Quando os companheiros do infeliz chegaram, ele agonizava nos últimos estertores, pois dessa vez, além dos ossos partidos, haviam-se rompido as vísceras. Um filete sanguinolento escorria-lhe dos lábios entreabertos e ouvia-se a dispneia da agonia. Joaquim, feitor, chegou afobado e estacou, descrente do que via. Mas era tarde; Matias expirara ali mesmo e os homens entreolhavam-se surpresos e intrigados pelo fado implacável, cruel e vingativo, consumado no fatal acidente.
Oito quebradeiras de ossos! Santo Deus! Assim nunca vi! Isso até parece praga de madrinha! — desabafou Joaquim passando a mão na testa, vendo-se frustrado nos seus bons intentos.
Enquanto mãos piedosas erguiam dali o corpo inerte de Matias, para conduzi-lo ao necrotério, do outro lado da vida o seu espírito também era socorrido por almas benfeitoras, amparando-o amorosamente. Um sono pesado entorpeceu-o e pelas faces perispirituais espraiou-se uma expressão venturosa de paz e serenidade. Momentos depois, os espíritos auxiliares afastaram-se, respeitosamente, ante uma entidade venerável, de cabelos níveos e faces ternas nimbadas de luz, que se curvou sobre o corpo perispiritual de Matias. Em seguida, fez um aceno de despedida a todos e alçou-se, num voo angélico, conduzindo em suas mãos fulgentes a carga preciosa em direção à alguma moradia feliz!
Tempos depois o espírito de Matias, o "quebra ossos", despertou bastante surpreendido num ambiente sereno e confortante, todo iluminado por suave luz cor de topázio com reflexos róseos. Sentia-se eufórico e recuperado em suas forças vitais. Naturalmente, pensava, devia encontrar-se abrigado em moderno hospital e sob os cuidados de médicos renomados, tal a sensação de saúde e bem-estar que sentia. Procurou mover-se, com extremo cuidado, receando as dores habituais das contusões; mas estranhou a leveza do corpo, ausência de dor ou edemas provindos de contusões. Surpreso, viu-se completamente livre, sem ataduras ou moldes de gesso que tanto o incomodavam depois de cada acidente.
Ao se virar, no leito, ainda ficou mais surpreso e quase assustado, ao deparar com um ancião de cabelos brancos e fisionomia acética, que num gesto bondoso acalmou-o:
— Matias; fica tranquilo, pois a tua conformação na vida carnal libertou-te das culpas pregressas!
E ante o espanto do mesmo, prosseguiu, bondoso:
— Doravante, quando voltares à matéria, terás um fardo mais suave; mais aprendizado espiritual e menos retificação cármica. Agora estás em harmonia com a Lei que violentastes no passado, pois vivestes resignadamente o programa crucial de uma retificação espiritual. Os ossos do teu corpo físico quebravam-se sob o determinismo da Lei, mas tua alma fortaleceu-se na prova redentora. Matias arregalava os olhos sob os influxos magnéticos, que saiam das mãos do venerável mentor; sua memória clareava-se surgindo-lhe quadros nítidos na mente. Acontecimentos estranhos, mas que ele sentia tê-los vivido alhures, projetavam-se à semelhança da projeção de filmes na tela cinematográfica. Confuso, porém, consciente, viu-se travestido noutro homem; um robusto espanhol tostado pelo Sol, arbitrário, de mau gênio, agressivo, cruel e vingativo. Alguns homens da mesma têmpera cercavam-no com respeito e temor, enquanto ele transmitia instruções severas. Chamava-se Manuel Gonzales, — o contrabandista — e tinha por hábito perverso vingar-se dos desafetos, nas fronteiras de Espanha e Portugal, atirando-os dos altos penhascos, para vê-los esfacelarem-se nas quedas desamparadas contra as rochas aguçadas, quebrando-lhes os ossos!
Então Matias volveu os olhos umedecidos para o mentor generoso, e reconhecendo-o na sua indumentária espiritual, agradeceu-lhe como a criança após reparar alguma imprudência.
Uma doce paz tomou conta do seu coração, enquanto esvanecia-se dele o remorso que há muitos anos crepitava causticamente no imo da alma. Curvou a cabeça, reverente, murmurando num tom venturoso e de incontido alívio:
— Obrigado, meu Deus!
Do livro: “Semeando e Colhendo” Atanagildo/Hercilio Maes – Editora do Conhecimento.