Capítulo 30 - O ADEUS COMOVENTE DE HUMBERTO DE CAMPOS AO “MÉDIUM” HUMILDE DE PEDRO LEOPOLDO
Por que deixou de ser ouvido “o zumbir de colmeia do coração ressoante de compreensão e de beleza”
PEDRO LEOPOLDO, 27 (Especial para O GLOBO, por Clementino de Alencar) - Sem querer desfazer dos outros aspectos da produção psicografada por Chico Xavier, pareceu-nos todavia desde o primeiro momento, que um dos detalhes mais interessantes daquele conjunto de trabalhos “captados” pelo “médium”, e talvez o que mais seduziu a curiosidade, a atenção e o gosto do público, foram, sem dúvida, as mensagens de Humberto de Campos.
Esse mesmo público, que era dele e numeroso como poucas vezes o terá conquistado um escritor, no Brasil, acostumara-se tanto, através dos últimos anos, ao consumo diário daquele brando pão espiritual que eram as suas crônicas e vinham tão pontualmente, saborosos e macios, da seara farta da sua emoção e do seu pensamento, que o imprevisto da sua falta, para o comovido repasto dos que se haviam habituado a escutá-lo, deixara para sempre, na recôndita memória emocional, a mágoa de uma carência tão sentida e sem remédio como resultaria, para o plano físico, à míngua desse outro pão claro e bom que os trigais ofertam, cada manhã, para a fome das nossas bocas.
Uma noite insondável e sem fim descera, de repente, sobre a seara maravilhosa e o trigo dourado e abundante, amadurecido ao sol e ao orvalho daquela grande alma, abatera sob a mesma e pesada sombra que viera apagar para sempre o zumbir das abelhas inquietas e diligentes no coração cheio de mel do cajueiro frondoso...
Depois, os dias passaram e o mal daquela míngua se ia adaptando ao irremediável, quando se deu essa espécie de milagre da revivência, com a voz comovida e amiga que chegava do Além.
Para lá das “grandes sombras invisíveis” julgaram os “vivos” divisar, na imprecisão e no mistério da imaterialidade, a ondulação dourada da seara perdida. Do fundo da memória recôndita e inapagada, a emoção estendeu de novo as mãos ansiosas.
E, como o ceifeiro que parte, apressado, em busca do trigo generoso onde palpita a promessa do pão, eis-nos aqui vindos e aqui postados junto ao pórtico do milagre para além do qual, de repente, se tornou a ouvir o zumbido das abelhas ativas e inquietas.
SILÊNCIO E ESPERA
Infelizmente, o zumbido cessou, de repente também. Humberto não tem mais querido falar para aqueles, tantos e atentos, que acorreram de novo a ouvi-lo. As antenas, abertas para o além, não acusam já o sinal do seu nome.
E à porta desse silêncio como ao pórtico daquele milagre, vimos quedar-nos, entretanto, porque, em todo o caso, essa mudez do Além deu uma justificativa e deixou uma esperança.
A ÚLTIMA MENSAGEM DE HUMBERTO
Quando após a nossa ida ao Rio, voltamos a Pedro Leopoldo, Chico Xavier nos mostrou a última mensagem que recebera com o nome de Humberto de Campos.
Psicografara-a na noite de 26 de abril passado.
É essa a mensagem que nos “dizia também respeito”, conforme escrevíamos em uma de nossas primeiras mensagens, após o regresso a Pedro Leopoldo. E nela o cronista dos “Párias” nos dava a entender que iria suspender, por algum tempo, as suas mensagens sensacionais, em face da celeuma por elas provocadas e também do assédio da bisbilhotice...
Dava-nos, todavia, a certa altura, a esperança de restabelecer mais tarde o fio de suas comunicações com o mundo dos vivos. E foi nessa esperança que insistimos no decorrer das duas últimas sessões, em apelar para ele, mas inutilmente. Do seu retraimento, o cronista e o prosador da nossa saudade nada quis ceder. Ficou-nos apenas, para a sensibilidade encantada, mas insatisfeita, a dádiva dessa crônica derradeira que damos a seguir:
“TRAGO-LHE O MEU ADEUS SEM PROMETER VOLTAR BREVE”
“Apreciando, em 1932, o “Parnaso de Além-Túmulo”, que os poetas desencarnados mandaram ao mundo por intermédio de você, chamei a atenção dos estudiosos para a incógnita que o seu caso apresentava. Os estudiosos, certamente, não apareceram. Deixando, porém, o meu corpo, minado por uma hipertrofia renitente, lembrei-me do acontecimento. Julgara eu que os bardos “do outro mundo”, com a sua originalidade estilística, se comprometiam pela eternidade da produção, no falso pressuposto de que se pudessem identificar por outra forma. Encontrando ensejo para me fazer ouvir, através de suas mãos, escrevi crônicas póstumas que o Sr. Frederico Figner transcreveu nas colunas do “Correio da Manhã”.
Não imaginei que o humilde escritor desencarnado estivesse ainda na lembrança de quantos o viram desaparecer. E as minhas palavras provocaram celeuma. Discutiu-se e ainda se discute.
Você foi apresentado como hábil fazedor de pastichos e os noticiaristas vieram averiguar o que havia de verdadeiro em torno do seu nome.
Colheram informes. Conheceram a honestidade da sua vida simples e as dificuldades dos seus dias de pobre. E, por último, quiseram ver como você escrevia a mensagem dos mortos, como uma Remington acionada por dedos invisíveis.
Tive pena quando soube que iam conduzi-lo a um teste e recordei-me do primeiro exame a que me sujeitei aí com o coração batendo forte.
Fiz questão de enviar-lhe algumas palavras, como o homem que fala de longe à sua pátria distante, através das ondas de Hertz, sem saber se os seus conceitos serão reconhecidos pelos patrícios, levando em conta as deficiências do aparelho receptor e os desequilíbrios atmosféricos. Todavia, bem ou mal, consegui falar alguma coisa. Eu devia essa reparação à doutrina que você sinceramente professa.
Esperariam, talvez, que eu falasse sobre os fabulosos canais de Marte, sobre a natureza de Vênus, descrevendo, como os viajantes de Jules Verne, a orografia da Lua. Julgo, porém, que, por enquanto, me é mais fácil uma discussão sobre o diamagnetismo de Faraday.
Admiraram-se, quando enxergaram a sua mão vertiginosa correndo sobre as linhas do papel.
A curiosidade jornalística é agora levantada em torno da sua pessoa. É possível que outros acorram para lhe fazer suas visitas. Mas, ouça bem: não me espere como a pitonisa de Endor, aguardando a sombra de Samuel, para fazer predições a Saul sobre as suas atividades guerreiras. Não sei movimentar as trípodes espiritistas e se procurei falar naquela noite é que o seu nome estava em jogo. Colaborei, assim, na sua defesa. Mas, agora que os curiosos o procuram na sua ociosidade, busque você, no desinteresse, a melhor arma para desarmar os outros. Eu voltarei provavelmente, quando o deixarem em paz na sua amargurosa vida.
Não desejo escrever maravilhando a ninguém e tenho necessidade de fugir a tudo o que tenho obrigação de esquecer.
Fique, pois, com a sua cruz, que é bem pesada, por amor d’Aquele que acende o lume das estrelas e o lume da esperança nos corações. A mediunidade posta ao serviço do bem é quase a estrada do Gólgota; mas, a fé transforma em flores as pedras do caminho. Li aí, certa vez, num conto delicado, que uma mulher em meio de sofrimentos acerbos, apelara para Deus, a fim de que se modificasse a volumosa cruz da sua existência. Como a filha de Cipião, vira nos filhos as joias preciosas da sua vaidade e do seu amor, mas, como Níobe, vira-os arrebatados no torvelinho da morte, impelidos pela fúria dos deuses. Tudo lhe falhara nas fantasias do amor, do lar e da ventura.
– Senhor - exclama ela -, por que me deste uma cruz tão pesada? Arranca dos meus ombros fracos esse insuportável madeiro!
Mas, nas asas brandas do sono, a sua alma de mulher viúva e órfã foi conduzida a um palácio resplandecente. Um Anjo do Senhor recebeu-a no pórtico, com a sua bênção. Uma sala luminosa e imensa lhe foi designada. Toda ela se enchia de cruzes. Cruzes de todos os feitios.
– Aqui - disse-lhe uma voz suave - guardam-se todas as cruzes que as almas encarnadas carregam na face triste do mundo. Cada um desses madeiros traz o nome do seu possuidor. Atendendo, porém, à tua súplica, ordena Deus que escolhas aqui uma cruz menos pesada do que a tua.
A mulher escolheu conscienciosamente aquela cujo peso competia com as suas possibilidades, escolhendo-a entre todas.
Mas, apresentando ao Mensageiro Divino a sua preferência, verificou que, na cruz escolhida, se encontrava insculpido o seu próprio nome, reconhecendo a sua impertinência e rebeldia.
– Vai - disse-lhe o Anjo - com a tua cruz e não descreias! Deus, na sua misericordiosa justiça, não poderia macerar os teus ombros com um peso superior às tuas forças.
Não se desanime, portanto, na faina em que se encontra, carregando esse fardo penoso que todos os incompreendidos já carregaram. E agora que os bisbilhoteiros o procuram, trago-lhe o meu adeus, sem prometer voltar breve.
Que o Senhor derrame sobre você a sua bênção que conforta todos os infortunados e todos os tristes. - Humberto de Campos.”
A MOEDA ETERNA
Eis aí.
Quebrou-se - até quando? não nos saberíamos dizer - o fio milagroso.
Os nossos apelos, mau grado o poder das antenas incomparáveis que os expediram da Terra, perderam-se de certo, no “sem rumo” dos planos infinitos e resplandecentes.
Humberto não voltou.
Fa-lo-á um dia?
Quem sabe?
Mas não faz mal, Humberto. A admiração comovida dos homens manter-se-á embora, através do teu silêncio, ainda que ele seja longo, ainda que ele não tenha fim.
Como tu mesmo disseste, uma vez, nas tuas crônicas da Terra, sendo essa admiração a única e verdadeira “moeda de ouro do reino” das letras e da imaginação criadora, “essa moeda, às vezes, tem o cunho da Eternidade...”
E um dia, se tu voltares, ela, por certo, ainda estará circulando, para tua glória e teu consolo.
Do livro "Notáveis Reportagens com Chico Xavier" – Capítulo 30.