BIOGRAFIA DE ALLAN KARDEC
ALLAN KARDEC
SUA VIDA E SUA OBRA
ANDRÉ DUMAS
PENSE - PENSAMENTO SOCIAL E
SPÍRITA
www.viasantos.com/pense
ANDRÉ DUMAS
Secretário da Union des Sociétés Francophones
pour l'Investigation Psyquique et l'Étude de la
Survivance (USFIPES) Paris - França
ESTUDOS PSÍQUICOS EDITORA
Titulo original:
Allan Kardec, sa vie et son oeuvre
Tradução de:
Maria Raquel Duarte dos Santos
Direitos reservados em língua portuguesa
Edição de:
Estudos Psíquicos Editora
Rua do Salitre, 149, 1°, Dir.
1200 Lisboa - Portugal
Tel. 556605
Composição e impressão:
Tipografia. Marques & Monteiro, Lda.
R. Diogo Rodrigues, 13 – Montijo
Depósito Legal n.° 3486/83
ALLAN KARDEC, SUA VIDA E SUA OBRA -
André Dumas
PENSE
ÍNDICE
Apresentação 3
Allan Kardec, sua Vida e sua Obra 5
O Pedagogo 6
Um Investigador Prudente 7
Precursor da Parapsicologia 11
A Matéria e o Fluido Universal 16
Allan Kardec Evolucionista 24
Allan Kardec e as Religiões 28
O Método de Allan Kardec 34
ALLAN KARDEC, SUA VIDA E SUA OBRA - André Dumas PENSE
APRESENTAÇÃO
André Dumas, escritor e dirigente espírita francês, foi presidente da
União Espírita Francesa (UEF) e diretor da Revista Espírita na década
de 1970. Por muitos anos administrou o legado de Kardec e seus seguidores.
No entanto, é mais lembrado pela mudança do nome desta tradicional
instituição espírita, em 1976: União Científica Francofônica para a
Investigação Psíquica e o Estudo da Sobrevivência da Alma (USFIPES),
em vez de UEF.
Nesse mesmo ano, para desagrado dos espíritas, principalmente brasileiros,
a tradicional revista fundada por Kardec deixa de circular. Em seu lugar
Dumas lança um periódico denominado Renaître 2000. Segundo ele, as
palavras espírita e espiritismo se descaracterizaram em seu verdadeiro
significado, vinculando-se ao misticismo, ao religiosismo. Por isso a
mudança.
O resultado foi a completa marginalização de Dumas e a briga jurídica com
a União Espírita Francesa e Francofônica, fundada por Roger Perez em
1985, pelos direitos da Revista Espírita. Dois anos depois a instituição obtém
sentença judicial favorável a Perez e a revista volta a circular novamente
após 12 anos de interrupção, mas agora com um conteúdo mais religioso e
doutrinante.
Apesar de ser lembrado como uma espécie de traidor, de Judas da causa
espírita, Dumas foi um dirigente e um intelectual espírita importante na história
do Espiritismo francês. Sua visão, laica e filosófica, destoava da grande
maioria dos espíritas, notadamente os brasileiros, afeitos a concepções
religiosas e sectárias, influenciados em demasia pelos cânones do cristianismo.
Além desta obra, Dumas escreveu La science de l'âme: initiation méthodique à
l'étude des phénomènes supranormaux et aux théories de la métapsychologie,
inédita no Brasil, e vários artigos para a Revista Espírita. André Dumas
desencarnou em 1997.
Este ensaio biográfico que o Pense lança com exclusividade, em edição
digital, foi distribuído em 1983 na forma de opúsculo, como um suplemento,
uma separata da revista espírita portuguesa Estudos Psíquicos. A tradução é
de Maria Raquel Duarte Santos, esposa de Isidoro Duarte Santos, fundador
do periódico; ambos com eminente atuação no movimento espírita português,
ao tempo da ditadura de António Salazar.
ALLAN KARDEC,
SUA VIDA E SUA OBRA
Hippolite Léon Denizard Rivail, que se tornou conhecido
pelo pseudônimo céltico de Allan Kardec, nasceu
em Lyon (França) a 3 de outubro de 1804,
oriundo duma família de advogados e magistrados.
Foi, portanto, num ambiente marcado pelo estudo
da ciência e da filosofia que decorreu a sua adolescência.
No entanto, a época em que viveu era
pouco propícia ao exercício do livre-pensamento.
O Império havia proibido todos os ensinamentos
que pudessem contribuir para despertar e desenvolver
o espírito crítico e, principalmente, o ensinoda filosofia (1), culminando com autos-de-fé
em praças públicas das obras de Rousseau e Voltaire.
As famílias mais abastadas enviavam seus
filhos para fora de França, a fim de fazerem seus
estudos, sendo assim que Léon Rivail foi enviado
para Yverdon (Suíça), onde frequentou o Instituto
Henri Pestalozzi, iniciador da pedagogia moderna,
cujos ensinamentos se baseiam no desenvolvimento
simultâneo das qualidades físicas e intelectuais e
no despertar gradual da criança segundo a sua
ordem natural.
(1) Albert Malet, História de França, de 1779 a 1875.
Foi na Escola de Pestalozzi, onde chegou a ser
colaborador, que em Léon Rivail se desenvolveram
as qualidades que mais tarde fariam dele um homem
de ciência e um livre-pensador. Além disso
e embora nascido na religião católica e sofrendo
a influência do meio em que vivia — um país protestante—,
bem cedo concebeu a ideia de uma reforma
baseada na unificação das crenças.
Quando Léon Denizard voltou a Paris, a fim de
fundar o Instituto Técnico estruturado no método
de Pestalozzi, já havia adquirido uma sólida formação
científica e moral, falando numerosas línguas,
assegurando-nos um dos seus biógrafos que
era "Doutor em Medicina, tendo feito todos os seus
estudos médicos e apresentado brilhantemente a
sua tese." (2)
(2) Henri Sausse: Biografia de Allan Kardec. Esta
afirmação é posta em dúvida por André Moreil: A Vida e Obra
de Allan Kardec. Capítulo II, 6, II "O Estudante".
O PEDAGOGO
Léon Rivail publicou numerosos trabalhos
didáticos:
— Plano proposto para o aperfeiçoamento da
instrução pública (1828);
— Curso Prático e Teórico de Aritmética (1829),
a fim de ser usado pelas mães de família e
professores após o método de Pestalozzi;
— Gramática Francesa Clássica (1831).
No mesmo ano foi doutorado pela Academia Real
de Assis, com um estudo sobre o tema:
— Qual o sistema de estudo que mais se harmoniza
com as necessidades da época?
De 1835 a 1840, organiza em sua casa, situada na
Rua de Sèvres, cursos gratuitos de química, física,
astronomia e anatomia comparada.
Em 1848 publica:
— Catecismo gramatical de língua francesa.
Em 1849, dirige no Licée Polimathique cursos defilosofia, astronomia, química e física.
UM INVESTIGADOR PRUDENTE
Contrariando numerosas opiniões, aquele que viria
a ser Allan Kardec era um homem ponderado,
prudente e pouco dado a entusiasmos irrefletidos.
Após a sua juventude, familiarizou-se com o magnetismo
e sonambulismo, prosseguindo seus estudos
paralelamente com seus trabalhos pedagógicos
e cursos científicos que dirigia no liceu. Quando
ouviu falar da existência de mesas girantes e falantes,
teve a seguinte exclamação: "histórias para
adormecer". No entanto, isto não o impediu de
mais tarde se interessar e interrogar sobre o assunto.
Passou-se em 1854. Tinha ele 50 anos. As
sessões a que fora convidado a assistir persuadiram-
no de que, sob a aparente futilidade da "espécie
de diversão que faziam com aqueles fenômenos",
havia "algo de sério e como que a revelação
duma nova lei", que a si mesmo prometeu investigar
a fundo.
No entanto, ele continuava prudente:
Apliquei a esta nova ciência, como sempre
fizera, o método da experimentação: jamai
utilizei teorias preconcebidas; observava atentamente,
comparava e deduzia as consequências
e através dos efeitos procuro remontar
às causas pela dedução e o encadeamento lógico
dos fatos, admitindo somente qualquer
explicação como válida, quando esta resolver
todas as dificuldades da questão... vislumbro
naqueles fenômenos a chave do problema, tão
obscuro quanto controverso, do passado e do
futuro da humanidade, a solução daquilo que
tenho procurado toda a minha vida; em suma,
uma total revolução nas ideias e nas crenças;
era, portanto, necessário agir com circunspecção,
não levianamente; ser positivista e
não idealista, para não me deixar arrastar
por ilusões. (3)
Não compartilhava do entusiasmo de alguns experimentadores,
entre eles Victorien Sardou, o editor
Didier e René Taillandier, membro da Academia
Francesa, os quais, após cinco anos de reuniões, lhe
solicitaram coligisse e organizasse, numa síntese,
todas as comunicações contidas em cinquenta cadernos.
Ele, porém, recusou e é através duma mensagem
mediúnica pessoal, assegurando-lhe o apoio
do mundo invisível, que se decidiu a aceitar tão
ingrata incumbência.
Examinando estas mensagens, a fim de as coligir,
as perguntas científicas e filosóficas que interpos
através de vários médiuns e das pesquisas experimentais,
levaram Rivail à convicção da realidade
dum mundo invisível; no entanto, para ele, os espí-
(3) Allan Kardec: Minha Primeira Iniciação
no Espiritismo - Livro das Previsões - Obras Póstumas).
ritos, não sendo necessariamente os detentores da
Verdade, nada mais são do que a alma dos homens,
sendo seu saber condicionado ao nível da sua evolução,
"cada um de nós pode ensinar alguma coisa,
ao passo que individualmente nenhum nos poderia
ter inteirado de tudo, cabe ao observador formular
o conjunto com o auxílio dos dados provenientes
de várias fontes, comparados, coordenados e controlados
uns pelos outros".
Os espíritos foram para
mim — dizia o futuro Allan Kardec — "desde o menorzinho
até ao maior, veículos de informação e
não reveladores predestinados".
É da síntese dos resultados desta investigação
— da sua "sondagem", em suma — sobre a opinião
filosófica em intercâmbio com o lado de lá, mais
precisamente o lado de lá europeu em 1857, como
diremos, que nasceu O Livro dos Espíritos.
O professor Léon Denizard Rivail, bastante conhecido
pelos seus trabalhos pedagógicos, publicou
esta obra com o objetivo de esclarecer um assunto
tão controverso e estabelecer em bases concretas
todo o esforço que lhe foi exigido, e sem qualquer
evidência (4), razão por que a d o t o u o pseudônimo
de Allan Kardec, seu guia espiritual e cuja existência
remontava dos tempos dos druidas.
(4) Revista Espirita, junho de 1865, pp. 164-165.
No entanto, o sucesso desta obra obrigou o batalhador
a renunciar ao desejo de retirada. "Prontamente
ao trabalho", dizia ele, "entendo dever prosseguir".
Impulsionando e orientando o movimento
de interesse que despertara, lança a Revista Espirita,
cujo primeiro número aparece a público em
1º de janeiro de 1858, funda a Sociedade Parisiense
de Estudos Espiritas e publica dois novos trabalhos
que as circunstâncias de momento exigiam.
PRECURSOR DA
PARAPSICOLOGIA
Ao mesmo tempo que definia o espiritismo como
uma teoria filosófica, Allan Kardec criava-lhe
bases científicas, podendo ser considerado como o
verdadeiro fundador do que hoje em dia se chama
"metapsíquica" ou "parapsicologia", embora
grande parte dos especialistas de outros ramos de
investigação científica se esforçassem por minimizar
as implicações teóricas decorrentes de tais fatos.
É o prof. Charles Richet que, em seu Tratado
de Metapsíquica, afirma: quanto às célebres experiências
de William Crookes em 1871, foi Allan
Kardec o homem que "exerceu a mais intensa influência,
abrindo rasgo profundo na ciência metapsíquica.
Sua obra não é apenas uma teoria grandiosa
e homogênea, mas também um imponente repositório
de fatos." (5)
Com efeito, Allan Kardec estudou e classificou
todas as categorias de fenômenos paranormais, ba-
(5) Charles Richet: Tratado de Metapsíquica, l i v ro 1, § 3.°,
p. 334 (Alcan, 1923).
seando a sua teoria, tal como já o havia definido
nas diversas modalidades das faculdades mediúnicas:
O estudo das propriedades do perispírito,
dos fluidos espirituais e dos atributos fisiológicos
da alma, abre novos horizontes à ciência
e fornece a chave para a compreensão de
grande número de fenômenos até então incompreendidos,
por desconhecimento da lei
que os rege, fenômenos negados pelo materialismo,
por se ligarem à espiritualidade, e
qualificados, segundo as crenças, de milagres
ou sortilégios. Tais são, entre outros, os fenômenos
da dupla visão, da visão à distância,
do sonambulismo natural e artificial, dos efeitos
psíquicos da catalepsia e da letargia, da
presciência, dos pressentimentos, das aparições,
das transfigurações, da transmissão de
pensamento, da fascinação, das curas instantâneas,
das obsessões e possessões etc. Demonstrando
que esses fenômenos se baseiam
em leis naturais, assim como os fenômenos
elétricos e as condições normais em que se
podem reproduzir, o espiritismo fez derrocar
o reino do maravilhoso e do sobrenatural,
e consequentemente a fonte da maior
parte das superstições, além de outras coisas
consideradas por alguns como quiméricas,
impedindo também de se crer em muitas outras
cuja possibilidade e escassez ele demonstra. (6)
(6) Allan Kardec: A Gênese, cap. I 40 (Derby Livros).
A leitura de O Livro dos Médiuns, de A Gênese
e de Obras Póstumas, revela-nos toda a elaboração,
por Allan Kardec, das bases científicas da parapsicologia
moderna; ele conhecia a telepatia, que
designava por "telegrafia espiritual", a fotografia
do pensamento, a clarividência, a qual denominava
"lucidez", a precognição (para a qual tentou uma
explicação racional), as aparições de vivos, dos fenômenos
de bilocação (out-of-body, assim dizem
os parapsicólogos anglo-americanos) e que designam
pelo termo de "bicorporeidade", e os fantasmas
materializados, a que deu o nome de "agêneres".
Também não ignorava, tão pouco, a ideoplastia
(modelagem da matéria, sutil ou completa, pelo
pensamento), que tem um papel importante na
ectoplasmia e nas teorias metapsíquicas; deu numerosos
exemplos das descobertas "fluídicas" do pensamento,
observadas no "laboratório do mundo invisível."
Num estudo publicado na Revista Espírita (julho
de 1861), Allan Kardec escrevia:
Não se tendo em conta o elemento espiritual,
a ciência encontra-se na impossibilidade
de explicar uma série de fenômenos, caindo
no absurdo por querer considerar tudo como
matéria. É, principalmente, na medicina que
o elemento espiritual tem um papel impor-
(7) Allan Kardec: Livro dos Médiuns, cap. VII (Derby Livros).
tante; quando os médicos não o têm em conta
eles se afastam do caminho, onde muitas vezes
poderão encontrar a luz que os guiará
mais seguramente no diagnóstico e no tratamento
das doenças.
Poderá não ter sido ele, de fato, o detentor da
verdade fundamental que hoje em dia se pretende
demonstrar com a psicoterapia, a psicanálise, o método
de Coué, a medicina psicossomática e a sofrologia,
sabendo que aquilo a que chamamos "subconsciente",
a criptopsíquica (como dizia Charles
Richet), é a parte oculta do ser que exerce uma
influência permanente no nosso equilíbrio físico e
mental e no nosso comportamento cotidiano?
Não será isso, também, uma forte intuição dos
"circuitos de energia" que o Ocidente só muito recentemente
conheceu e que está na base da acupuntura
chinesa? E dos diagnósticos médicos praticados
pelos investigadores soviéticos para a análise
das "auras" obtidos com a ajuda dos processos
foto-eletrônicos kirlian?
A influência do subconsciente exerce-se igualmente
nos fenômenos paranormais e nas diversas formas
de mediunidade, como o demonstrou Gabriel
Delanne (8) e Allan Kardec jamais o ignorou.
Apesar do estudo da mediunidade como
parte integrante do espiritismo ainda estar
longe de se completar, estamos também longe
dos tempos em que bastava crer-se no recebi-
(8) Gabriel Delanne: Investigações sobre a Mediunidade
(Derby Livros).
mento dum impulso mecânico para nos considerarmos
médiuns e estarmos aptos a receber
as comunicações dos espíritos. O progresso
da ciência espirita, que é enriquecido
em cada dia através de novas observações,
demonstra-nos todavia as diversas causas e
sensíveis influências, das quais não podemos
duvidar e que com todos os seus benefícios
nos advém do mundo espiritual. (9)
(9) Revista Espirita, maio de 1865, pág. 155.
A MATÉRIA E O
FLUIDO UNIVERSAL
A noção de "fluido" foi elaborada no século 17
e no início do século 19, pela escola magnética,
com Mesmer, Puységur, Deleuze, Cachagnet e o
Barão Du Potet, pelos investigadores da Reichen
Back e através das experiências de Agenor de Gasparin
(1853) e de Marc Thury (1858) sobre as mesas
girantes.
Na obra de Allan Kardec, o fluido individual
donde provém o "perispírito", elo semimaterial entre
o espírito e o corpo, é uma particularidade do
"fluido cósmico universal". Este corresponde ao
que William Crookes mais tarde apelidou de "protyle".
É a matéria elementar primitiva "da qual
as modificações e transformações constituem as inumeráveis
variedades dos corpos da natureza." (10)
Como princípio elementar universal, oferece
dois estados distintos: o de eterização
ou de imponderabilidade que se pode considerar
como estado normal primitivo, e o de
(10) Allan Kardec: A Gênese, cap. XIV, § 2.
materialização ou de ponderabilidade, que é,
de certo modo, consecutivo àquele. O ponto
intermediário é o da transformação do fluido
em matéria tangível; porém, ainda neste caso,
não há transição brusca, pois podemos considerar
os nossos fluidos imponderáveis como
um termo médio entre dois estados. (11)
Estas linhas, escritas em 1868, demonstram que a
noção de "fluido", segundo Allan Kardec, se integra
num conceito nitidamente "monista", unitário, de
substância universal e constitui uma demarcada antecipação
das teorias energéticas modernas.
Numa outra passagem, ele é também bastante
claro:
A matéria tangível, tendo por elemento primitivo
o fluido cósmico etéreo, ao desagregarse
deve poder voltar ao estado de eterização,
assim como o diamante, o mais duro dos corpos,
se pode volatizar num gás impalpável.
A solidificação da matéria, na realidade, não
passa de um estado transitório do fluido universal,
o qual pode voltar ao seu estado primitivo
quando as condições de coesão cessam
de existir. (12)
Estes estudos de Allan Kardec precedem, curiosamente,
os de Gustave le Bon, publicados em 1906
(11) Allan Kardec: A Gênese, cap. XIV, § 2.
(12) Allan Kardec: A Gênese, cap. XIV, § 6.
e 1907, sobre a "materialização do éter" e a "volta
da matéria ao éter". (13)
Precedem ainda, e em maior número, as experiências
de Fréderic e Irene Juliot-Curie, sobre a
materialização dum "Photo-Gama", corpúsculo de
luz, em duas cargas eléctricas de tipos opostos, ou
seja num "pare" constituinte elementar da matéria.
Allan Kardec parece ainda ter tido a presciência,
trinta anos antes da descoberta por Becquerel, da
rádioatividade:
Quem sabe mesmo se, no estado de tangibilidade,
a matéria não é susceptível de adquirir
uma espécie de eterização que lhe daria
propriedades particulares? (14)
Em O Livro dos Espíritos, publicado em 1857, já
encontramos ensinamentos monistas, atribuídos não
só a Allan Kardec, como também aos seus instrutores
espirituais; segundo estes ensinamentos, a matéria
é formada por "um só elemento primitivo":
Os corpos que considerais simples não são
verdadeiros elementos, mas sim transformações
de matéria primitiva.
As diferentes propriedades de matéria são
modificações que as moléculas elementares
sofrem, por defeito da sua união, em certas
circunstâncias.
(13) Gustave Le Bon: A Evolução da Matéria (1906);
A Evolução das Forças (1907).
(14) Allan Kardec: A Gênese, 1868, cap. XIV, § 6
A unidade de substância é muito claramente enunciada.
Allan Kardec, com a sua ponderação habitual,
acentua:
O oxigênio, o hidrogênio, o azoto, o carbono
e todos os corpos que nós consideramos
simples não são mais que meras modificações
duma substância primitiva. Na impossibilidade
em que ainda nos encontramos de
remontar, a não ser pelo pensamento, a esta
matéria primitiva, esses corpos são para nós
verdadeiros elementos, e podemos, sem maiores
consequências, considerá-los como tais, até
nova ordem.
A possibilidade das transmutações (que se obtêm
nos laboratórios actuais de física atômica) é igualmente
designada como conseqüência normal da unidade
da matéria:
A mesma matéria elementar é susceptível
de experimentar todas as modificações e de
adquirir todas as propriedades?
— Sim, e é isso que se deve entender quando
dizemos que tudo está em tudo.
Quanto a sabermos se isto é exato, "a opinião
dos que não admitem na matéria mais do que dois
elementos essenciais: a força e o movimento, entendendo
que todas as demais propriedades não passam
de efeitos secundários, que variam em conformidade
à intensidade da força e à direcção do movimento",
os instrutores invisíveis respondem afirmat
inativamente, mas insistem na estrutura interna dos
elementos:
Esta opinião é exata. Falta somente acrescentar
que, também, segundo a disposição das
moléculas, como se vê, por exemplo, num
corpo opaco que se pode tornar transparente
e vice-versa.
Quanto à forma das moléculas ele é:
Constante para as moléculas elementares
primitivas, mas variável para as moléculas secundárias,
que são aglomerações das primeiras.
Isso a que chamais moléculas está ainda
longe da molécula elementar. (15)
Esta última consideração dá-nos a conhecer claramente
os constituintes inter-atômicos de hoje em
dia, tais como os electrões, os protões, os neutrões,
demonstrando seguidamente e sem ambiguidade a
afinidade entre a matéria e a eletricidade:
O fluido universal, ou primitivo, ou elementar...
é suscetível de inúmeras combinações:
o que chamais de fluido elétrico, fluido magnético,
são modificações do fluido universal,
que não ê, propriamente dito, senão matéria
mais perfeita, mais sutil e que se pode considerar
independente. (16)
(15) Allan Kardec: O Livro dos Espíritos, 1857, livro I,
cap. II, § 24 a 30.
(16) Allan Kardec: O Livro dos Espíritos, livro I, cap. II, § 27.
A infinita variedade de formas e graus de condensação
da matéria existente no universo tem sido
ao longo dos tempos designada por matéria, pois
entendemos que matéria é tudo aquilo que impressiona
nossos sentidos e é impenetrável:
Do vosso ponto de vista isto é exato, porque
não falais senão do que conheceis; mas
a matéria existe em estados que ignorais.
Pode ser, por exemplo, tão etérea e sutil
que nenhuma impressão vos cause aos sentidos.
Contudo, é sempre matéria, embora não
o seja para vós. (17)
Com efeito, a ciência moderna revela-nos hoje
em dia a existência no universo de estados extremamente
rarefeitos da matéria; assim, a substância
da estrela da Antares é um gás em média mil vezes
mais impalpável do que o ar que respiramos. A densidade
das nebulosas visíveis, como a Orion, é um
milhão de vezes inferior à máxima até hoje conseguida
do vácuo e obtida nos laboratórios terrestres.
Apesar disso, a densidade destas nebulosas é
ainda dez mil vezes superior à das "nuvens cósmicas
provenientes dos nevoeiros que dificultam as observações
astronômicas". (18)
A confirmação científica dos ensinamentos referentes
à matéria recebidos por Allan Kardec, demonstram-
nos ao mesmo tempo a evidente possi-
(17) Allan Kardec: O Livro dos Espíritos, livro I, cap. 11, § 22.
(18) Jetan Tribaud: Energia Atômica e Universo.
bilidade do caráter mais ou menos "fluidico" ou
mais ou menos "tangível" das formas espirituais
materializadas, no decorrer das sessões espiritas.
Em 1905, um investigador nessa data ainda desconhecido,
chamado Albert Einstein, demonstrou
matematicamente a equivalência da matéria e da
energia. Resultando — todas as técnicas "nucleares"
são baseadas neste f a t o — que a matéria é a energia
em movimento e que a massa é em função da
velocidade. São os movimentos extremamente rápidos
das "partículas" da energia dentro dos átomos,
que produzem a massa da matéria.
Sabemos, no entanto, que a energia considerada
até hoje como essencialmente impenetrável, possui
uma massa e que, por exemplo, a energia irradiada
pelo sol proveniente da sua substância, representa
quatro milhões de toneladas de luz. Ora, em O Livro
dos Espíritos lemos: (19)
A ponderabilidade é um atributo essencial
da matéria?
— Da matéria tal como a entendeis, sim;
mas não da matéria considerada como fluido
universal. A matéria etérea e subiil que constitui
esse fluido é para vós imponderável, e
nem por isso deixando de ser princípio da
vossa matéria pesada.
(19) Allan Kardec: O Livro dos Espíritos, 1, cap. II, § 29.
Se substituirmos "fluido", "matéria etérea", por
energia, a resposta está perfeitamente de acordo
com as concepções e conceitos modernos.
Allan Kardec igualmente afirma: "a gravidade é
uma propriedade relativa: fora das esferas de a t r a -
ção dos mundos, não há peso, do mesmo modo que
não há alto nem baixo", bastará substituir "esferas
de atração dos mundos" por "campos de gravidade"
e assim obteremos uma expressão cientificamente
mais exata quanto à linguagem contemporânea.
ALLAN KARDEC
EVOLUCIONISTA
O codificador do espiritismo moderno não foi
somente um precursor no domínio da constituição
energética da matéria, mas também no da biologia.
Ensinou a transformação progressiva das espécies
e a origem animal do homem. Exprimindo-se claramente
a este respeito na sua obra de síntese, A Gênese,
publicada em 1868:
Por pouco que se observe a escala dos seres
vivos do ponto de vista orgânico, reconhece-
se que, desde o líquem até à árvore e
desde o zoofito até ao homem, existe uma
cadeia que se eleva gradativamente sem solução
de continuidade, cujos anéis têm um
ponto de contato com o anel precedente:
acompanhando passo a passo a série dos seres,
diríamos que cada espécie é um aperfeiçoamento,
uma transformação da espécie imediatamente
inferior. Visto que o corpo do
homem está em condições idênticas aos outros
corpos, química e constitucionalmente,
que ele nasce, vive e morre da mesma maneira,
ele deverá ser formado nas mesmas condições.
Ainda que possa ferir o seu orgulho, o homem
tem de se resignar a não ver em seu
corpo material mais do que o último anel da
animalidade na Terra. È este o inexcedível
argumento dos fatos, contra o qual ele protestará
em vão. (20)
Aliás, não foi necessário aguardar 1868 para ele
nos ensinar a doutrina da evolução. A este propósito,
o capitão Bourgés escreveu no seu trabalho
intitulado
Psicologia Transformista, Evolução da
Inteligência: (21)
"No decurso da sua viagem espirita em 1862, Allan
Kardec visitou-nos em Provins, onde nos encontrávamos
em guamição militar. Tivemos a satisfação
de ter o Mestre entre nós, durante alguns dias. Em
suas conversas, ele não escondia a nossa origem
animal, falando-nos do progresso que o espírito tem
de conseguir para chegar à perfeição. Recomendava-
-nos, essencialmente, que aprofundássemos todos os
ramos da ciência, assegurando-nos que através dela
nos elevaríamos e encontraríamos em O Livro dos
Espíritos os elementos que deveríamos conhecer e
abraçar. Assim, em 1868 demos-lhe conta do andamento
dos nossos trabalhos e da descoberta que
julgávamos ter feito nos estudos das obras de
Darwin, quanto à evolução do espírito, tal como
hoje nos é apresentada."
(20) A Gênese, cap. X, § 28.
(21) Citado por Ch. Truffy, Palestras Espíritas, 2ª. Palestra, pp. 157-158.
Portanto, três anos somente após a publicação de
A Origem das Espécies para a Seleção Natural,
por Charles Darwin, dois anos antes do trabalho
de Thomas Huxley, O Lugar do Homem na Natureza,
no qual ele proclamava o parentesco do macaco
e do homem, já Allan Kardec ensinava a origem
animal do homem, enquanto que o próprio
Darwin somente em 1871 abordou abertamente este
problema em A Descendência do Homem.
Isto acontece numa época em que eminentes homens,
como Fabre, Flouriens, Claude Bernard e
Quatrofages, uns porque eram discípulos de Cuvier,
outros por razões de ordem religiosa, se opunham
ao evolucionismo e sustentaram em França uma tal
oposição a estas novas ideias que, em 1873, o Instituto
de França recusa eleger Darwin como seu correspondente
estrangeiro.
Basta situarmos Allan Kardec no ambiente intelectual
da sua época, para bem avaliarmos até que
ponto o seu pensamento era vanguardista.
Ele já havia, com efeito, ultrapassado, antes de
Henri Bergson, Gustave Geley ou Teilhard de Chardin,
a etapa estritamente materialista que o evolucionismo
atravessou no seu início:
Quanto mais o corpo diminui de valor a
seus olhos (os olhos do homem), mais o
princípio espiritual ganha importância; se o
primeiro o nivela com os ignorantes, o segundo
o eleva a uma altura incomensurável.
Vemos o círculo onde o animal se detém;
não vemos o limite que possa alcançar o espírito
do homem.
O materialismo pode, por aí, perceber que o
espiritualismo, longe de pôr em dúvida as
descobertas da ciência, e sua atitude positiva,
vai mais longe provocando-as, pois é certo
que o princípio espiritual, que tem sua existência
própria, não pode sofrer nenhum dano.
O espiritismo caminha a par com o materialismo,
no terreno da matéria; admite tudo
o que este admite; porém, onde o materialismo
se detém, o espiritismo prossegue. O
espiritismo e o materialismo são como dois
viajantes que caminham lado a lado, partindo
do mesmo ponto; chegados a uma certa distância,
um diz: "Não posso ir mais longe"; o
outro continua a sua rota e descobre um
mundo novo. (22)
Substituamos "materialismo" por "parapsicologia"
e teremos um mesmo programa de colaboração
e de adiantamento que caracteriza o esforço da renovação
que atualmente prosseguimos.
(22) A Gênese, cap. X, § 29-30.
ALLAN KARDEC
E AS RELIGIÕES
É situando o pensamento e a obra de Allan Kardec
no contexto da sua época que poderemos apreciar
o seu caráter vanguardista, sob o ponto de
vista científico. Da mesma forma podemos compreender
as suas posições quanto às questões religiosas.
Quando estudamos atentamente a obra de Allan
Kardec, nela encontramos três períodos distintos:
após a exposição da doutrina, a parte filosófica da
ciência espirita em O Livro dos Espíritos e depois
a parte experimental, com a teoria científica dos
fenômenos e sua classificação, em O Livro dos
Médiuns.
Num segundo período, apercebemo-nos de que
Allan Kardec perante o sucesso inesperado do seu
primeiro trabalho, sentiu-se na necessidade não só
de renunciar ao isolamento e à sua tranquilidade,
como também de responder às insistentes solicitações
de milhares de correspondentes ávidos de
conhecer o espiritismo, embora não desejassem
romper com as suas crenças, às quais se encontravam
radicados. É este um período insólito e
que poderemos considerar de concessão à socie
dade.
É assim que Allan Kardec — que embora
desde a sua juventude tivesse acalentado a esperança
duma reforma evangélica do cristianismo —
sentindo-se na obrigação de esclarecer, quanto à
sua religião, os cristãos que se lhe dirigiam, publica
a Imitação do Evangelho, título primitivo do Evangelho
Segundo o Espiritismo, e seguidamente O
Céu e o Inferno ou A Justiça Divina Segundo o
Espiritismo.
Entre estas obras e A Gênese, publicada mais
tarde, medeia um pequeno período em que o
"crente" cristão e o professor de ciências parecem
dominar-se alternadamente e cujas contradições
não podem escapar a uma análise atenta (o espiritismo
estava definido não só como uma ciência
positiva, tendo por base a observação dos fatos
sem ideia preconcebida, como também a revelação
dos ensinamentos de Jesus) e que caracterizam este
seu período de confusão e mesmo de retrocesso, se
considerarmos as suas consequências atuais, pois
encobre gravemente o caráter não confessional,
laico e universal da doutrina em sua essência.
É exclusivamente nesta parte da obra kardequiana
que se apoiam as correntes ideológicas que pretendem
ignorar os seus dois primeiros trabalhos e os
cinco anos de pensamento ativo que decorreram
entre a publicação de O Evangelho Segundo o Espiritismo
e o falecimento do Mestre, pretendendo
fazer do espiritismo — isto para grande satisfação
dos seus adversários — uma nova religião, tendo
em vista uma certa forma de cristianismo, baseada
num esquema muito elementar afastado quanto
possível da real e complexa evolução religiosa da
humanidade, a de uma "terceira revelação"; a dos
espíritos, em seguimento da segunda, a do Cristo,
e que sucede à primeira, a de Moisés!
* * *
No entanto, a ideia do caráter universal e evolutivo
do espiritismo, distinto de todos os cultos
e encontrando a sua força essencial na observação
científica e indução racional, domina toda a sua
obra.
Na sua viagem de 1862 junto dos vários grupos
da província, ele declarou que "se o espiritismo se
colocasse abertamente no terreno de qualquer religião,
ele se afastaria das outras", perpetuando
assim "o antagonismo religioso que ele pretende
esbater", que "as questões de moral são de todas
as religiões e de todos os países" e que "o espiritismo
é um terreno neutro no qual todas as opiniões
religiosas se podem encontrar e dar as
mãos." (23).
Talvez que se Allan Kardec tivesse nascido num
país muçulmano, as circunstâncias fossem outras,
e ele poderia ter escrito, com maior ou menor
oportunidade, "O Alcorão Segundo o Espiritismo",
ou se até tivesse nascido na Índia, "O Upanishads
e o Bhagavad-Gita Segundo o Espiritismo".
Se os estudos sobre os textos sagrados da Índia
antiga na época de Allan Kardec estivessem sufi-
(23) Allan Kardec: Viagens Espiritas em 1862. Instruções
particulares dadas nos grupos em respostas a algumas das
perguntas formuladas, X I
cientemente desenvolvidos, certamente que ele não
teria sido menos categórico, quanto ao valor dos
seus ensinamentos, do que o foi o papa João XXIII
quando da sua viagem à Índia.
Este ponto de vista é confirmado pela análise
que insere na "Introdução" de O Evangelho Segundo
o Espiritismo (1864), comparando a doutrina
de Sócrates e Platão aos princípios do espiritismo,
e ainda pelo profundo estudo dedicado a
Maomé e o islamismo (Revista Espirita, agosto
e novembro de 1866) e, remontando às suas origens,
descreve a mediunidade de Maomé, contesta
a veracidade das narrativas difamantes, "acentua"
o profundo sentimento de piedade que o animava,
a ideia grande e sublime que ele fazia de
"Deus", cita passagens do Alcorão relativas ao retorno
à Terra "para nos corrigirmos" e a "máxima
caridade e tolerância que gostaria de ver em
todos os corações cristãos". (24)
É a aurora dum terceiro período, a que pode-
(24) As línguas, literaturas e religiões da Índia e da Pérsia
eram muito pouco conhecidas no Ocidente naquela
época. Foi o sábio orientalista Eugênio Burnouf (1801-1852}
que reconstituiu, com a ajuda do sânscrito, a língua zenda
empregada nos livros sacros iranianos e atribuídos a Zoroastro
(Zaratustra). Através de outros trabalhos muito
importantes, Burnouf revelou a origem, os princípios e a
história do budismo. O primeiro tomo da sua Introdução
à História do Budismo foi publicado em 1844. Sabemos
no entanto que todo o período decorrido entre 1828 e 1849
foi inteiramente consagrado por Léon Rivail, o futuro Allan
Kardec, à reforma do ensino e a seus trabalhos pedagógicos.
Ele não teve nessa altura nem posteriormente, conhecimento
destas investigações no domínio das religiões, pois
deixou-se empolgar pela expansão do movimento que havia
criado e promovera.
remos chamar de reparação e prosseguido por
Allan Kardec até à sua morte.
Um desses últimos testemunhos, que por desejo
unânime dos seus mais próximos colaboradores a
"Sociedade Espírita", é o dólmen erigido em seu
túmulo, como "a mais expressiva demonstração do
caráter do homem e a obra que ele se esforçou
por simbolizar" (Revista Espirita, junho de 1869).
Dólmen evocador da filosofia céltica que Allan Kardec
tanto admirava e que, desde a introdução do
cristianismo na Gália, foi objeto — não o podemos
ignorar — de cruéis perseguições, cujos monumentos,
usos e tradições foram sistematicamente
destruídos e desfigurados.
Este período de reparação ou correção, manifesta-
se muito nitidamente com a publicação de
A Gênese, Os Milagres e as Predições Segundo o
Espiritismo em janeiro de 1868, onde a noção de
"revelação" ultrapassa o caráter um pouco primário
que imprimiu nos seus dois trabalhos precedentes,
a fim de apresentar a revelação permanente,
contínua e progressiva da ciência, como início
para o estudo do mundo físico (astronomia, geologia,
paleontologia, fisiologia) e culminando no conhecimento
do mundo espiritual.
Este aspecto fundamental, consolidado pelo pensamento
de Allan Kardec, do qual Gabriel Delanne,
através da sua obra científica, foi o continuador
e porta-voz quando declarava que "o espiritismo
se suicidaria se se deixasse arrastar por certas formas
cultuais existentes hoje em dia" (25) — se afir-
(25) Gabriel Delanne - As Conseqüências Filosóficas do Espiritismo,
Revista Científica e Moral do Espiritismo, outubro de 1910.
ma ainda no seu Projeto da Constituição do Espiritismo
publicado na Revista Espirita (dezembro
de 1868) que com seus comentários e outros textos
da mesma revista recolhidos por P. G. Leymarie
e publicados em Obras Póstumas, constituem de
f a t o o testamento filosófico de Allan Kardec.
Confirma ele, ainda mais categoricamente, o car
á t e r não cultual, não-sectário, não-religioso do
espiritismo, que "teve como todas as coisas o seu
período primário" e que definia como "resultante
de milhares de observações feitas em todos os pontos
do Globo, que lhe eram enviadas e que ele
coligia e coordenava".
Ainda, no último número da Revista Espirita
redigido por ele (abril de 1869) e que saiu a público
no próprio dia do seu falecimento (31 de
março de 1869), ele comparava a "profissão de fé
espirita americana", aos princípios fundamentais
da doutrina segundo "a escola europeia" tal como
ele os enunciava (26) — última expressão que deu
à doutrina — confirmando claramente o caráter
estritamente científico-filosófico desta e a sua neutralidade
total perante quaisquer tradições religiosas.
Estes princípios fundamentais, que vêm enunciados
no final do presente trabalho, completam,
assim, o preâmbulo do Credo Espirita.
(26) Revista Espirita, abril de 1869, pp. 102 e 106.
O MÉTODO DE
ALLAN KARDEC
Em A Gênese, o fundador do espiritismo moderno
afirma que "a ciência é convocada a constituir
a verdadeira gênese, conforme as leis da
natureza (27) que "se a religião se recusar a caminhar
com a ciência, a ciência prosseguirá só" (28),
e que: "Enquanto o homem não conheceu as leis
que regem a matéria, e enquanto não pôde aplicar
o método experimental, andou errando de sistema
em sistema no tocante ao mecanismo do universo
c à formação da Terra. Tanto na ordem moral
como na ordem física se tem dado o mesmo; a fim
de fixar as ideias tem faltado o elemento essencial:
o conhecimento das leis do princípio espiritual.
Este conhecimento estava reservado à nossa
época, como o conhecimento das leis da matéria
foi obra dos dois últimos séculos." (29)
Em Obras Póstumas, os textos da Constituição
do Espiritismo afirmam nitidamente a necessidade
de precisão e clareza em todos os pontos da doutrina
e o seu caráter essencialmente progressivo:
(27) Cap. IV, § 3, 15, 16, 17.
(28) Idem, § 9.
(29) Idem, § 15.
Porque ela não se deixa embalar por sonhos
irrealizáveis no presente, não se segue
que deva imobilizar-se. Apoiada exclusivamente
nas leis naturais, não pode variar mais
do que essas leis, mas se uma nova lei for
descoberta, deve juntar-se às demais; não
deve fechar as portas a qualquer progresso
sob pena de se suicidar; assimilando todas
as ideias conhecidas como justas, quer sejam
de ordem física ou metafísica, nunca
será ultrapassada, sendo esta uma das principais
garantias da sua perpetuidade. (30)
O exame profundo da obra de Allan Kardec, de
toda a sua obra, permite-nos não nos afastarmos
das linhas essenciais e definir claramente sua metodologia:
O espiritismo — escreve ele — dirige-se aos
que não crêem ou que duvidam, e não aos
que têm fé e aos quais esta lhes basta; ele
não diz a quem quer que seja que renuncie
ás suas crenças para adotar as nossas e
nisto é coerente com os princípios de tolerância
e de liberdade de consciência que professa...
acolhei dedicadamente os homens de
boa. vontade, dai-lhes a luz que procuram,
pois com os que julgam já possui-la não tereis
êxitos. (31)
(30) Obras Póstumas, Constituição do Espiritismo, II - Dos Cismas.
(31) Revista Espirita, dezembro, 1863, p. 367.
Não deixaremos, contudo, de nos dirigir aos crentes,
mas principalmente aos que nos procuram,
pois muitos deles se tornaram materialistas por
indiferença ou à falta de melhor:
Apresentemos-lhes alguma coisa de racional
e eles a aceitarão pressurosos. Esses poderão
compreender-nos, porque estão mais
próximos de nós do que poderíamos supor.
Mas, aos materialistas diremos:
Não falemos nem de revelações, nem de
anjos, nem do paraíso; eles não nos compreenderão;
mas se nos colocarmos no seu
terreno, provar-lhes-emos, porém, que as leis
da filosofia são suficientes para nos dar razão,
o resto virá em seguida. (32)
E Allan Kardec precisa o seu pensamento numa
passagem que consideramos essencial e de extrema
importância:
No espiritismo, a questão dos espíritos
está em segundo lugar, não constituindo seu
ponto de partida... Sendo os espíritos simplesmente
a alma dos homens, o verdadeiro
ponto de partida, é, portanto, a existência da
alma. Ora, como pode então o materialista
admitir a existência de seres que vivem fora
do mundo material, quando ele próprio se
(32) O Livro dos Médiuns, 1ª. parte, cap. III, § 21.
considera apenas matéria? Como pode ele
crer na existência de espíritos à sua volta?
Se não admite o seu próprio espírito? Em
vão se acumularão aos seus olhos as provas
mais palpáveis que ele contestará, porque
não admite tal princípio. Todo o ensino metódico
deverá partir do conhecido para o
desconhecido; para o materialista, o conhecido
é a matéria; parti, pois, da matéria e
procurai antes de tudo demonstrar-lhe que
há nele próprio alguma coisa que escapa às
leis naturais; numa palavra, antes de torná-lo
espírita, procurai fazê-lo espiritualista;mas para isto,
torna-se necessária outra ordem de fatos, devendo-se
proceder, por outros meios a um ensino muito
especial; falar-lhe de espíritos antes de ele
estar convencido de que tem uma alma é come
çar pelo fim, pois ele não poderá admitir conclusões
sem que aceite premissas. Antes, porém,
de se tentar convencer o incrédulo, mesmo
através dos fatos, devemos assegurar-
nos da sua opinião sobre a existência da
alma, ou seja, se ele crê na sua sobrevivência
ao corpo, na sua individualidade após a
morte; e se a sua resposta for negativa, então
terá sido tempo perdido falar-lhe de espíritos. (33)
Este "ensinamento muito especial", ao qual Allan
Kardec faz alusão e consiste em começar pelo começo,
conforme mais tarde o afirmou Alexandre
(33) O Livro dos Médiuns, 1ª. parte, cap. III, § 19.
Aksakof, Camille Flammarion, Ernesto Bozzano e
Gabriel Delanne, destina-se, antes de tudo, ao estudo
e à demonstração, nos seres vivos, de faculdades
além das limitações corporais — demonstração
que hoje em dia constitui a missão histórica
da parapsicologia — daquelas faculdades que envolvem
a atividade autônoma da alma.
São estes conhecimentos conseguidos através de
uma investigação metódica do conhecido ao desconhecido,
servindo a primeira demonstração de introdução
ao estudo das manifestações póstumas,
por uma aproximação de conclusões e a partir de
premissas, e a segunda demonstração como complemento
da primeira, ou seja, a sobrevivência da
alma, tal como afirmou vigorosamente o grande
filósofo Henri Bergson — perante qualquer decepção
que possamos experimentar quanto aos parapsicólogos
que se preocupam em não nos deixar sair
do campo materialista — "se os fatos, estudados
independentemente de todo o sistema nos levam,
pelo contrário, a considerar a vida cerebral, a sobrevivência
torna-se tão verossímil que a obrigação
de a provar competirá antes àquele que o nega do
que ao que a afirma porque, a única razão para
crer na destruição da consciência após a morte é
a visão da decomposição do corpo, e esta razão
deixa de ser válida se a independência da quase
totalidade da consciência relativamente ao corpo é
ela própria também um fato." (34)
(34) Henri Bergson: Fantasmas de Vivos e Investigação Psíquica
(discursos presidenciais na Sociedade de Investigações Psíquicas
de Londres, 28 de maio de 1913), em A Energia Espiritual.
Fonte: (Imprensa Universitária de França).
Edição Digital: Pense - Pensamento Social Espírita
www.viasantos.com/pense
março de 2009