Pelo interior do Brasil ainda resiste o costume do bebedor derramar um pouco de bebida no chão. Antes ou depois de servir-se, joga aguardente no solo. É um gesto maquinal mas alcançando todo o território nacional. Outrora era mais comum o líquido ser atirado antes de beber-se. Presentemente o uso é lançá-lo ao final, esgotando o copo. Este deve ficar limpo. Sem bebida. Identicamente em Portugal, Espanha, França, Itália etc. Enchido o copo, o que paga diz a frase ritual: Vamos dar-lhe! O homenageado deverá responder: Venha de lá, valendo exigir que o outro beba em primeiro lugar. Este retruca: Venha de lá que eu vou de cá! Tradução: “Beberei depois de você”; O homenageado sacode uma porção de “branquinha” no chão, e ingere. Passa o copo ao outro que sorve sua parte. Atualmente é o ofertante que joga no solo o que sobrou da bebida. É o comum, diariamente verificável, cerimonial antiquíssimo porque é cumprido sem que mais se conheça sua significação. Desapareceu qualquer elemento compulsivo mas continua obrigatório, indispensável no costume, fazendo parte integrante da etiqueta normal, da boa educação no plano da camaradagem. No catimbó todo o cauim (aguardente) bebido foi preliminarmente defumado com a “marca” (cachimbo do mestre) e deve uma parte ser atirada no chão em homenagem aos mestres, os soberanos dos reinos invisíveis, doadores dos “bons saberes”. Em certos catimbós a obrigação deve ser feita antes e depois de beber. Antes de tocar com os lábios e depois de haver sorvido a porção protocolar. Nos mais rústicos e antigos catimbós, o de mestre Dudu da Serrana, na margem esquerda do rio Potengi, diante da cidade do Natal, derramava-se um copo inteiro de cachaça antes de qualquer “trabalho”, logo depois de aberta a sessão e cantada a “Linha de abertura”. Nos mais adiantados onde os “mestres” tinham lido e viajado (Pará, Bahia, Recife ou Rio de Janeiro) a oferta cingia-se às gotas jogadas ao solo, antes ou depois de beber-se. Era fatal, com os “mestres” fiéis à tradição catimbozeira na legitimidade da expressão, o gesto para que o bebedor deixasse o copo inteiramente vazio. O copo com algum líquido, depois da bebida, era uma falta manifesta de respeito aos “mestres”, invisíveis e poderosos. Só existe uma explicação para este costume arraigado e natural no nosso povo. É a Libatio dos romanos e gregos, desaparecida há quase dois mil anos no uso religioso e mantida no costume inconsciente, pelos herdeiros da cultura que se dissolveu, no tempo, em Portugal e, decorrentemente, no Brasil colonial. E ficou resistindo até nossos dias. O ato de Libaro era justamente derramar água, vinho ou óleo perfumado, no chão, no lume ou no altar, oferenda aos deuses. Não se começava uma refeição grega ou romana sem a libação. Provava-se o líquido e despejava-se o restante no solo. Sem esta pequena cerimônia os deuses teriam inveja da alegria do banquete e vingar-se-iam. Para contentá-los ofereciam, antecipadamente, parte do simpósio, expresso no Libatio ritual. Era a participação sagrada no alimento terrestre. Comumente faziam a Libatio como súplica. Homero (Ilíada, XVI, 221-233) descreve a libação de Aquiles, na tenda diante de Tróia, a Zeus, senhor do raio, oferecendo-lhe vinho em taça virgem.