Francisco era seu nome. Homem que conheceu desde muito jovem as dificuldades materiais da vida, e acostumado a trabalhar desde o nascer do sol até a noite chegar, agora se aposentava. Saudável e com muita energia, não demonstrava seus cinqüenta e oito anos. Embora de família humilde, recebeu a melhor educação possível transmitida pelo exemplo de seus pais. A única herança que não quis herdar dos progenitores foi à fé. Incrédulo, não seguia nenhuma religião e até zombava delas.
A ociosidade que a aposentadoria trouxe para seu Francisco, o deixava ansioso. Agora que já havia reformado a casa, o galpão, plantado a horta, os dias demoravam muito a passar. Relembrando o dito popular que “cabeça vazia é oficina do mal”, em pouco tempo Francisco sentiu vontade de começar a divertir-se já que até então só havia pensado em trabalho. Morando próximo à cidade, ao entardecer resolveu visitar uma casa de diversões que existia por lá. Entre bebidas, mulheres e prazeres, perdeu a noção de tempo e retornava cambaleante já de madrugada, quando ao chegar numa encruzilhada avistou uma luz fraca no chão. Chegando próximo percebeu que ali tinha um “despacho”, como chamavam aquilo por lá. Uma bandeja grande onde repousava uma ave morta, velas, charutos e uma garrafa de cachaça, além de outros materiais.
Aliado a sua falta de crença em qualquer coisa, estava agora a bebedeira e todas as energias condizentes ao lugar de onde viera. Com desdém e desaforando com palavrões, juntou a garrafa de bebida e os charutos e chutou o resto do material. Até chegar em casa bebeu quase tudo e fumou alguns charutos.
No outro dia contava para a esposa sobre o “achado” e debochava com sarcasmo. A bondosa mulher, cuja mãe em vida era médium benzedeira, respeitava todas as manifestações ligadas ao mundo espiritual, conforme ensinamentos que havia recebido e por isso chamou a atenção do marido, dizendo-lhe que, se não acreditava deveria pelo menos respeitar. “Não presta mexer com trabalho de encruza”, repetia ela preocupada.
Outras noites a cena se repetiu da mesma forma, até o dia em que ao chutar a oferenda, enxergou na sua frente um homem de capa negra, com um chicote trançado na mão. Sua perna paralisou no ar e em pânico saiu pulando numa perna só, caindo e levantando. Por uma boa distância ainda, ouvia a gargalhada daquele homem ressoando no ar.
No outro dia, sentia dor nas costas como se houvesse apanhado e só de lembrar a cena vivida na noite anterior, arrepiava de medo. Temia contar para a esposa, pois sabia que o condenaria novamente pela atitude. Esta, vendo o marido cabisbaixo e triste, perguntou se estava adoentado. Nada respondeu, pois sentia-se como se estivesse, inclusive apresentando febre. Seus sonhos passaram a ser povoados pelo homem de negro e sua gargalhada. Acordava aos gritos e suando muito. Várias noites se repetiram desta maneira, até que resolveu contar para a esposa o que havia acontecido. Ela o aconselhou a tomar umas benzeduras, convidando para ir até um terreiro na vila vizinha. Meio renitente, mas sentindo a necessidade, ele aceitou com um misto de medo e curiosidade.
Após a abertura dos trabalhos com os pontos cantados e orações, ele já se sentia mais tranqüilo. Em frente ao médium que servia de aparelho ao um Caboclo, suas pernas tremiam que mal conseguia parar em pé. Nos ouvidos agora ressoava novamente a gargalhada do homem de negro e seu corpo arrepiava sem parar. Teve vontade de sair correndo daquele lugar, mas suas pernas não o ajudavam. Auxiliado pela esposa e pelo cambono, sentou-se numa cadeira para poder ser atendido pelo caboclo.
-Ogum é que está de ronda…Ogum é que vem rondar… -cantava a corrente, enquanto a entidade limpava com uma espada de São Jorge, o seu corpo etérico impregnado pela energia captada na encruzilhada. Depois com a firmeza característica de sua linha, o caboclo ordenou que ele ficasse de pé e lhe contasse porque estava ali. Desajeitado, mas já mais tranqüilo, falou:
_ Acho que mexi com o que não devia. Andei chutando uns “despachos” na encruzilhada e me apavorei com um homem estranho, que acredito não ser deste mundo…
_ Tranqüilize que tudo o que é possível ver, ouvir e sentir é deste mundo sim. O senhor acha certo ou errado a sua atitude?
_ Ah, eu não sei… Só fazia aquilo por brincadeira…
_ E se alguém fosse até a sua casa, chegasse lá chutando os móveis e quebrando tudo, se apoderando de sua comida na hora da refeição, iria gostar?
_ Lógico que não!
_ Pois é meu senhor. Foi o que fez lá na encruzilhada e por várias vezes, não foi?
_ É, foi.
_ O que não nos pertence não pode ser por nós seqüestrado. Não importa se o que estava lá é certo ou errado diante de seu entendimento. Além do físico, aquilo tudo tinha uma duplicata etérica que pertencia a alguém no mundo espiritual, com um objetivo e endereço vibratório certo. Cabe aos homens incrédulos, no mínimo respeitar a crença e atitudes dos outros. Lá estava um trabalho de magia – a cor dela não importa – era magia! Elementos e elementares, além de entidades espirituais, lá estavam atuando, se abastecendo da energia animal e etílica e foram incomodados, desrespeitados. O que o senhor presenciou na figura do homem, nada mais foi que a atuação enérgica de seu Exu guardião lhe colocando no devido lugar, antes que a Lei tivesse que atuar mais duramente. De difícil entendimento com as coisas do espírito, não crendo em nada que não seja palpável, se fez necessário a atuação materializada. Como criança teimosa, precisou da repreensão para só então respeitar. Isso não significa que encruzilhada é lugar de Exu, pelo contrário. Os espíritos que lá buscam se energizar com as oferendas são os chamados quiumbas, espíritos que embora fora do corpo físico, necessitam ainda de energias materiais.
– Exu… cruzes! Isso é coisa do capeta!
Era momento de esclarecer a verdadeira identidade deste guardião da luz tão mal falado. E assim foi feito.
Ao voltar para casa sentia tamanho bem estar, que naquela noite dormiu tranqüilamente depois de muitas noites de sobressalto, quando não, de insônia.
Suas visitas ao terreiro de Umbanda tornavam-se assíduas onde buscava sabedoria, força espiritual e conforto para sua alma. Ele tinha uma missão que se estendia além de aprender a ter fé. Era preciso cumpri-la, por isso em pouco tempo manifestava-se através dele, seu protetor Ogum de Ronda abrindo caminho para o Exu, que chegava gargalhando e de chicote na mão. Artefatos que usava no astral para auxiliar, acordando a todos quantos estivessem esbarrando nos limites da Lei.
Ao sentir sua presença, Francisco agradecia. Ele foi privilegiado em conhecer estes artefatos, graças a Deus.
História Contada por Vovó Benta – Leni W. Saviscki