segunda-feira, 13 de novembro de 2017

A Feitura da Cabeça


Existem perturbações na vida de uma pessoa que levam-na recorrer a centros de Umbanda que, ao invés de solucionar essas crises, acarretam-lhes outras, que só podem ser resolvidas dentro do sistema do Candomblé. Aí, o Bori funciona como terapia provisória, até que uma Bolação ou uma perturbação física ou mental definitivas levem à iniciação completa, à Feitura da Cabeça. Diz-se então que o Orixá está pedindo a cabeça de seu filho, e a este nada resta fazer senão entregá-la. O Orixá pode comunicar sua decisão de duas maneiras: através de uma Bolação que nenhuma manipulação consegue interromper, ou através do Jogo-de-Búzios, que é um processo divinatório sempre consultado em caso de sentir-se algum tipo de perturbação.A iniciação no Candomblé é um ritual complexo, composto de rituais e etapas parciais. Em primeiro lugar, há o “Recolhimento do Barco”, a reclusão do grupo de iniciados ao “Roncó”, aposento a que só têm acesso aqueles que já foram iniciados, e no qual os noviços atravessarão o período de iniciação (que dura de três a quatro semanas). Os noviços são denominados “Iaôs” (literalmente,“esposas” dos Orixás); o grupo de “Iaôs” recolhidos ao mesmo tempo é chamado “Barco de Iaôs”. As pessoas iniciadas no mesmo Barco manterão entre si durante o resto da vida um relacionamento ainda mais estreito que aquele mantido entre irmãos-de-santo de barcos diferentes. Espécie de gêmeos, os irmãos-de-barco mantêm contudo relações hierárquicas que dependem do Ori de cada um. O Barco de Iaôs comporta oito classes denominados respectivamente, de acordo com a ordem de saída (do mais velho para o mais novo), de: Dofona, Dofonitinho, Fomo, Fomotinho, Gamo, Gamotinho, Dotelo e Dotelotinho. Essas classes são ocupadas pelos filhos-de-santo de acordo com uma ordenação específica dos próprios Orixás: Exu, Ossaim, Ogum, Oxóssi, Oxumarê, Oxum, Iansã, Iemanjá, Xangô, Obaluaiê, Tempo, Logunedé, Nanã, Obá, Ewá e Oxalá. Desse modo, se tivéssemos num mesmo Barco, filhos de (um de cada Orixá, pois parece que dois filhos do mesmo santo não são nunca iniciados no mesmo Barco): Ogum, Iansã, Tempo e Nanã, as classes do Barco ficariam assim preenchidas: 
Dofona:  filho de Ogum
Dofonitinho: filho de Iansã
Fomo: filho de Tempo
Fomotinho: filho de Nanã
O Barco é composto por um mínimo de um filho-de-santo (que será então Dofono do Barco) e um máximo de sete. Um oitavo Iaô só é incluído no caso de haver “Quizila” entre Orixás já representados no Barco.
Quizila é o termo geral que recobre todos os tipos de tabus (alimentares, de contato…), e existem casos de Quizilas entre Orixás. Por exemplo, sustenta-se que Logunedé “não se dá” com Oxalá; contudo a saída de um Barco de duas Iaôs, uma de Logunedé e outra de Oxalá: nesse caso, sustenta-se, é possível efetuar uma série de “Fuxicos” e “tirar” o Barco normalmente. Existe contudo um caso em que não há manipulação possível: quando se encontram no mesmo Barco um filho de Exu (que será sempre Dofona desse Barco) e um de Oxalá (que será sempre o último a sair). Esses dois Orixás são absolutamente anti éticos, e enquanto Exu exige a presença do azeite-de-dendê na Feitura, Oxalá o exclui irremediavelmente. Para que um tal Barco — denominado de Barco Quente caracterizando o perigo que ele encerra, perigo esse que se estende a todos os membros do barracão e até mesmo aos vizinhos — possa ser tirado, o único meio é apaziguar a quizila; faz-se isso incluindo entre os Iaôs um filho de Oxum. Esta Orixá, senhora das águas doces, teria a propriedade de “lavar” a quizila, fazendo com que tudo corresse bem. Um barco completo, ou seja, com as oito classes preenchidas, inclui sempre filhos de Exu, Oxalá e Oxum. Um desses barcos composto de filhos dos Orixás: Oxóssi, Iemanjá, Exu, Obaluayê, Oxum, Xangô, Oxalá e Tempo, ficaria então assim classificado:
                                        Dofona                              Exú

 Dofonitinho                       Oxóssi

Fomo                                 Oxum

    Fomotinho                         Iemanjá

 Gamo                                Xangô

     Gamotinho                        Obaluaiê

 Dotelo                               Tempo

Dotelotinho                       Oxalá

As classes não guardam pois relações diretas com os Orixás, mas com as relações entre os Orixás presentes naquele Barco específico (apenas Exu, quando presente, ocupa classe fixa em qualquer Barco). Os filhos-de-santo classificados nas classes mais jovens do Barco devem respeito àqueles colocados nas mais velhas.
A Dofona do primeiro Barco de um terreiro é denominada Rombona, e deve ser respeitada por todos os outros filhos-de-santo daquela casa.

O Recolhimento do Barco e a distribuição dos Iaôs pelasclasses levam diretamente a um dos pontos centrais do Candomblé: aidentificação do Orixá de determinado filho-de-santo. Essa identificação precede, evidentemente, a Feitura, mas só vem a serdefinitivamente confirmada durante esta. Em primeiro lugar, há umaidentificação tida como “intuitiva”: olhando-se para a pessoa,diz-se o Orixá dono de sua cabeça. Esse sistema, precário ainda,está assentado em crenças que atribuem aos filhos de cada Orixá umtemperamento, e às vezes um destino, específicos (há uma identificação menos freqüente de tipos físicos). As seguintesidentificações são efetuadas:

Orixá             Caráter do Filho

Exu                Bom. Prestativo.

Ogum            Prestativo. Perseverante. Pacificador.

Oxóssi           Desleixado. Desinteressado. Valente.

Obaluayê      Ranzinza. Vingativo. Decidido.

Tempo          Ranzinza. Vingativo. Decidido.

Logunedé     Manhoso. Astuto.

Iansã           Agressivo. Desinibido. Ambicioso.

Xangô               Agressivo. Desinibido. Ambicioso.

Oxum                Reservado. Sonso. Medroso. Vaidoso.

Oxumarê           Traiçoeiro. Invejoso.

Iemanjá            Calmo. Vaidoso. Ranzinza. Maternal.

Nanã                 Ranzinza. Infeliz no amor.

Ossaim              Inteligente. Interessado.

Oxalá                Ranzinza. Ruim.

Em todos os casos, exceto com os filhos de Exu e de Oxalá, a personalidade do filho repete a do Ori, tal qual definida miticamente. Assim, Ogum é o vencedor das demandas e seus filhos, pacificadores; Oxumarê é associado à cobra, e seus filhos são traiçoeiros; e assim por diante. Nos casos de Exu e Oxalá há contudo uma inversão: sustenta-se que se uma pessoa é ruim demais,nenhum Orixá a desejará como filho, cabendo então a Oxalá, “pai de todo mundo”, tomar conta de sua cabeça.Essa classificação de personalidades ou caracteres, no entanto, não deve ser levada muito a sério. É utilizada em tom jocoso para, por exemplo, recriminar alguém que está sendo demasiadamente ranzinza (“parece uma filha de Nanã…”), ou para pôr em evidência um defeito de alguém (“todo filho de Oxum é medroso…”), etc. Dessa forma, embora acreditando que esse quadro serve de guia para a primeira identificação do Orixá (efetuadaatravés do “jeito” da pessoa), cumpre ressaltar que tal identificação é provisória e quase nunca é mantida ao longo do desenrolar da carreira do filho-de-santo.É o Jogo de Búzios que decidirá qual o verdadeiro Ori de alguém (e, além do Ori, todo o Carrego de Santo que se traz na cabeça). 

O Jogo de Búzios, ou Delogum, consiste nesse caso em dezesseis búzios especialmente preparados que são jogados pelo pai-de-santo sobre uma mesa, fornecendo dezesseis combinações, cada posição sendo chamada de Odu. Cada Odu significa um Orixá “falando”, e esse processo serve tanto para a descoberta dos Orixás de alguém, como para a previsão de seu futuro. O jogo pode ser jogado para qualquer pessoa, e precede necessariamente o Bori,pois este é, como dissemos, uma propiciação feita ao Ori da pessoa, que deve portanto ser conhecido de antemão. O resultado do jogo contudo não é, a priori, inequívoco: diz-se que dois ou mais Orixás podem estar “brigando” pela cabeça da pessoa, e que isso pode iludir o pai-de-santo durante o jogo. 

É apenas durante o período de recolhimento que precede a Raspagem da Cabeça, momento culminante da iniciação, que o verdadeiro Orixá será definitivamente confirmado. Pode acontecer inclusive que a poucos dias da Saída do Barco o Ori ainda não esteja determinado, atribuindo-se isso muitas vezes ao fato do médium ter frequentado a Umbanda, pois o excesso de Eguns em sua cabeça confundiria o jogo. Num dos processos de iniciação acompanhados, a futura filha-de-santo era tida como sendo de Iansã, usando contas dessa Orixá e tendo dado Bori para ela. Ao ser recolhida, Iansã “deixou de falar” no jogo, entrando Bombojira (qualidade feminina de Exu). 

Poucos dias antes de sua saída, Bombonjira também se afastou,surgindo Logunedé, Orixá para o qual ela foi raspada. E em vários outros casos acompanhados o resultado final foi diferente daquele que se supunha correto no início: uma pretensa filha de Oxum revelou-se de Oxóssi; uma outra de Iansã acabou sendo feita para Oxalá; e uma terceira que ser presumia de Oxalá foi raspada para Obaluaiê. Essa mudança de Ori não é contudo obra do acaso: o pai-de-santo tem que fazer uma série de Fuxicos que afastem os “falsos Oris” e permitam que apenas o verdadeiro se mostre. Caso contrário, corre-se o risco de raspar a cabeça para o “santo errado”, engano que será fatalmente cobrado pelo Ori verdadeiro, acarretando uma série de transtornos para o filho-de-santo que,para superá-los, terá que atravessar nova iniciação, com outro pai-de-santo que “tirará a mão” do pai-de-santo anterior de sua cabeça, raspando-a em seguida para seu Orixá verdadeiro. 

Um pai-de-santo pode cometer esse engano por dois motivos: por incompetência — prejudicado às vezes, como vimos, pelo próprio filho que, antigo freqüentador de Umbanda, traz a cabeça cheia deEguns (nesse caso, a única solução é dar um Descarrego, ritual que afasta os Eguns, no filho) — ou por Marmotagem. Diz-se que um pai-de-santo comete uma Marmotagem quando pratica algo que ele sabe errôneo com o único intuito de se auto-promover. No caso de uma iniciação, um pai-de-santo pode forjar um “santo difícil”, tratamento dispensado a certos Orixás que têm pouco filhos entre os homens. No caso desses Orixás — Exu, Logunedé, Oxumarê, Ossaim, Obá, Nanã, Oxalá e algumas qualidades dos demais Orixás —possuírem filhos entre os membros de determinada casa de Candomblé, isso significa Axé (força) para o terreiro, e prestígio para o pai-de-santo que o comanda. Desse modo, o processo de iniciação, após a identificação do Orixá, o recolhimento do Barco, a confirmação do Orixá, prossegue com a cerimônia de Raspagem da Cabeça. Esse ritual só pode ser presenciado por quem por ele já passou, ou seja, por filhos-de-santo já iniciados. Segundo as descrições disponíveis, o pai-de-santo corta os cabelos do Iaô, que atravessa tudo incorporado com seu Orixá, e em seguida pratica a Catulagem, que consiste em abrir um orifício no centro da cabeça — o Ori — por onde penetra e se assenta o Orixá. Esse orifício recebe o sangue dos animais de duas e de quatro patas pertencentes a seu Orixá, bem como o sumo de suas folhas. Após isso, o orifício é coberto pelo Adoxo, que assegura que apenas o Ori, ou apenas as entidades que ele permitir, se manifestarão naquele Ori. Diz-se então que o Orixá está assentado naquela cabeça. Ao mesmo tempo, o Orixá é assentado em seu Ibá ou assentamento, conjunto formado por um prato, os“instrumentos” do Orixá, umas pedras e outros objetos sagrados,que é tido como um “duplo” do Ori do filho-de-santo.A etapa seguinte da iniciação é a Saída do Iaô, ritual público que marca a apresentação do novo filho-de-santo. A Saída é feita durante um Toque comum, embora festivo, e é dividida em quatro saídas parciais: na primeira, o Iaô sai vestido e pintado de branco, homenagem a Oxalá, Orixá supremo; na segunda, vestido e pintado com as cores de seu Orixá, o Iaô é “apresentado à praça”;na terceira, sai vestido com as roupas e portando os instrumentos específicos de seu Orixá, e é a saída em que a divindade toma Rum,ou seja, dança, pela primeira vez; finalmente, a quarta e última saída é conhecida como a do Oruncó, pois é aí que o Iaô, incorporado como em todas as outras saídas, grita o nome de seu santo, nome que não é entendido por nenhum dos presentes, pois só pode ser conhecido pelo pai-de-santo do noviço que, ele próprio,não o conhece. O Iaô retorna então para o Roncó de onde voltará mais tarde para a Tirada da Quizila e o Batizado do Erê.

A Tirada da Quizila é feita com o Iaô consciente, e consiste na apresentação de alguns objetos de uso cotidiano para que se retome a familiaridade com eles. Se isso não for feito e o Iaô, ao voltar para casa, tocar em algum objeto cuja Quizila não foi tirada, ele fatalmente virará com o santo. Certas Quizilas são contudo mantidas, algumas apenas temporariamente (por exemplo,comer apenas em seu próprio prato, de ágate, não tocar em tesoura, vestir-se só de branco — durante os três meses do Quelê; abster-sede ir à praia — durante um ano), enquanto que outras possuem um caráter permanente. Essas últimas são sobretudo tabus alimentares: cada filho-de-santo é proibido de comer um ou mais dos alimentos de seu Orixá, embora, como o número de alimentos de cada Orixá é grande, essas proibições não coincidam para todos os filhos do mesmo Orixá. Alguns filhos de Omolu não podem comer laranja-lima, outros abacaxi, e assim por diante (durante a iniciação o pai-de-santo estabelecer as quizilas específicas de cada filho). 

A quebra de uma Quizila traz sérios problemas físicos, podem acarretar até mesmo a morte do infrator. Se a Feitura cristaliza a possessão pelo Orixá (que já ocorre menos regradamente após o Bori), é o Batizado do Erê que consagra a possessão por essa entidade (embora, durante o período de Recolhimento, o Erê se incorpore, pois, como dissemos, é através dele que o Iaô aprende rezas, cantos, etc.). Após a Tirada da Quizila, o Iaô vira com o Erê que é então batizado com água e sal, recebendo seu nome ou do pai-de-santo ou de um padrinho ou madrinha por ele iniciado. Trata-se então de um segundo padrinho,pois por ocasião do Oruncó há também um padrinho do Orixá que dança junto a ele e faz a pergunta que desperta o Oruncó do santo.

Após essa seqüência de cerimônias (Saída, Tirada da Quizila, Batizado do Erê), efetuadas todas durante o mesmo Toque, o Iaô volta para o Roncó de onde só sairá no dia seguinte para ir a uma igreja católica onde bate palmas (“bate paó”) frente ao portão, estando então livre para voltar para casa. No entanto, durante os três meses que se seguem à saída, o filho-de-santo continua sendo chamado de Iaô e se encontra em período de Quelê. O Quelê é um colar de palha entremeado de búzios que, preso ao pescoço do Iaô,denota a fase transitória em que este ainda se encontra. Esta fase é bastante perigosa porque a cabeça do Iaô ainda não está firme,podendo maus fluidos (Eguns) penetrarem através do corte feito em seu Ori durante a Feitura. Por isso, ele deve andar com a cabeça sempre coberta, vestido de branco, e evitar todo contato corporal profano. Ao mesmo tempo, por ocupar a posição hierárquica maisbaixa no conjunto dos filhos-de-santo, deve pedir bênção e respeitar todas as pessoas iniciadas no Candomblé. Além disso, são freqüentes as manifestações do Orixá e do Erê nesse período, motivo que leva o Iaô a estar sempre próximo a alguém que saiba desvirar o santo. Essa fase se encerra com uma cerimônia simples, a Caída do Quelê, que libera o Iaô das diversas restrições a que estava sujeito, e o transforma num Vodúnsi, ou seja, num filho-de-santo propriamente dito.