A MULHER-PÁSSARO
Era uma vez uma mulher na aldeia Caiapó que sempre sentia medo.
Certo dia, o marido levou-a consigo para a floresta. Caminharam o dia inteiro; em suas andanças não encontraram nenhum fio de água e, portanto não puderam beber.
Quando começou a anoitecer, procuraram um lugar para acampar. Cataram madeira, fizeram fogo e, das folhas, prepararam sua cama.
Como não houvesse água nas proximidades do acampamento sofreram sede atroz.
Aí a mulher falou ao marido:
-"Vá procurar água, para que eu possa bebê-la."
Então, o homem foi à procura da água. Depois de certo tempo, de fato, logrou encontrar a água e bebeu, bebeu, até matar a sua sede. Porém, não levou água na cabaça.
-"Onde está a água?", perguntou a mulher.
-"Já ouvi o grasnar dos sapos e das rãs, que lá vivem."
O homem se fez de bobo.
-"Nao sei não', mentiu, "não encontrei água para beber e trazer para você".
Enfim os dois deitam para dormir.
O marido cruelmente egoísta deu as costas à mulher, sem se preocupar com suas torturas. Seus lábios, a boca, a garganta, ardiam completamente ressecados. Uma sede lancinante atormentava-a e seus pensamentos giravam apenas em torno de água, água, água.
Ela não conseguiu dormir.
De noite, enquanto o marido dormia sono profundo, a cabeça da mulher desprendeu-se do corpo. Entretanto, o corpo permaneceu ao lado do marido, de modo que ele nada percebia daquilo que estava se passando.
A cabeça da mulher distanciou-se, pulando e rolando em busca de água. E, por fim, acabou encontrando água, que bebeu até matar a sede.
Em seguida voltou para o acampamento, onde ajustou-se ao corpo do qual havia se separado.
Ao raiar do dia, a mulher falou para o marido:
-"Você mentiu, pois lá", e ela apontou na direção, "há água em abundância".
O marido continuou fingindo e mentiu:
-"Não sei nada disso, não encontrei água".
-"Mas, eu mesma bebi daquela água", insistiu a mulher.
O marido levantou-se e levou-a de volta para a aldeia. Desde então, a mulher deixou de ser medrosa, mas conservou o respeito pelo marido.
Certo dia, um dos companheiros, cuja mulher também era medrosa, perguntou:
-"O que você fez, para sua mulher perder o medo?"
O indagado respondeu;
"Eu e minha mulher fomos dormir na floresta e eu a deixei passar sede..." E então contou o ocorrido.
-"Vou fazer o mesmo", resolveu o companheiro e, no dia seguinte, também foi para as matas, levando a esposa.
Quando o sol estava baixo, procuraram um pequeno lugar para acampar. Era um lugar bonito, bem no meio do mato, só que não havia água. Acomodaram algumas folhas para servirem de cama e fizeram fogo.
Sentindo sede, a mulher falou ao esposo:
-"Vá procurar água para que eu possa beber."
Ele foi e encontrou bastante para matar a sua sede, mas não levou nada para a mulher.
Quando voltou a esposa perguntou avidamente:
-"Onde está a água?"
O marido respondeu:
-"Procurei por toda parte, porém não há água por aqui."
-"E o que vou beber agora?", lamentou-se a mulher desesperada.
-"Sei lá eu", foi a resposta brutal do marido.
Daí a mulher ouviu ao longe o grasnar de sapos e rãs.
-"Escute! fique quieto! estou ouvindo o grasnar de sapos e rãs", falou ela.
-"Bobagem", retrucou ele, "por aí não há água."
-"Você está mentindo", xingou a mulher, zangada; "hoje ainda vou beber água".
-"Você pode falar o que quiser, por aí não há água".
Após essa briga inútil, os dois foram dormir.
Mas a sede atroz não deixava a mulher pegar no sono, pois ela sentia a boca e a garganta arderem como fogo. Morrendo de sede, sua cabeça desligou-se do corpo e foi rolando e pulando, em busca de água, acabando por encontrá-la; rodou até o fio de água e bebeu e bebeu, até matar completamente a sede. Em seguida voltou.
Ao aproximar-se do acampamento, rolando e pulando, fez sussurar as folhas secas, caídas no chão.
Aí, o marido assustado acordou. Pensou tratar-se de alguma fera, um espírito, ou um ser inimigo, visando assaltá-lo. Soprou então o fogo até as chamas subirem e a fumaça soltar.
Isto, por sua vez, assustou a cabeça da mulher, que, de medo, foi-se embora, pulando, enquanto o corpo inerte continuou deitado ao lado do marido.
No entanto, a cabeça deveria unir-se ao corpo novamente e, por isso, logo mais retornou para perto do marido. Ao aproximar-se, voltou a causar o crepitar das folhas secas no chão, deixando o esposo sobressaltado. Este voltou a soprar ofogo, fazendo subir as chamas e a fumaça.
Assustada e apavorada, a cabeça da mulher fugiu, pulando, saltando e rolando para longe.
E desta vez não voltou mais.
Quando do dia clareou, a cabeça da mulher transformou-se em um sabiá.
Este pássaro gosta de voar à noite; seu vôo é inquieto e nervoso, vai pousando e voando de cá para lá, como se estivesse procurando algo. Por vezes, o pássaro levanta vôo, como se estivesse terrivelmente assustado com alguma coisa, igual à cabeça da mulher que ficava apavorada, quando o marido soprava a fogueira.
Seu grito é um lamento lúgubre:"bu,bu,bu", de tom triste, como o foi o destino da infeliz, que continua vivendo sob a forma de pássaro.
O Mito da Mulher-Pássaro revela as qualidades másculas do homem indígena, querendo tirar da esposa o pavor de todas as coisas terríveis, ensinando-lhe apenas medo e respeito a ele próprio.
A força do herói cultural e de sua esposa tem sucesso e leva a uma nova ordem no mundo.
Na crença indígena, o casal da era primitiva, sob a direção incontestável do marido, corresponde à atual ordem das coisas. O epígono do herói cultural, no entanto, não tem tais qualidades, porém até com esse homem de índole menos marcante, sua dureza e crueldade, bem como seu fracasso, continuam ligados à criação do mundo.
Da cabeça errante da esposa surge uma nova espécie animal, o bacurau, pássaro da noite.
Segundo a primeira parte do mito, o marido consegue provar a validade de seu método educativo. Logra que sua mulher perca o pavor, até os horrores da noite, e passa a ter uma esposa valente, que tem medo apenas do marido.
Conforme relata o mito em sua segunda parte, outro homem dos primeiros tempos pretende imitar tal obra educacional, com relação à esposa.
Tudo parecia ocorrer exatamente igual, mas quando a cabeça da segunda mulher rola de volta para reintegrar-se ao corpo, as folhas secas no chão crepitam, emitindo um barulho sinistro. O marido assusta-se e sopra o fogo, fazendo subir as chamas e fumaça.
Por duas vezes a cabeça tenta o feito, mas é afugentada pelas chamas altas do fogo. Acaba então transformando-se em um pássaro esvoaçante, que solta gritos de lamento.
Assim é a mitologia indígena, sempre deixando transparecer formas de conduta, relacionadas com complexos de problemas, que no entanto, são apenas esboçados, aparecendo à margem dos acontecimentos.
Alguns nexos aparentemente carecem de força emocional, são muito inexpressivos e não se prestam à dramatização. Entretanto, talvez isso também seja uma característica da concepção do mundo indígena, focalizando preferencialmente acontecimentos terríveis, as lutas e as ameaças à sobrevivência.
Rosane Volpatto