terça-feira, 15 de junho de 2021

GELEDE

 

GELEDE


Pode ser uma ilustração de 1 pessoaAs Ancestrais

Quando Olorun procurava matéria apropriada para criar o homem todos os ebora partiram em busca da tal matéria. Trouxeram diferentes coisas mas nenhuma era adequada. Foram buscar lama, ela chorou, derramou lágrimas e nenhum ebora quis tomar da menor parcela. Então Iku, ojegbe-alaso-ona, apareceu, apanhou um pouco de lama – eerupe – e não teve misericórdia de seu pranto. Levou-a a Olodumare, e este pediu a Orisala e a Olugama que a modelassem e foi Ele mesmo quem lhe insuflou seu hálito. Mas Olodumare determinou a Iku que, por ter sido ele a apanhar a porção de lama, deveria recolocá-la em seu lugar a qualquer momento. E é por isso que Iku sempre nos leva de volta para a lama.

Neste fragmento de uma das versões do mito de origem do homem encontramos Ikú, a morte, palavra que em iorubá é do gênero masculino, participando significativamente do processo de criação. Retomando o que foi dito no início deste capítulo, os irúnmalè-entidades divinas acham-se associados à origem da criação, enquanto os irúnmalè-ancestrais, associam-se à história dos seres humanos.

Os ancestrais masculinos, chamados Baba-égún e os ancestrais femininos, chamados Iyá-àgbà ou Iyá-mi, possuem instituições próprias. Assim como os ancestrais masculinos têm instituição na Sociedade Egúngún, sua contraparte feminina, os ancestrais femininos, têm instituição na Sociedade Gèlèdé e também na Sociedade Egbé Eléékò.

Gelede, o poder ancestral feminino: restituir para restaurar a força

A Sociedade Gelede, integrada por homens e mulheres, cultua as Iya-agba, também chamadas Iyami, que simbolizam aspectos coletivos do poder ancestral feminino. Dirigida pelas erelu, mulheres detentoras dos segredos e poderes de Iyami, cuja boa vontade deve ser cultivada por ser essencial à continuidade da vida e da sociedade, o culto tem por finalidade apaziguar seu furor; propiciar os poderes místicos femininos; favorecer a fertilidade e a fecundidade e reiterar normas sociais de conduta. Seu festival é realizado anualmente, por ocasião da colheita de inhame, e dura sete dias.[1]Quando Iku devolve à terra o que lhe pertence, tornam-se possíveis os renascimentos. Assim considerada, a morte é instrumento indispensável de restituição.

Registraram em vídeo o Festival de Gelede realizado em Ago-Egun na cidade de Abeokuta, estado de Ogun, Nigéria, no ano de 1990. A título de ilustração, o descrevo para tecer depois, algumas considerações sobre o poder ancestral feminino, elegendo, dentre as múltiplas possibilidades de abordagem desse tema, a que privilegia “a restituição como possibilidade de restauração da força” e que convida a refletir sobre o valor da restituição no quadro ético e moral dos iorubás.

Breve descrição do Festival de Gelede em Ago-Egun, 1990

Os tambores falantes permanecem fixos na praça. A música fala por si. Em torno dos tambores dança Gelede incorporada em homens, uma vez que apenas homens incorporam essa força. Inicia-se o festival com a saída de Ogum, que dança carregando sobre a cabeça um recipiente de metal onde ardem altas chamas de fogo. Seguem-no quinze outros orixás. Sai finalmente Gelede, incorporada nos homens ou meninos que por recomendação de Ifá são ou estão sendo preparados como sacerdotes do culto. O auge do festival é marcado pela saída do superior hierárquico do grupo, representado nessa ocasião particular, pela figura de um gorila com aproximadamente dois metros e meio de altura, longos braços rigidamente estendidos na horizontal, ao lado do corpo. O líder sai apenas no terceiro e no sétimo (último) dias para participar dos festejos. Gelede, incorporada nesse sacerdote, dança continuamente e seus longos braços ameaçam tocar as pessoas que também dançam alegres a seu redor. Todas as pessoas realizam movimentos de modo a evitar qualquer contato físico com esses longos braços porque, segundo a crença, tornar-se-iam irremediavelmente surdas. A vestimenta dos demais homens e meninos que incorporam Gelede caracteriza-se por uma grande máscara representativa de algum animal e as vestes são constituídas por grandes tiras de pano colorido – os gele – panos usados diariamente como turbantes pelas mulheres. As máscaras usadas no Festival são os assentamentos de Gelede.

Durante todos os sete dias do Festival os participantes abandonam a praça e caminham pelas ruas, acompanhando Gelede que, incorporada em vários homens, durante o dia todo, recolhe-se ao anoitecer. Muitas cantigas são entoadas. Entre elas as chamadas cantigas de efe que referem-se, a comportamentos inadequados de homens, mulheres e crianças do grupo durante o ano transcorrido, em tom de brincadeira, tornando-os de conhecimento público.

Ao discorrer anteriormente sobre o axé, fiz referência ao fato de estar essa força sujeita a algumas leis uma das quais determina que, uma vez transferido a seres e objetos, neles mantém e renova o poder de realização. Como tudo o que vive necessita de axé e este é desgastável, é imperiosa a necessidade de reposição. Consideremos a questão da morte e dos renascimentos. A representação coletiva dos ancestrais é Iku, Morte, símbolo masculino relacionado com a terra. Os renascimentos dependem dos ancestrais e sua matéria de origem é a lama. Iku, conforme narra o mito, restitui à terra o que lhe pertence, permitindo, assim, os renascimentos e, desse ponto de vista, Morte é um instrumento indispensável de restituição e um símbolo importante. Restituir é restituir o axé.

[1] No Brasil (Bahia), a festa de Gelede, realizada no candomblé do Engenho Velho, era comemorada no dia 8 de dezembro, em Boa Viagem sob a condução da ialorixá Maria Júlia Figueiredo, que recebia o nobre título de Iyalode-erelu

Gelede

Durante o festival as representações litúrgicas enfatizam a fecundidade e a feminilidade. O poder das Iyami é representado por efe, o pássaro-filho, símbolo do masculino e do elemento procriado. A presença de efe, que sai do mato na escuridão da noite como se saísse do interior de igba-nla, a grande cabaça, assegura a boa vontade das Iyami e seu poder de fecundação e gestação. Mencionamos anteriormente que entre as cantigas entoadas por ocasião do Festival de Gelede incluem-se as cantigas de efe, que fazem referências, em tom de brincadeira, a comportamentos inadequados de homens, mulheres e crianças do grupo durante o ano transcorrido entre um festival e outro, tornando-os de conhecimento público. Cumprem pois, entre outras, a função de controlador social, por veicularem normas e regras de relações, de ética, de disciplina moral do grupo, sob a autoridade do poder ancestral que está sendo cultuado. Transcrevemos, para ilustrar, um orin Gelede (cantiga de Gelede) recolhido por Salami (1993):

Quando algo cai e quebra

revela-se o segredo de seu interior.

Quando algo cai e quebra

revela-se o segredo de seu interior.

Quando um ovo cai no chão

se despedaça.

Quando algo cai e quebra

revela-se o segredo de seu interior.

Quando o ovo cai no chão

se despedaça, revelando o segredo de seu interior.

Aqui está Gelede, o segredo das sábias
Texto: Babá Ojeleke
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