para revelar uma profundidade de discernimento que nunca se compreendeu antes existir. Além disso, as vinhetas e os símbolos pintados dos deuses com os quais os egípcios estavam habituados a decorar seus papiros, pelo mesmo motivo não são meramente desenhos infantis descritivos de vagas opiniões intelectuais.
Cada deus na mitologia egípcia tinha uma precisa e bem-definida função a executar no cosmos – criadora, preservadora ou destruidora, de acordo com o caso – e tal função fora confirmada com precisão pela observação, tanto secular quanto teúrgica, levada a cabo por um longo período de tempo, e as qualidades e natureza dos deuses eram expressas em gravuras.
Que os egípcios concebiam que Ra, o deus-Sol, realmente existia naquela forma artística convencional em que o pintavam, não estou disposto a acreditar; tampouco que achavam que o sol à meia-noite assumia a forma de um escaravelho. Em que realmente acreditavam é que o escaravelho, como símbolo, exprimia de várias maneiras sutis a natureza do sol após o poente. A vaca, analogamente, era um símbolo de fertilidade exuberante, a íbis, um símbolo de sabedoria e suprema inteligência. O falcão, devido à sua capacidade de permanecer equilibrado no firmamento, constituía um símbolo perfeito do eu divino que, desapegado de todas as coisas da terra e da forma, as observa com o olho da equanimidade.
O assunto todo deve ser cuidadosamente estudado, e se a metade do zelo e atenção que o homem comum dedica ao seu jornal no dia-a-dia forem dedicados pelo leitor ao estudo dos deuses, muito conhecimento útil de profunda importância para a magia será obtido.
A evolução e o desenvolvimento do cosmos, espirituais e físicos, foram primeiramente registrados pelos filósofos em mudanças geométricas da forma. Toda cosmogonia esotérica usava um círculo, um ponto, um triângulo, um cubo e assim por diante. Esses mais tarde foram incorporados numa forma geométrica simples que é chamada na Cabala de Árvore da Vida. Aplicou-se a cada desenvolvimento cósmico um número, e existindo como o significado específico do número ou a fase particular de evolução, havia a atividade de um deus ou de uma hierarquia de deuses.
Assim, na Cabala temos dez emanações principais. A cada uma dessas um número é atribuído e em cada número, portanto, está encerrado um deus. Há dez séries de hierarquias de forças cósmicas, espirituais, dinâmicas e inteligentes, cujas operações em concerto resultam na formação do universo físico. A tradição dos teurgos as classifica numa escala descendente de pureza e espiritualidade, dos deuses aos arcanjos, inteligências e espíritos.
Considerando-se que em magia o objetivo é obter de uma maneira ou de outra uma união espiritual estreita e duradoura com essas divindades cósmicas, que são as realidades essenciais e as fontes de sustentação e vitalidade, é aconselhável dar uma breve descrição delas tal como entendidas pelos egípcios. Na tabela que se segue elas são classificadas de acordo com suas hierarquias e escala de graduação, e a interpretação será auxiliada se o leitor se recordar das afirmações feitas num capítulo anterior a respeito das Sephiroth.
Com relação a cada um desses deuses, apresentarei uma curta descrição baseada em textos de egiptologia, deixando a critério do leitor a interpretação que desejar. A natureza dos arcanjos, inteligências e espíritos cujos nomes são indicados na tabela, será revelada pelos atributos da divindade regente.
Correspondendo ao desenvolvimento cósmico representado entre os cabalistas por Kether, a Coroa, temos a divindade egípcia Ptah, sendo que o significado de seu nome é o franqueador. Para os egiptólogos isso parece ter sido um obstáculo em suas classificações, pois no caso de se supor que ele estava associado com a abertura do dia mediante o sol, é suficientemente singular o fato de nunca formar um dos importantes grupos dos deuses solares nos textos hieráticos.
Em O livro dos mortos seus atributos não guardam a menor relação com Ra, Khephra e Tum, os deuses ligados ao nascer do sol, ao pôr-do-sol e ao seu obscurecimento à meia-noite. Dentro do delineamento da filosofia mágica, contudo, não é, em absoluto, difícil compreender em que sentido Ptah é chamado de O Franqueador. Visto que seu aparecimento inaugurou ou deu início a um ciclo de manifestação cósmica ele é assim chamado, e é ele o Logos oculto, a essência metafísica central da qual tudo se originou. Essa interpretação parece ser corroborada por várias ilustrações nas quais ele é mostrado confeccionando o ovo do mundo num torno de oleiro.
Budge, confirmando, também salienta que a raiz etimológica de Ptah é cognata com o significado de uma outra palavra que significa esculpir ou talhar. Essa raiz cognata posiciona o deus de maneira excelente, como o faz a palavra artífice que aparece nos textos, pois não só abre Ptah o ciclo evolucionário como é também ele quem, emergindo das trevas triplamente desconhecidas, é o Grande Arquiteto do Universo, dando, juntamente com Thoth e Ísis, nascimento às coisas manifestas. Dizia-se dele que era “o grandioso deus que veio a ser no tempo mais remoto” e para indicar de modo conclusivo sua natureza ele também era considerado o “pai dos princípios e criador do(s) ovo(s) do Sol e da Lua”.
Na mesma categoria que Ptah, como uma correspondência da mesma série de idéias filosóficas ligadas à Coroa, existe o deus Amon ou Amen. Ele era o poder criativo invisível que era a fonte de toda a vida no céu, na terra e no mundo inferior, finalmente fazendo a si mesmo manifesto em Ra, o deus-Sol. O próprio nome indica aquele que é oculto ou dissimulado, e nos tempos de Ptolomeu essa expressão associou-se a uma palavra que significa subsistir e também ser permanente.
Há, além disso, uma considerável quantidade de evidências que nos levam a crer que Osíris poderia ser atribuído a essa mesma categoria. O prospecto do Museu Britânico do Livro dos Mortos afirma que uma princesa egípcia podia saudar Amen-Ra e Osíris não como dois deuses distintos, mas como dois aspectos do mesmo deus. Ela acreditava que o poder criador “oculto” de que era investido Amen era apenas uma outra forma do mesmo poder tipificado por Osíris. Com toda certeza, entretanto, Osíris tem que ser saudado como a encarnação humana do poder criador, a assunção em humanidade do deus mais supremo, um avatar, se assim se preferir, do Espírito supremo.
Todas as razões levam a crer que seja este o ponto de vista acertado a respeito de Osíris, pois ele também permaneceu para a renovação do nascimento e uma ressurreição espiritual, tipificando o Adepto iluminado, purificado pela provação e pelo sofrimento; alguém que morreu e, depois de descer ao mundo inferior, miraculosamente ressuscitou glorificado para reinar eternamente nos céus.
Na medida em que este é o caso, ele será considerado como um tipo pertencente a Tiphareth. Há, contudo, um aspecto dele, Asar-Un-Nefer, Osíris feito beneficente ou perfeito em cuja forma deífica ele é uma representação mas adequada daquela fase de Kether que é o aspecto mais real e mais profundo da individualidade.
A natureza de Thoth ou Tahuti e a descrição das características que os egípcios atribuíam a ele não deixa o menor motivo para dúvida quanto à sua imediata atribuição a Chokmah. Ele é sabedoria e o deus da sabedoria, e como observado por Budge, é a personificação da inteligência de todo o conjunto dos deuses.
O nome Tahuti parece ser derivado daquele que se supõe ser o nome mais antigo da íbis, que é uma ave que sugere pela sua própria postura meditação e conseqüentemente sabedoria. Há uma excelente descrição dos atributos de Thoth no livro de Budge Os deuses dos egípcios que eu cito a seguir:
“Em primeiro lugar, julgava-se ser ele tanto o coração quanto a língua de Ra, quer dizer, ele era a razão e os poderes mentais do deus, e o meio pelo qual a vontade dele era traduzida em discurso; num certo aspecto ele era o próprio discurso e em tempos posteriores ele pode muito bem ter representado, como afirmou o dr. Birch, o Logos de Platão. Em toda lenda na qual Thoth desempenha um papel de destaque, percebemos que é ele quem profere a palavra que resulta na concretização dos desejos de Ra, e é evidente que uma vez tivesse ele pronunciado a palavra de comando, esse comando não poderia deixar de ser cumprido por um meio ou outro. Ele proferiu as palavras que tiveram como resultado a criação dos céus e da Terra... Seu conhecimento e seus poderes de cálculo mediram os céus e planejaram a Terra e tudo o que se acha neles; sua vontade e seu poder mantiveram as forças no céu e na Terra em equilíbrio; foi sua habilidade na matemática celeste que possibilitou o uso correto das leis sobre as quais os fundamentos e a manutenção do universo se apóiam; foi ele quem dirigiu os movimentos dos corpos celestes e seus tempos e estações”.
Ele era, em suma, a personificação da mente de Deus ou o Logos, e como o poder todo penetrante, governante e dirigente do céu, ele configura um aspecto da religião egípcia “que é tão sublime quanto a crença na ressurreição dos mortos num corpo espiritual, e quanto a doutrina da vida eterna”.
Palas Atena é a deusa grega da sabedoria que, segundo o mito, emergiu totalmente armada do cérebro de seu poderoso pai, Zeus. Urano, o deus dos céus estrelados, poderia também ser colocado nessa mesma categoria com Thoth e Atena, pois deve ser mencionado que tradicionalmente Chokmah é também chamada de a esfera das estrelas fixas.
Ísis, correspondendo a Binah, era considerada a fonte do universo, a primeira progênie das eras, governante do céu, do mar, e de todas as coisas na Terra, e era a Mãe superior que o conjunto do mundo antigo venerava sob diversos nomes. Foi tão vinculada à rainha do céu como a compassiva e onipotente senhora de ambos os mundos, que ela atraiu para si uma grande multidão de devotos e sinceros adeptos.
Resumindo concisamente Budge no que concerne a Ísis, podemos afirmar que ela era considerada a grandiosa e benevolente Mãe cuja influência e amor dominavam a totalidade do céu, da Terra e a morada dos mortos, sendo ela a personificação do grande poder reprodutivo passivo que concebia imaculadamente e gerava toda criatura e coisa vivas. O que gerava ela protegia, cuidava, alimentava e nutria; empregava sua própria vida usando seu poder de modo amável e bem-sucedido, não apenas criando coisas novas como também restaurando aquelas que estavam mortas. Ela era, além de todas essas coisas, o tipo mais elevado de esposa e mãe fiel e amorosa. Era nessa qualificação e capacidade que os egípcios a honravam e veneravam mais. Conforme a lenda, agora familiar, Osíris, seu marido, foi assassinado graças à astúcia de seu irmão Tífon ou Set (emblemático do aspecto destrutivo da natureza) e seu corpo forçado para dentro de uma caixa que, após ter sido lançada ao Nilo, foi conduzida ao mar. Depois de uma longa e cansativa busca, Ísis a encontrou e a escondeu num sítio que julgava seguro, onde, contudo, foi descoberta por Tífon, o qual malignamente esquartejou o cadáver.
Os incidentes da busca que ela empreendeu do corpo mutilado e a concepção e nascimento de seu filho Hórus, impressionavam vigorosamente a imaginação dos egípcios, de modo particular quando a lenda narra a ajuda na busca dada por Thoth, o deus da sabedoria e da magia, o qual graças à sua habilidade nas artes teúrgicas foi capaz de comunicar a ela os processos e palavras de poder que temporariamente ressuscitaram Osíris e o capacitaram a gerar nela o filho-deus Hórus.
Além do acima exposto há a lenda obscura relativa à parte da ajuda segundo a qual Ísis paradoxalmente fez concessões a Tífon na batalha travada por Hórus que, enraivecido pela aparente traição de sua mãe, matou-a e a decapitou. Entretanto, imediatamente Thoth transformou a cabeça de Ísis na de uma vaca, a qual ele prendeu ao corpo dela. De maneira própria, essa lenda indica a relação que existe entre Ísis, a Mãe e a deusa-vaca Hathor, muitos dos atributos desta parecendo coincidir em muitos aspectos significativos com os atributos de Ísis.
A Árvore da Vida, prenunciando diagramaticamente o processo de evolução, deve ser de algum auxílio para a compreensão da idéia subjacente a esta lenda, como deve ser também a lenda grega referente a Cronos, que é também uma atribuição de Binah.
O tempo absoluto é feito para se tornar o finito e a condição; uma porção é furtada do todo, mostrando assim que Cronos, o pai dos deuses, foi transformado da duração eterna para um período limitado de tempo. A mesma interpretação pode, igualmente, ser aplicada à decapitação de Ísis, resultando na transição dela como uma deusa criadora superior a um plano terrestre inferior.
Maat, a deusa atribuída à esfera de Chesed, é no antigo sistema egípcio estreitamente aliada a Thoth, tão estreitamente, de fato, a ponto de poder ser quase considerada como sua contraparte feminina. O tipo de símbolo dessa deusa é a pena de avestruz, simples ou dupla, que está sempre presa à sua cobertura de cabeça ou segura em sua mão. Primordialmente indicando “aquilo que é reto”, a palavra maat era usada num sentido físico e moral, de maneira que finalmente passou a significar “correto, verdadeiro, probo, justo”.
Essa deusa incorpora então as idéias de lei física e moral, ordem, verdade e regularidade cósmica. Pode-se observar que muitos desses atributos de Maat são, de forma semelhante, significados atribuídos pelos astrólogos ao planeta Júpiter, que constitui uma das correspondências da mesma Sephira a que Maat é atribuída. Como um poder moral, admitiu-se ser Maat a maior das deusas, e ela chegou a ser a senhora do salão do juízo no Tuat ou mundo inferior, onde a pesagem do coração ocorria na presença de Osíris. Geralmente representada como uma mulher sentada ou de pé, ela segura numa das mãos o cetro da soberania e na outra o ankh, o símbolo da vida. Algumas figuras a mostram munida de um par de asas, cada uma presa a um braço, e em alguns poucos casos ela é retratada portando a pena da verdade sobre sua cabeça, ereta, sem qualquer cobertura de cabeça.
O Júpiter romano era originalmente uma divindade elementar, sendo venerada como o deus da chuva, tempestade, trovão e relâmpago. O senhor do céu e o príncipe da luz, ele era o deus que previa o futuro, e os acontecimentos que previa ocorriam como resultado de sua vontade. Zeus é seu equivalente grego e ambos são atribuídos a Chesed.
A tradução da quinta Sephira, Geburah como “força” associada à sua correspondência astrológica de Marte, de maneira sumamente apropriada resume a característica de Hórus. Ele é o deus egípcio da força detentor de muitas formas, das quais duas são as mais importantes: Hoor-paar-Kraat e Heru-Khuti.
Como o primeiro, o grego Harpócrates, ele é representado usando uma mecha de cabelo, o símbolo da juventude radiante, do lado direito de sua cabeça; às vezes, também, ele usa a coroa tripla com plumas e discos como cobertura de cabeça, e ocasionalmente o disco apenas com plumas. Na maioria dos casos ele é retratado com seu dedo indicador erguido até seus lábios em sinal de silêncio.
Mas é como Hórus, o filho de Ísis e Osíris, que ele se liga a Geburah, em seu aspecto do vingador do assassinato e da violação dos restos mortais de seu pai. Representado como um falcão, era capaz, das alturas do céu, de ver os inimigos de seu pai, que ele perseguia, assim diz a lenda, sob a forma de um grande disco alado. Com tal fúria e vigor atacava esses inimigos que todos estes perdiam seus sentidos, não podendo nem ver com seus olhos nem ouvir com seus ouvidos. As assertivas relativas a Hórus contidas no prospecto do Museu Britânico são tão interessantes nesse sentido que as transcrevemos a seguir:
“Quando Hórus atingiu a maturidade ele se pôs a caminho para achar Set e travar guerra contra o assassino de seu pai. Finalmente eles se encontraram e uma luta brutal se seguiu. Embora Set fosse derrotado, antes de ser por fim arremessado ao solo, conseguiu arrancar o olho direito de Hórus e guardá-lo. Mesmo após essa luta, Set pôde perseguir Ísis, estando Hórus impotente para impedi-lo até que Thoth fez Set entregar-lhe o olho direito de Hórus que ele arrebatara. Thoth então levou o olho a Hórus e o recolocou em sua face, devolvendo-lhe a visão cuspindo sobre ele. Hórus, a seguir, procurou o corpo de Osíris a fim de restituir-lhe a vida, e quando o achou desatou as bandagens para que Osíris pudesse mover seus membros e ressuscitar. Sob a direção de Thoth, Hórus recitou uma série de fórmulas à medida que apresentava oferendas a Osíris ...Abraçou Osíris e assim transferiu a ele seu ka, isto é, sua própria personalidade e virilidade vivas, e lhe deu seu olho, aquele que Thoth resgatara de Set e recolocara em sua face. Logo que Osíris comeu o olho de Hórus... recuperou com isso o completo uso de todas as suas faculdades mentais que a morte suspendera. Prontamente ergueu-se de seu esquife e se tornou o Senhor dos Mortos e Rei do mundo inferior.”
Marte e Ares são os equivalentes grego e romano, sendo venerados como os deuses da guerra e das batalhas, prosseguindo com a idéia essencial de Geburah, força, vigor e energia.
É relativamente a Tiphareth e aos deuses a ela associados que desejo me alongar um pouco mais porquanto são eles que mais do que quaisquer outros concernem à aspiração do mago. Como Tiphareth é a esfera da beleza e da harmonia, bem como a “casa da alma”, os deuses tradicionalmente associados a essa Sephira são, de modo peculiar, simbolizadores e representativos da alma glorificada, ou o Santo Anjo Guardião. Dionísio, Osíris, Mitra e muitos outros são todos tipos de imortalidade, beleza e quilíbrio.
Maurice Maeterlinck sintetizou esplendidamente toda a posição filosófica a este respeito. “Dionísio” diz ele, “...é Osíris, Krishna, Buda; ele é todas as encarnações divinas; é o deus que desce ao homem, ou melhor, manifesta a si mesmo no homem; ele é morte, temporária e ilusória, e renascimento, real e imortal; é a união temporária com o divino que não é senão o prelúdio da união final, o ciclo infindável do eterno tornar-se.”
As divindades típicas de Tiphareth, por conseguinte, representam a alma iluminada, exaltada mediante o sofrimento, aprimorada mediante a provação e ressurgida em glória e triunfo. Pode-se supor que Osíris seja distintamente representante dessas divindades rejuvenescentes, e há evidências favoráveis ao fato de desde o início Osíris ter sido para os egípcios o homem-deus que sofreu e morreu, e ressuscitou para ser rei do domínio espiritual.
Os egípcios acreditavam que podiam herdar a vida eterna como ele fizera visto que o que fora feito pelos deuses para ele, fora feito para eles, o que supria a base racional para a execução do chamado ritual dramático. Celebravam rituais de maneira a poderem compelir ou persuadir Osíris e os deuses que haviam produzido sua ressurreição (a saber, Thoth, “o senhor das palavras divinas, o escriba dos deuses”, Ísis, que empregava as palavras mágicas que Thoth lhe concedera e Hórus e os demais deuses que realizaram os ritos que produziram a ressurreição de Osíris) a atuar a seu favor tal como tinham atuado a favor do deus.
A veneração de Mitra e Dionísio emerge da mesma raiz básica. Liga-se, também, ao triunfo espiritual do homem-deus e o retorno do deus-Sol que, como um símbolo da alma aperfeiçoada, entrou na consciência humana do ser humano, e tendo iluminado a mente e redimido as trevas de sua vida, torna o espírito aprisionado leve e jubiloso.
Krishna, igualmente, é um símbolo do homem-deus, pois nele espírito e matéria foram equilibrados, e se convertendo num avatar, a morada terrestre do espírito universal, ele resumiu numa personalidade humana as qualidades duplas de um deus, imortal e estático, juntamente com todas as características típicas da espécie humana.
O Sol é também atribuído a Tiphareth. Assim, Ra – incluindo Tum e Kephra, o sol poente e da meia-noite – pertence a essa série de deuses. A concepção do sol era tão santa para o egípcios que eles concederam a Ra os atributos de luz e vida divinas; ele era a personificação do correto, da verdade, bondade e, conseqüentemente, o destruidor das trevas, da noite, da perversidade e do mal.
Suas relações com Osíris, que era parte deus, parte homem e a causa e tipo de imortalidade para a humanidade, eram de imediato aquelas de um deus, um pai e um igual. Era em Ra que algumas das mais nobres concepções religiosas dos egípcios se concentravam e de deus solar, o doador do sustento e da vitalidade, tanto físicos quanto espirituais, aos habitantes da Terra, ele se tornou identificado a Amon, o poder criador oculto que dera origem a todo o universo manifesto.
A natureza de Osíris é bem conhecida nas lendas. Ele ensinou como usar o cereal e a cultivar a uva aos homens, sendo que nessa última fase é claramente identificado com Dionísio-Baco, o deus da vitalidade transbordante e dos êxtases para os gregos. Com o tempo Osíris passou a ser considerado o rei dos mortos e o guia das almas saindo das trevas da terra para o domínio venturoso onde, conforme sua teologia, as almas gozariam da visão plena da divindade, sem restrições. Aquele que partiu desta vida, se a vida fora bem vivida, é de uma maneira mística identificado com Osíris. Na vida do deus ele também não desempenha papel sem significação.
Com o nome de Iacos, o irmão ou noivo de Perséfone, teve sua participação com ela e Deméter nos ritos de Elêusis. Pode ser interessante salientar de passagem que Perséfone é uma atribuição do Reino, denominado no Zohar a Virgem, a Noiva do Filho que está em Tiphareth. Foi esse benevolente jovem Dionísio, a divindade sofredora e transformada, de imediato evanescente e perpétuo, morrendo e irrompendo novamente para uma nova vida espiritual que foi a principal divindade dos poetas e místicos da seita chamada órfica, em cujos mistérios a alma e seu destino quando libertada do corpo se tornou o objeto preponderante.
Um deus similar, expressando a mesma idéia de equilíbrio espiritual e transformação, um deus que possui características quase idênticas às de Dionísio, era Mitra, o deus persa da luz, a luz do corpo e a luz da alma. Tipificava a força brilhante do Sol que, infalivelmente, conquista dia após dia e ano após ano os poderes das trevas e seus terrores.
Mitra, comumente venerado numa caverna que, originalmente talvez representando o recesso sob a terra onde se supunha que o sol à noite se ocultava, passou a significar para os adoradores devotos o abismo da encarnação dentro do qual a alma necessita descer. E então, como o próprio deus, eles poderiam ascender, purificados por muitas provas e sofrimentos com glória e exaltação.
A deusa Hathor, bem como Afrodite e Deméter, estão associadas à Sephira Netzach, Vitória. Nos remotos tempos do Egito, Hathor era tida como uma deusa cósmica e acreditava-se terem elas sido, como a deusa-vaca, a personificação do poder gerador da natureza que se mantinha perpetuamente concebendo e criando, produzindo e conservando todas as coisas. Ela era a “mãe de seu pai e a filha de seu filho”, o que de chofre recorda a fórmula tradicional do Tetragrammaton.
Parece ter havido muita conexão entre ela e Ísis e Nuit, a rainha e personificação do espaço. Já mencionamos a lenda segundo a qual Hórus matava Ísis cuja cabeça é transformada por Thoth na cabeça de uma vaca, a cabeça de Hathor. Isso era sugerido para inferir a transformação evolucionária das energias geradoras cósmicas de Ísis de acima do Abismo para uma esfera mais mundana de manifestação. Há várias formas que a retratam, a mais freqüente sendo a de uma vaca.
Às vezes, Hathor é representada como uma mulher com um par de cornos dentro dos quais repousa o disco solar, outras com uma tiara de abutre à frente da qual está a serpente Uraeus encimada por cinco outras Uraei. Na parte posterior de seu pescoço é usualmente encontrado um símbolo que significa alegria e prazer, e às suas costas existe também uma espécie de xairel com um desenho linear, e o conjunto de seu corpo é por vezes marcado por cruzes, o que pretende provavelmente representar estrelas.
Nessa última retratação, ela indubitavelmente representa Nuit de cujos seios, se diz, o leite das estrelas flui. Ela representava, como Hathor, não apenas o que era verdadeiro como também o que era bom, e tudo o que é mais excelente na mulher como esposa, mãe e filha. Era também a deusa patrona de todos os cantores, dançarinos e foliões de todos os tipos, das mulheres belas e do amor, dos artistas e das obras de arte. É nessa associação que ela é comparável com Afrodite, a dama do amor. Como equivalente a Deméter, ela significa a fecundidade aparentemente inesgotável, a geração de plantas e animais sucedendo-se entre si na terra, à terra tendo que retornar. Era sem dúvida como a deusa fértil da vegetação e agricultura que ela era venerada, particularmente porque os antigos consideravam o cultivo e o desenvolvimento como um ato de amor.
Hermes e Anúbis correspondem a Hod, a Glória. Hermes é um deus intelectual e representa num grau muito inferior as qualidades de Thoth. Enquanto esse último é uma divindade cósmica e transcendental, Hermes é um deus terrestre, descrito como inventor da astrologia e da geometria, da medicina e da botânica, organizador do governo e instaurador da veneração dos deuses; inventou algarismos e as letra do alfabeto e as artes da leitura, escrita e oratória em todos seus ramos.
Era também encarregado de conduzir as sombras dos mortos do mundo superior para o inferior. Aqui ele é associado na idéia com Anúbis ou Anpu, o deus de cabeça de chacal dos egípcios, havendo também a combinação grega desses dois nomes em Hermanúbis. A cabeça que constituiu o tipo e símbolo de Anúbis foi a de chacal. Isso parece provar, de acordo com Budge, que nos tempos primitivos Anúbis era meramente o deus-chacal associado aos mortos, simplesmente porque o chacal era geralmente visto rondando pelos túmulos.
Mas ele pode ser, adicionalmente, concebido como o deus cinocéfalo. O cão é vigia e guardião, função na qual Anúbis é retratado no Tuat. Por analogia, representa a razão no homem, que é também a guardiã da consciência humana, vigiando impressões e reações relativamente ao mundo exterior.
Segundo a tradição, Anúbis foi o deus que embalsamou o corpo de Osíris e que o envolveu com as faixas de linho feitas por Ísis. Com base na leitura das várias passagens de O livro dos mortos,fica evidente que Anúbis era um grande deus no mundo inferior, sendo que sua posição e importância parecem ter sido tão grandes quanto as de Osíris.
No cena do julgamento no Tuat, Anúbis, o vigia, parece atuar para Osíris, com o qual está intimamente vinculado, pois compete a ele a tarefa de examinar o fiel da grande balança e zelar para que o eixo esteja exatamente horizontal.
A deusa Bast ou Pasht, que é a divindade que corresponde a Yesod, o Fundamento, é geralmente representada sob a forma de uma mulher com cabeça de gato. Por vezes, tem também a cabeça de uma leoa encimada por uma serpente, segurando na mão direita um sistro e na esquerda uma égide encimada pela cabeça ou de um gato ou de uma leoa.
Ela era uma personificação da lua, especialmente na medida em que Khensu, seu filho, era também um deus lunar. Com a cabeça de uma leoa, usualmente pintada de verde, simbolizava a luz do sol, mas quando representada com cabeça de gato, sua ligação com a lua é indiscutível.
Vinculada à esfera do Fundamento, expressando o aspecto duplo da luz astral, não era apenas Bast, mas Shu. Mudança e estabilidade são as duas características paradoxais daquela luz, Bast exprimindo o aspecto lunar de mudança e fluxo perpétuo, a idéia de estabilidade e de firme fundamento das coisas sendo expressa sob a forma de Shu.
Em sua capacidade de sustentador do céu há um mito interessante. Quando o grande deus Ra governava os deuses e os homens, a humanidade na Terra começou a proferir palavras de sedição contra ele, fazendo com que ele se determinasse a destruí-la. Convocando vários deuses à conferência, por sugestão de Nuit ele incumbiu Hathor da execução da destruição universal dos homens. Logo depois disso, ele se aborreceu da própria Terra, e tendo Nuit assumido a forma de uma vaca, Ra sentou-se sobre seu dorso. Não demorou para que a vaca principiasse a cambalear e tremer devido à elevação acima da Terra, e assim foi ordenado que Shu a sustentasse e a erguesse no céu.
Quando Shu tomou sua posição sob a vaca e sustinha seu corpo, os céus acima e a Terra abaixo vieram a ser e as quatro pernas da vaca se tornaram os quatro suportes dos céus, os quatro pontos cardeais. E assim teve o deus Geb existência independente.
Seb (ou Geb) era o deus da terra e a terra formava seu corpo e era chamada de Casa de Seb, tal como o ar era chamado de Casa de Shu e os céus de Casa de Ra. Seb é representado como um homem que usa a coroa Ateph e às vezes um ganso e um falo são acrescidos. Correspondendo a Malkuth, o Reino, Seb representa a fertilidade da superfície da terra e na mitologia do mundo inferior ele desempenhava um papel proeminente, retendo aqueles entre os mortos que não eram capazes de passar a Tuat.
A deusa grega da terra similar ao egípcio Seb era Perséfone, conhecida entre os romanos pelo nome de Prosérpina.
A história de sua violação por Hades e seu aprisionamento forçado sob a terra é demasiado conhecida para que precisemos mencioná-la aqui. Alguns autores a interpretam como a extinção no corpo e o subsequente renascimento na alma, enquanto que outros vêem em Prosérpina um simples mito do culto à vegetação, a deusa sendo o grão empregado como semente que permanece oculto no solo parte do ano, e quando ele retorna à sua mãe Deméter, é como o cereal nascendo da terra, o sustento e alimento do homem e dos animais.
Embora com isso devamos concluir o exame dos deuses, na medida em que é possível abordar esse assunto aqui, nunca é demais repetir que essa matéria sumamente complexa deve ser muito bem estudada em seus vários aspectos e vinculações filosóficas antes de se empreender o trabalho prático de invocação. Antes que possa haver qualquer grau de sucesso efetivo na invocação e ao estabelecer firmemente uma união e comunhão com os deuses, deverá o teurgo estar bem familiarizado, ao menos teoricamente, com a natureza dos deuses, que princípios ou funções eles desempenham na economia natural e universal e o que eles são realmente.
Todas as lendas e mitos dos povos antigos vinculadas aos deuses revelam um relato valioso a respeito da verdadeira natureza deles, se os examinarmos com um pouco de discernimento acompanhado de uma compreensão dos fundamentos que formam a base da Cabala. O teurgo deve se esforçar para compreender na medida do possível porque se adotam as formas de animais como máscaras dos deuses, e visto que existem muitas interpretações a respeito, deverá ser feita uma síntese daquelas que parecem as mais prováveis e mais sensatas. E devo acrescentar a título de sugestão que um estudo das representações pictóricas dos deuses se mostrará bastante recompensador.
É aconselhável que o aprendiz interessado não deixe de familiarizar-se inteiramente com as formas artísticas convencionais pelas quais os deuses são representados.
(Israel Regardie - Continua)