“Eu sou Pombagira de fé,
Metade cobra, metade mulher…
Derrubo qualquer feiticeiro,
Pois eu sou mulher de Lúcifer…”
Eu nasci e vivi na região da Lituânia do século XV, sob o reinado de Alput. Eu era descendente dos búlgaros romani – ciganos descendentes do Conde “Drácula”. Vlad Tepes (o Empalador) era um governante sanguinário da Romênia e minha mãe possuía parentesco direto com sua linhagem. Nossa caravana viajava constantemente para evitar perseguições, devido a nossa herança ancestral.
Em nossa família, seguíamos as tradições dos antigos Balcãs (Otamanos) e sabíamos aplicar sortilégios e magias diversas em nossas peregrinações. Apesar de tudo isso, acreditávamos em Deus, Jesus e Maria, mas também acreditávamos nos nossos deuses nórdicos. Éramos perseguidos, justamente por sermos ciganos cristãos, pois os Otamanos eram mouros e a intolerância religiosa já ocorria naquela época.
Passamos a viver na região da Suécia e tivemos relativa paz, durante alguns anos. Eu casei-me com um descendente nórdico e tive dois filhos lindos – um menino e uma menina. Meu esposo era comerciante de peles, especiarias e tecidos diversos. Minha família prosseguia com o trabalho de comercialização de pedras preciosas e ouro.
Nossas comemorações eram festivas e alegres – comemorávamos tudo: colheitas, vendas, bons negócios, nascimento, casamento, entre outras festividades. Por isso, nem percebemos quando uma guerra iniciou e o estado começou a disputar interesses. Todos eram chamados a lutar e nós tentamos não tomar partido. Pensamos até mesmo em prosseguir viagem, mas nossos negócios estavam todos bem distribuídos na região.
Quando a disputa iniciou eu fiz algo que uma mulher naquela época não faria: agi politicamente. Eu era bonita e sedutora, então negociei nossa permanência e estabilidade com os governantes. Eu me envolvi (não tenho vergonha de falar) com cada um deles e usei minha magia para tê-los sob meus encantos. Assim, sem que quase ninguém soubesse, eu mantive nosso povo em liberdade e obtive a paz para nossa raça.
Eu fiquei grávida de um deles e sabia que essa criança poderia disputar a coroa, mesmo sendo um filho bastardo; mas, com isso, perderia meu esposo e o respeito de minha raça. Então, abandonei meu povo… Deixei meus filhos com o pai e segui para junto do governante. Aceitei sua proposta e fui viver com ele. O filho dele nasceu, um menino que herdaria o reino.
Eu não me tornei sua esposa, apenas uma concubina e serva do palácio. Mas, meu filho foi criado pelo rei e pela rainha, como filho legítimo. Eu senti saudades de minha antiga vida, de meu povo e de meu esposo. Mas, o que uma mulher não faz pelos seus? Eu fiz e não me arrependi…
Às vezes eu visitava o local do acampamento e ficava a sondar a distância para ver meus filhos. Meu esposo desposou outra cigana e teve mais filhos com ela. Paras eles eu era uma fugitiva. (…) Os anos passaram e meus filhos cresceram. O príncipe herdeiro (meu filho sem saber) tornou-se um rapaz nobre, bonito e inteligente. Ele deveria casar-se em breve para assumir o trono. Tudo o que eu planejara aconteceria… Porém, a vida nos prega peças e eu fui envolvida em uma delas.
O príncipe herdeiro escolheu uma jovem do povo para desposar. Dizem que ela era uma bonita filha de comerciante. Moça bem educada e de fino trato, foi aceita no palácio, mesmo não sendo da realeza. Eles estavam felizes com o noivado e já programavam a festividade do casamento. Foi quando eu a vi e algo me atravessou a alma. Era minha filha… Perante o Cristianismo eles não poderiam casar, mas de acordo com a Tradição dos Antigos Deuses, nada impediria.
Eu fiquei dividida, pois eles eram irmãos e somente eu sabia disso. De meu ventre haviam nascido dois herdeiros para o trono: um homem e uma mulher – dois irmãos. O que fazer? Permitir que eles se casassem e não interferir? Contar a um deles? Contar para meu ex-marido?
Nessa hora, rezei à antiga Deusa e pedi orientação. Ela, Brighit, que coabitara com seu irmão para dar um herdeiro à Terra, me entenderia… Senti que nada deveria fazer e deixei que as bodas acontecessem. Eles casaram e o casamento foi o maior acontecimento do reino. E eu assisti a tudo ocultamente. Meus dois filhos se casando e assumindo o comando do Reino!!! Que mãe não teria orgulho disso? Mas, eu fiquei mortificada e apreensiva. Nada fiz.
O tempo passou e logo ela estava grávida. Antes do nono mês, ela já se preparava para dar a luz e eu fui chamada para auxiliar no parto, junto com outras servas. Logo percebemos que ela teria duas crianças, pois o parto estava difícil. Porém, o pior estava por vir…
O parto estava muito complicado e não conseguíamos realizá-lo. O médico da realeza logo deu o diagnóstico: gêmeos siameses. Eu sabia o que isso significava: aconteceu porque eles eram irmãos. Mas, para a época isso era um sacrilégio e crianças assim eram consideradas aberrações. Eles seriam descartados como lixo. Eu não podia permitir… Eram meus netos. Então, mais uma vez agi contra o destino. Ofereci-me para levar as crianças. Decidi fugir com elas e criá-las. Eu já errara demais, não podia errar mais uma vez.
Antes de partir, procurei minha filha, enquanto estava em recuperação e contei-lhe toda a verdade. No começo ela apenas olhou-me e nada disse, mas depois gritou e exigiu que eu saísse de sua presença. Procurei também o pai dela (meu ex-marido), mostrei os gêmeos a ele e contei onde estive todos esses anos. Ele mostrou repulsa por mim…
Nada mais havendo a fazer, arrumei uma carroça com provisões para a viagem e deixei o reino com os bebês. Eu era responsável por eles. Na tradição da Antiga Deusa, gêmeos siameses eram venerados. Eu acreditava que eles tinham uma herança maldita, do antigo empalador e de tudo o que aconteceu… Mesmo assim, segui para a Noruega, levando-os comigo…
Durante o caminho encontrei uma caravana de saltimbancos e ajuntei-me a eles. Passei a me apresentar com eles, realizando números de mágicas e adivinhações. Eu também sabia usar cobras em meus números e isso cativava o público. Meus netos eram uma atração a parte… Dentro de uma jaula eles era observados pelos outros. A jaula era para protegê-los de qualquer barbárie. Alguns médicos e cientistas pediram para estudá-los e eles eram constantemente observados.
A Europa vivia um período de perseguições por conta do Catolicismo, mas a vida circense nos protegia, de certa forma, pois não representávamos perigo à Igreja. Mesmo afastada da vida na Suécia, eu pude acompanhar os últimos acontecimentos: Minha filha adoeceu e definhou… Saber a verdade de tudo não lhe fez bem e ela me culpou, com razão. Meu filho nunca soube de nada e casou-se novamente, dessa vez com a herdeira do reino vizinho (Dinamarca). Assim a “Escandinávia” permanecia unida. Meu ex-marido tornou-se uma pessoa amarga por causa de tudo o que aconteceu e por fim passou a beber até morrer.
Meus netos viveram 36 anos e eu vivi até os oitenta anos. Não casei mais, apenas cuidei de meus netos e vivi intensamente a vida circense. Tive alguns amores passageiros e só… Ao final de minha vida eu sabia manipular o veneno de quase todas as cobras e usava-os para curas diversas. Apesar de me chamarem de “A Feiticeira das Cobras”, a Inquisição não me tocou, pois eu praticava a arte mágica como entretenimento e não era considerada um perigo à sociedade.
Após minha morte, descobri que meus netos foram dois irmãos gêmeos, que disputaram meu amor em outra vida. Como eles mataram-se por conta disso, nasceram “unidos” como siameses. Meu ex-marido foi meu filho e irmão de minha filha. Meu filho herdeiro fora meu esposo e acompanhou todo meu declínio. Por isso, nessa vida, ele foi afastado de mim. Meu outro filho, de quem quase não falei, foi uma pessoa normal e feliz. Ele tornou-se comerciante, casou, teve filhos e viveu honestamente no interior da Suécia.
Assim, foi que vivi essa vida: intensamente e com muitos acontecimentos. Quando eu descobri toda a minha história, após minha morte, resolvi buscar todos que fizeram parte dela. Procurei me apaziguar com eles e lutei pelo perdão de todos. A Espiritualidade Maior ofereceu-me a oportunidade de resgatar minhas dívidas através do trabalho mediúnico e tornei-me uma Pombagira. Assumi o nome de Lâmia, pois em minha cultura as “Lâmias” eram mulheres que sabiam seduzir e eram consideradas meio cobras e meio humanas.
Eu me sentia, muitas vezes, como uma das cobras que eu apresentava nos espetáculos: quieta, mas observadora. A cobra, em nossa cultura, representa a sabedoria e a sutileza feminina. E eu sabia como usar essa sutileza diariamente. Se eu me redimi de tudo só o tempo dirá, pois até hoje trabalho em busca de minha redenção.