A Arte da Simplicidade
Um Diálogo com Lúcio Sêneca,
na Obra “Conversas na Biblioteca”
na Obra “Conversas na Biblioteca”
Carlos Cardoso Aveline
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Reproduzimos a seguir o capítulo quatro
da obra “Conversas na Biblioteca –
Um Diálogo de 25 Séculos”, de Carlos
Cardoso Aveline (Edifurb, 2007, 170 pp.)
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Ao contrário de grande número de pensadores clássicos – dos quais pouco ou nada chegou diretamente até nós em forma escrita – o neoestóico Lúcio Sêneca (4 a.C.- 65 d.C.) deixou-nos amplo e valioso material sobre sua visão do mundo. Sêneca é um notável integrante da escola estóica e para ele a idéia de viver e agir corretamente – sem medo da dor ou apego ao prazer – é um conceito central.
Além de ensaios e cartas, Sêneca escreveu peças de teatro. Numa delas, fez uma profecia certeira sobre a futura descoberta das Américas.
Catorze séculos antes de Cristóvão Colombo chegar ao nosso continente – no texto intermediário entre o primeiro e o segundo episódios da peça Medéia — Sêneca descreveu o avanço ousado dos meios de transporte marítimo, que em seu tempo já viajavam por muitas regiões do planeta, e fez o anúncio visionário da futura descoberta do “novo mundo”. Assim ficou documentado o fato de que o mundo antigo tinha notícias da existência do nosso continente.
Reproduzo a seguir o trecho exato, incluindo entre colchetes, em itálico, o significado de algumas palavras hoje pouco usadas:
“Daqui a alguns séculos, chegará o momento em que o oceano abrirá as barreiras do mundo: abrir-se-á uma terra imensa. Tétis [a deusa mitológica que é esposa do deus Oceano] descobrirá um novo mundo e Tule [a Islândia] não será mais o ponto mais longínquo da Terra.” [1]
Sêneca nasceu em Córdoba, na atual Espanha, e foi educado em Roma. Passou algum tempo no exílio. Mais tarde chegou a ser educador e conselheiro do imperador Nero. No ambiente político pouco confiável da época, sua coerência pessoal foi testada. Finalmente foi acusado de envolver-se em uma conspiração contra Nero e condenado a cometer suicídio cortando os braços e sangrando até morrer. Dono de uma lucidez implacável diante da vida, ele encarou a morte de frente. Sem medo, com tranqüila dignidade, ele falou de filosofia até o último momento, e fez do seu sacrifício pessoal uma lição de amor à sabedoria [2]. Seu corpo morreu, mas o que se pode dizer da sua presença na cultura humana? As idéias de Sêneca são, hoje, no mínimo tão atuais e inspiradoras quanto há 19 séculos. E tudo indica que não perderão atualidade no futuro.
1) Muita gente reclama da falta de tempo, e poucos gostam de envelhecer. Será que a vida humana é demasiado breve?
R: O tempo que temos não é curto, mas, perdendo grande parte dele, fazemos com que ele seja. A vida é suficientemente longa para realizar nela grandes coisas, se a vivermos bem. Mas se alguém passa o tempo no descanso e nos prazeres, e não se dedica a coisas elogiáveis, quando chega o seu momento final vemos que o tempo dessa pessoa se foi sem que ela tenha podido compreender a sua passagem.
O certo é que a vida que nos foi dada não é breve; nós fazemos com que ela seja. Não somos pobres de tempo, mas pródigos. Acontece com o tempo da vida a mesma coisa que com as grandes riquezas. Se elas ficam em mãos de pessoas insensatas, se dissipam em um instante; e ao contrário, as riquezas poucas e limitadas, estando em poder de administradores eficientes, crescem com o uso. Assim, nosso tempo de vida é bastante grande para os que fizerem bom uso dele.
2) Mas há muita gente que acredita que não tem tempo para ler, meditar ou buscar a sabedoria.
R: Não acredites naqueles que te disserem que sua profissão os afasta dos estudos sérios; eles se fazem de ocupados mas não têm tantos compromissos assim; a dificuldade para esses homens está em si mesmos.
Eu tenho tempo, meu caro, muito tempo; tenho tempo para tudo, e onde quer que esteja disponho sempre de mim. Eu me empresto à atividade profissional, não me entrego a ela; nem procuro ocasiões para empregar mal meu tempo. Em qualquer lugar que esteja, dirijo meus pensamentos de acordo com a minha vontade e medito sobre algum objeto útil. Quando estou com meus amigos, não renuncio por isso à minha personalidade, e nunca passo meu tempo com aqueles que se aproximaram de mim por circunstâncias casuais ou pelos deveres da vida social; passo meu tempo com aqueles que considero pessoas boas. Quanto a esses, estejam onde estiverem e seja qual for o século [em que viveram], meu espírito está com eles.
3) Um dos problemas do estudante moderno é que há uma quantidade enorme de livros para ler. É bom que haja variedade, por um lado, mas para alguns é difícil evitar a dispersão mental vivendo diante de tantos estímulos. Além dos livros há filmes, revistas, jornais, websites, a Internet, amigos com quem conversar, dezenas de idéias e pouco tempo para colocá-las em prática.
R: O primeiro sinal de tranqüilidade interior é saber fixar-se e não perder-se em divagações estéreis. Mas evita o excesso de leituras, porque essa infinidade de obras e autores de todo tipo pode significar superficialidade e inconstância. O estudante tem de dedicar-se a alguns autores escolhidos, alimentar-se da sua substância, para que alguma coisa fique gravada na alma.
Estar em todas as partes é não ir a parte alguma. Quem passa a vida indo de um lado para outro faz muitos conhecidos e nenhum amigo. Na leitura ocorre a mesma coisa que nas viagens; a pessoa lê depressa, correndo, sem se deter em nenhum autor. Um alimento que se engole com tamanha precipitação não nutre nem tem proveito algum. Não há nada pior, para a cura de uma doença, do que trocar continuamente de remédios. Uma ferida não cicatriza quando se troca o curativo a cada instante. A árvore que se transplanta muitas vezes não adquire vigor. (…) Ler muitos livros diferentes distrai, mas não ensina. E já que não podemos ler todos, é melhor contentar-se com ler alguns. (…) Tira das tuas leituras um pensamento para cada dia; esse é o meu método: leio muito, e tiro algum proveito.
4) A sabedoria, então, consiste em optar pela simplicidade e contentar-se com aquilo que está ao nosso alcance?
R: Eis aqui a frase das minhas leituras de hoje. É de Epicuro (…): “A pobreza se contenta com pouco”.
Mas, se alguém se contenta com pouco, já não há pobreza. Aceitar a pobreza é ser rico, porque pobre não é aquele que tem pouco, mas aquele que deseja ter mais do que tem. De que serve alguém ter caixas cheias de ouro, armazéns cheios de grãos, possuir muitos rebanhos e rendimentos, se ainda cobiça os bens alheios, e se pensa menos no que possui e mais no que pode adquirir? E qual é, portanto, a medida da riqueza? Primeiro, o necessário; depois, o suficiente.
5) Certos estudantes das obras de Platão adotam uma visão elitista da filosofia, como se ela fosse uma atividade reservada para alguns poucos seres “superiores” e aristocráticos. Você se destaca por sua postura democrática, na verdadeira tradição da sabedoria socrática…
R: Se há algo de bom na filosofia é o fato de não olhar para os estratos sociais: todos os homens, se eles se reportam à primeira origem, descendem dos Deuses. (…) O Senado não acolhe a todos, e mesmo o exército recebe com certa relutância até aqueles que depois mandará ao encontro de fadigas e perigos. Mas a virtude é possível a todos, e todos somos nobres para ela. A filosofia não recusa a ninguém e não faz escolhas especiais: brilha para todos.
6) O que é a verdadeira amizade?
R: Considerar alguém como amigo e não ter tanta confiança nele como em si mesmo é não saber todo o alcance da verdadeira amizade. Que o teu amigo seja o confidente de todos os teus pensamentos — mas, antes disso, é preciso avaliá-lo. A confiança deve vir depois da amizade, porém o discernimento deve vir antes. É um absurdo confundir as coisas e violar o preceito de Teofrasto, tendo intimidade com alguém antes de conhecê-lo, para então romper com ele ao conhecê-lo.
Medita muito antes de dar tua amizade a alguém. Uma vez dada a amizade, abre a tua alma a teu amigo, com tanta confiança nele como em ti mesmo.
Vive de tal maneira que possas revelar todos teus pensamentos até mesmo a teu inimigo; mas como sempre há coisas íntimas que os costumes sociais converteram em segredos, derrama na consciência de um amigo todos os teus pesares, todos teus pensamentos: acredita que ele é fiel, e ele será. Quantas vezes, de fato, as pessoas ensinam a enganar, temendo ser enganadas! A desconfiança provoca e autoriza a infidelidade.
7) Como se pode obter o equilíbrio entre movimento, de um lado, e estabilidade, de outro?
R: O movimento contínuo e o contínuo repouso devem ser igualmente rejeitados. O tipo de atividade que busca o barulho revela uma alma inquieta e agitada; e olhar com medo qualquer movimentação não é aproveitar o repouso, mas é cair na fraqueza e na languidez. Pensa nessa passagem que li em Pompônio: “Há olhos tão acostumados com a escuridão, que na claridade enxergam mal.” É preciso combinar os dois estados: a ação deve vir depois do descanso, e o descanso deve acontecer depois da ação. Interroga a natureza, e ela te dirá: “fiz o dia e a noite”.
NOTAS:
[1] Medéia, no final do segundo intermédio, logo antes do segundo episódio. Ver Obras, Sêneca, tradução, estudo e notas de G.D. Leoni, Clássicos de Bolso Ediouro, Ed. Tecnoprint, RJ, p. 91.
[2] Encyclopaedia Britannica, ed. 1967, volume 20, pp. 215-216.
Nota Bibliográfica:
As fontes das respostas acima são as seguintes: 1) De la Brevedad de la Vida, Sêneca, tratado incluído no volume intitulado Tratados Filosóficos – Cartas, Editorial Porrúa, México, 1998, 198 pp., ver p. 94. 2) Cartas a Lucílio, de Sêneca, no volume Tratados Filosóficos – Cartas, edição citada, ver Carta 62, pp. 168-169. 3) Cartas a Lucílio, obra citada, Carta 2, pp. 153-154. 4) Cartas a Lucílio, obra citada, Carta 2, p. 154. 5) Cartas a Lucílio, carta 44, citado por Giovanni Reale na obra História da Filosofia Antiga, Ed. Loyola, SP, 1994, volume IV, p.81. 6) Cartas a Lucílio, Editorial Porrúa, edição citada, Carta 3, p. 154. 7) Cartas a Lucílio, Editorial Porrúa, edição citada, Carta 3, p. 155.
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Sobre o mistério do despertar individual para a sabedoria do universo, leia a edição luso-brasileira de “Luz no Caminho”, de M. C.
Com tradução, prólogo e notas de Carlos Cardoso Aveline, a obra tem sete capítulos, 85 páginas, e foi publicada em 2014 por “The Aquarian Theosophist”.