"HÁ ALGUNS ANOS EM MINHA PASSAGEM PELA TERRA, EU ERA UM PEQUENO COMERCIANTE", PSICOGRAFIA DO "ESPÍRITO "J".
Com trinta anos, casei-me com Marina, muito mais jovem do que eu. Construímos uma casa num movimentado bairro do Rio de Janeiro. Desconfiado e inquieto, amava minha esposa com doentia paixão. Marina amava as cores alegres, o cinema e a vida social. Por ter um comportamento meio infantil, logo tornou-se vítima da calúnia. Em torno de nós, fez-se o “disse-me-disse”. Quando passávamos na praça do bairro, éramos objeto de olhares assustados, enquanto cochichavam nossos nomes.
Começaram para mim as cartas anônimas, os telefonemas, e os conselhos de família, reunindo várias acusações.
– “Marina fugiu dos compromissos do lar”
– “Marina é ingrata”
– “Marina é infiel”
Minha própria mãe pedia-me providências.
Amigos faziam piadas com sentido indireto.
Acabou-se em casa a alegria.
Marina se inocentava, alertando-me o coração; entretanto, eu continuava criando quadros horríveis em torno de faltas inexistentes.
Como se eu fosse puro, exigia pureza em minha mulher.
Deplorável cegueira humana!
Foi assim que, numa tarde inesquecível para o remorso que ainda me mata, tocou o telefone.
Alguém do outro lado dizia que um estranho estava em minha casa; no meu quarto.
Transtornado, saí do trabalho, peguei meu revólver e voltei para casa.
Sem barulho entrei em nosso quarto e, de olhos embaçados pelas lágrimas e o desespero, vi Marina curvada, ao lado de um homem que se curvava igualmente a dois passos da nossa cama.
Não tive dúvida, atirei nos dois... E porque não pudesse eu mesmo resistir a tamanha infelicidade, estilhacei meu crânio, caindo, logo após, para acordar no túmulo, agarrado a meu corpo que servia de engorda a vermes famintos.
Em vão tentei fugir daquele calabouço de lama e sombras.
Gargalhadas irônicas de Espíritos infelizes cercavam-me a prisão.
Descrever minha pena é tarefa impossível no vocabulário dos homens, porque o verbo dos homens não tem bastante força para pintar o inferno que brame dentro da alma.
Por muito tempo, amarguei meu cálice de aflição e pavor, até que mãos amigas me afastaram daquele cárcere, que parecia não ter mais fim.
Vim então a saber que, Marina sem culpa, foi sacrificada em minhas mãos de louco.
Esposa verdadeira e inocente que era, simplesmente pediu ao meu próprio irmão que consertasse em nosso quarto a tomada elétrica, a fim de passar a roupa que me era precisa para o dia seguinte.
Tomado de vergonha e enojado de mim, antes de suplicar perdão às minhas pobres vítimas, implorei humilhado, a prova que me espera…
E é assim que, falando às almas descuidadas que cultivam na Terra o vício da calúnia, venho dizer a todas, na condição de um réu, que para me curar da própria insensatez, roguei ao Pai Celeste, e me foi concedida a bênção de meio século de doença e martírio, luta e flagelação, na dor de um corpo cego.
J.
Livro: O Espírito da Verdade/Chico Xavier.