Mindfulness:
como domar a sua mente aqui e agora.
A meditação não é mais a mesma. Trocou a religião por um mercado de US$ 1 bilhão e agora atende por mindfulness. E só há benefícios na técnica.
Por Letícia González, com ilustrações de Zé Otávio
Para o dia a dia
Dá para aplicar as técnicas do mindfulness em quase todos os momentos do seu dia, da caminhada à hora do almoço.
Olhe o caminho
1. De pé, repare na gravidade agindo sobre seu corpo. Sinta a pressão na sola dos pés e tente ver qual detém mais apoio.
2. Só então, comece a andar. Repare como seus braços balançam e como as pernas se intercalam. Note como o joelho se dobra e o pé bate no chão.
3. Você vai se sentir ridículo, mas tente se mover de forma natural. Observe os barulhos ao seu redor.
4. Quais as sensações dos dedinhos enquanto eles se dobram? Se algo o distrair, traga a atenção de volta.
Ganhe equilíbrio
1. Imagine um fluxo de luz solar em estado líquido entrando pelo topo da cabeça, e preenchendo seu corpo de alto a baixo.
2. Visualize o fluido amarelo enchendo o corpo como a água num vaso. Perceba como a luz é clara e ampla.
3. A luz vai dissolvendo tensões e sobe até chegar no rosto. Para encerrar, volte aos sons ao redor.
S.O.S
1. Encontre um lugar tranquilo por três minutos. Inspire e expire com vontade. Faça-o novamente.
2. Imagine: das 7 bilhões de pessoas da Terra, quantas se sentem exatamente como você agora?
3. Por piores que sejam seus pensamentos, focar só neles tende a deixá-lo ainda mais nervoso.
Pense no prato
1. Observe as cores do seu prato, como se estivesse em um restaurante exótico. Sinta o cheiro e note a salivação da boca.
2. Leve a primeira garfada à boca, reparando no movimento do braço. Bote a comida na língua com textura e temperatura.
3. A esta altura, o gosto parece diferente do que o imaginado. Mastigue devagar e repare nos músculos usados para engolir.
Outras técnicas
Esta reportagem em 10 minutos
1. Encontre um lugar calmo, marque dez minutos e faça um pacto de só levantar quando o alarme soar. Inspire e expire cinco vezes. Feche os olhos e cheque o corpo.
2. “Escaneie” o corpo de cima a baixo e repare nas partes mais tensas. Não tente mudá-las. Agora observe nas partes relaxadas. Repare nos pensamentos sem alterá-los.
3. Conte a respiração até dez e recomece. É normal que os pensamentos atrapalhem. Pare quando o alarme tocar, abra os olhos e não faça nada por alguns segundos.
Vença a insônia
1. Embaixo das cobertas, de barriga para cima, repare em como o corpo se sente: leve ou agitado? Agora, relembre cada momento do seu dia como num filme: levantou, tomou café, saiu de casa etc.
2. Não é preciso mais do que 30 segundos para percorrer o dia todo e chegar ao momento presente. Respire profundamente e, ao exalar, sinta o corpo afundando um pouco mais na cama.
3. Então, começando pelos pés, imagine “desligar” músculo por músculo, parte por parte. Se ainda não estiver dormindo quando terminar, comece, lentamente, a contar de mil até zero. Mil, 999, 998, 997…
Drama interno
Mas, se a calma faz tão bem, por que temos tanta dificuldade em alcançá-la? A culpa é do nosso cérebro altamente desenvolvido. Ele adora inventar problemas onde eles não existem.
Em uma crise, por menor que seja, nossa mente detecta uma situação de risco e se apronta para matar ou morrer. Acontece que, na maioria das vezes, o perigo não é iminente. São nossos cérebros racionais e criativos que imaginam a ameaça imediata.
“Para o bem e para o mal, temos a capacidade de representar mentalmente as ameaças”, explica a psicóloga Érika Leonardo de Souza, que recebe muitos pacientes bipolares em seu consultório.
Esse poder imaginativo nos faz reagir antes da hora e, em demasia, libera mais cortisol, o hormônio do stress. “Se eu pudesse dizer ao meu cachorro que um rato vai entrar na cozinha daqui a meia hora, ele continuaria a se lamber.
Iria pular ou fugir só quando visse o roedor. Mas, se digo o mesmo a uma amiga, o sofrimento dela começa imediatamente”, afirma. Aplicar o mindfulness ajuda a distinguir pensamentos da realidade e descer os pés da cadeira.
O pesquisador de religiões Willard Johnson, autor de uma obra clássica sobre as origens da meditação, acredita que a introspeção profunda só aconteceu depois que descobrimos o fogo.
Além de garantir carne assada e proteção, as chamas domesticadas permitiram que mulheres e homens à beira de uma fogueira pudessem pensar em algo além das feras rondando por perto.
Foi então que, quando ainda éramos hominídeos, os animais selvagens deixaram de ser uma ameaça 24/7. Isso pode ter liberado a mente para voltar-se para dentro.
“Apesar da afirmação de arqueólogos de que só há cerca de 50 mil anos a evolução humana propiciou a capacidade cerebral que persiste até hoje, quero crer que pelo menos a possibilidade de êxtase existe desde tempos ainda mais remotos”, afirma Johnson no livro Do Xamanismo à Ciência – Uma História da Meditação.
Ao acompanhar o movimento das labaredas por horas a fio, o ser humano se viu, talvez, absorto pela primeira vez. E deu valor às chamas por isso também. “O fato de tantas religiões primitivas terem usado o fogo no ritual e no simbolismo confirma o poderoso domínio que esses elementos exercem sobre a consciência humana”, escreve o autor.
Fatos comprovados
Em 2005, uma equipe liderada pela neurocientista Sara Lazar fez testes de ressonância magnética em um grupo dividido entre meditadores e não meditadores.
Pela primeira vez, encontraram diferenças marcantes na estrutura física do cérebro dos dois perfis. Nos meditadores, o córtex pré-frontal tinha mais massa cinzenta, o que indica mais capacidade de memória e tomada de decisões.
Além disso, os cinquentenários desse grupo pareciam ter 25 anos de acordo com suas imagens cerebrais. A conclusão foi que a contemplação pode mudar o formato do cérebro como um exercício com halteres muda um músculo. Mas ficou a dúvida: e se essas pessoas já tivessem nascido assim?
Em 2010, então, o laboratório dela fez uma nova pesquisa, dessa vez só com pessoas que nunca haviam meditado na vida.
Ao longo de dois meses, metade seguiu sua rotina e a outra iniciou sessões de 40 minutos diários de técnicas de respiração e visualização. Quando as oito semanas acabaram, o hipocampo de quem meditou havia crescido.
A área é importante para o aprendizado, a memória e a regulação de emoções e, como ocorre no caso do córtex, um volume maior indica melhora nas funções correspondentes.
Mas esse não foi o único achado. A equipe de Lazar, que mantém um laboratório em Harvard, reparou também que uma parte no cérebro dos participantes estava menor.
A amígdala, responsável pela reação de sobrevivência, o clássico “luta ou fuga”, havia perdido tamanho após o treino. Mais um bom resultado. Afinal, o acionamento excessivo dessa região gera ansiedade e pode levar a ataques de pânico.
Em 2013, um time de psicólogos da mesma universidade confirmou que, além das mudanças neuronais, a meditação podia reforçar comportamentos positivos, como a compaixão.
Eles dividiram o grupo entre os que fariam o curso de oito semanas e os que permaneceriam numa lista de espera. Ao final desse tempo, convocaram todos de volta para um teste de memória, falso.
O que observaram mesmo foi o comportamento na sala de espera, onde uma atriz entrava mancando com o pé engessado enquanto outros atores fingiam ignorar seu sofrimento.
Aí veio a diferença. Das pessoas que não meditaram, apenas 18% se levantaram para dar lugar. Entre as que passaram pelo mindfulness, o número foi de 50%. Três vezes mais gentileza.
A técnica também já foi colocada à prova com um grupo de desempregados, uma turma naturalmente mais propensa ao stress.
Uns meditaram, outros foram enganados com aulas de relaxamento cheias de distrações que quebravam a concentração. Quatro meses depois, o primeiro grupo mantinha índices melhores de bem-estar e saúde em geral.
E, desde os anos 2000, psiquiatras tratam pacientes com depressão refratária, a que aparece várias vezes ao longo da vida, com o mindfulness.
O médico Mark Williams, do Departamento de Psiquiatria da Universidade de Oxford, na Inglaterra, foi um dos três responsáveis por mesclar meditação com terapia cognitiva e oferecer o tratamento a quem já teve três ou mais crises intensas.
Era a MBCT (em inglês: “terapia cognitiva baseada em mindfulness”). Nascia assim mais uma sigla de sucesso: estudos mostraram que ela tem resultados tão bons quanto o uso de remédios.
Hoje, o governo do Reino Unido a recomenda como primeira opção na prevenção de novas crises. Se lembrarmos do estudo de Sara Lazar, veremos a relação: pessoas deprimidas costumam ter o hipocampo menor, justamente uma das áreas que aumentam após a meditação.
Na prática, manter-se no presente ajuda a combater a espiral de sintomas. Como todo mundo, quem já sofreu de depressão vai ficar triste de vez em quando
. “O problema é que a pessoa logo pensa: ‘está voltando’”, diz a psicóloga Érika, que é coordenadora de pesquisa do Mente Aberta, um programa de extensão da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) que oferece treinamentos a pacientes do SUS.
As sessões ocorrem numa sala de aula do campus Santo Amaro, na zona sul de São Paulo. Sob a luz branca, pacientes seguem as instruções para que observem o que estão sentindo.
Às vezes, saem da sala em fila e caminham lentamente, um pouco até de olhos fechados, tentando prestar atenção nas sensações da sola do pé.
Às vezes, apenas ficam concentrados contando respirações. Como todas as técnicas do mindfulness, parece um exercício ridículo para quem observa de longe. Mas, para quem o pratica, o hábito só traz vantagens. E pode mudar a sua vida para melhor.
Você está com problemas para manter a atenção plena? Leia aqui.
1. Dormi, e agora? Apesar de comum na fase inicial, adormecer não é o objetivo. Jogue água fria no rosto, evite meditar tarde da noite e mantenha os olhos abertos durante toda a sessão. Faça o que for preciso para permanecer alerta, como faria ao volante.
2. Fico viajando Não adianta ficar com raiva: pensar no churrasco de domingo ou na conta do veterinário é natural e inevitável. Conduza a atenção de volta à respiração assim que se flagrar vagando, quantas vezes for necessário.
3. Não tenho disciplina Os professores recomendam liberar a agenda sempre no mesmo horário, ao menos nas oito primeiras semanas. Comece com dez minutos, depois 20, até chegar a 40. Tente fazer sessões de segunda a sábado. Em dois meses, os benefícios serão notórios e a rotina, mais natural.
4. As costas doem Aprender a aceitar sensações desagradáveis faz parte da meditação, mas ela não precisa ser uma tortura. Priorize o conforto e sente-se numa cadeira. Pernas de índio valem apenas se sua flexibilidade permitir.
5. Não vejo resultados Ter grandes expectativas atrapalha a prática. Você vai, sim, se sentir mais calmo e feliz, os estudos comprovam. Mas focar nos resultados impede de prestar atenção no exercício.
Teoria e pratica
O último minuto do jogo começou empatado. Então teve cesta de três, teve retranca para segurar a vantagem e, finalmente, teve choro.
Em junho, o Cleveland Cavaliers, um time de fãs que não desistem nunca, ganhou seu primeiro troféu na NBA. No meio da quadra, soluçando alto, via-se LeBron James – 31 anos, 113 quilos e quatro insígnias de melhor jogador da liga de basquete americana –, o homem a quem muitos atribuem o feito.
Dois anos antes, ele havia desviado de uma trajetória ascendente para voltar ao time onde tudo começara, ainda adolescente e filho de mãe solteira em apuros.
Chegou muito perto do troféu em 2015 e, neste ano, voltou, perseverou e venceu.
Como a história atesta, para se destacar entre os melhores do mundo é preciso mais do que boas intenções. Além da constância, há um magnetismo entre bola e atleta que é essencial – a ele, os narradores dão o nome de “flow”. Fluxo. E é isso mesmo.
Pelo tempo de uma ou 15 cestas, os jogadores são levados por uma dança que mistura passes perfeitos, sincronicidade e pontaria surreal.
Ficam invencíveis, como num transe. E não é exclusividade da categoria: o esporte de alta performance está cheio do fenômeno. A diferença é que, hoje, pessoas como LeBron treinam a mente para chegar ao flow.
Enquanto os flashes estouram nos intervalos e os assistentes técnicos riscam as pranchetas com voracidade, não raro o jogador está lá, olhos fechados, imóvel em meio aos gritos da torcida.
Motivo: ele aderiu ao mindfulness, uma técnica de meditação e exercícios de tradição asiática adaptada para o Ocidente. Resumindo ao máximo, a ideia é ensinar a ter foco no presente – e não nas expectativas para o futuro ou nos traumas do passado.
Tudo com a ajuda da respiração. A técnica hoje pode ser aprendida em salas de aula, audioguias e livros como o The Mindful Athlete (O Atleta Mindful, sem edição no Brasil), do psicólogo George Mumford, o “mestre do fluxo”.
Mumford colocou times inteiros para meditar e mudou a performance de Kobe Bryant e Michael Jordan, que já atribuíram vitórias importantes à prática. Eles não são os únicos entusiastas.
Hoje nos EUA há mais de 500 instituições dedicadas ao mindfulness. No Brasil, a secretaria da Educação do Espírito Santo já adotou treinamento para professores, e cursos em grandes cidades são oferecidos por centros como a School of Life, do filósofo suíço Alain de Botton.
Os adeptos vão da apresentadora Oprah Winfrey a crianças de bairros pobres, e o leque de benefícios comprovados é igualmente amplo.
Com fé ou sem, a meditação é capaz de diminuir dores crônicas e pressão arterial, manter o cérebro jovem (a ponto de a ciência estar pesquisando sua eficácia na prevenção do Alzheimer), evitar crises de ansiedade e depressão e aumentar a criatividade e os resultados nas escolas e no trabalho
– não à toa, executivos de alto escalão se dizem adeptos e grandes corporações são simpáticas à causa.
Ela faz fumar menos, mesmo que a pessoa não esteja tentando parar, e é eficaz para tratar a síndrome do stress pós-traumático, comum a quem já viveu episódios de violência como um assalto.
E, além de amenizar quadros extremos, é associada a um efeito muito falado, mas difícil de medir: o bem-estar.
Sem xamãs ou experiências extracorpóreas, o mindfulness é projetado para o sofá de casa. Siga as instruções por 40 minutos ao dia, e lembre-se: a simplicidade pode ser trabalhosa.
Inspira, expira
1. Sinta o peito dilatar e, em seguida, expire pela boca. Repita três vezes e então feche os olhos, voltando ao jeito natural de respirar.
2. Observe o movimento sutil de subida e descida provocado no corpo.
3. Se ajudar, apoie as mãos sobre a barriga, conte até dez e repita. Um ao inspirar, dois ao expirar, três ao inspirar e assim por diante. Cada vez que a mente se distrair, recomece.
Vigiai vossos pensamentos
1. Transfira a atenção para os pensamentos. Veja como eles surgem na mente feito bolhas de ar.
2. Cada ideia não dura muito tempo. Uma substitui a outra. Tente ver o que carregam: desconforto, vergonha, prazer, calma. Repare nos pensamentos sobre passado e futuro.
3. Se perder o foco, volte à respiração. Depois de três minutos (o suficiente para não ser arrastado pela maré de ideias), tente descrever seu estado de espírito.
O som ao redor
1. De olhos fechados, observe sua postura e sinta: as pernas tocam a cadeira, os pés se apoiam no chão e a roupa roça a pele.
2. Repare também nos outros sentidos. Que cheiros pode identificar e qual o gosto da sua boca agora? Faz calor ou frio?
3. Não procure por barulhos; apenas ouça os sons que chegam ao seu ouvido. Se há música, preste atenção nas notas e no silêncio entre elas. Imagine as partes da melodia entrando e saindo do seu corpo pelos poros da pele.
Selfie interna
1. Deite-se e feche os olhos. Sinta a barriga subir e descer, e perceba o toque das costas sobre a superfície.
2. Então, leve sua atenção para o pé esquerdo, mais especificamente os dedos. Que sensações aparecem?
Talvez você diferencie um dedo do outro, talvez não.
3. Devagar, migre a atenção para a sola do pé, o calcanhar, o tornozelo. Vá subindo lentamente pela perna, focando nas sensações que encontrar pelo caminho, como coceiras, dores, calor ou relaxamento.
4. Percorra o corpo todo dessa forma, lentamente.
Piloto manual
A “atenção plena”, tradução mais apropriada de mindfulness, é o estado mental do óbvio ululante. Se faz calor, você tem consciência do quão quente está. Se percebe uma música tocando no andar de baixo, registra que ouve.
Se está com fome, repara no desconforto. E só. Você já sabe onde está, mas mapeia o ambiente mesmo assim. Enquanto faz isso, não julga nada nem ninguém, não faz planos de ligar o ar-condicionado nem amaldiçoa o gosto musical do vizinho.
Apenas observa e absorve o que se passa ao redor – e, principalmente, dentro da sua cabeça. A experiência faz bem para o cérebro e, para alcançá-la, é possível usar alguns exercícios – que estão todos ao longo desta reportagem.
Acompanhar o vai-e-vem da barriga durante a respiração é um deles. Escorregar a atenção pelo corpo, outro. Os ensinamentos soam banais quando descritos. Mas, na prática, são bastante difíceis.
Os primeiros registros de práticas para treinar a mente apareceram nos Vedas, as escrituras sagradas indianas, de cerca de 2 mil a.C. Mais adiante, Buda em pessoa divulgou suas próprias técnicas de mentalização e prometeu o fim do sofrimento humano com um simples fechar de olhos.
Ficar quieto e atento ao mundo interno era a regra de ouro também do jainismo, mais uma tradição milenar indiana, e do taoísmo, desenvolvido na China antiga, de 300 a.C. É curioso ver que dicas divulgadas por Chuang-Tzu, um dos principais propagadores da filosofia Tao nesse tempo remoto, encontram eco até hoje.
Um exemplo: comer e trabalhar como máquina, sem cuidar da mente, é pedir para ficar doente.
O sábio chinês também argumentava contra a mania universal de criar expectativas. Diz ele nas suas escrituras: “Quando você participa de uma competição de tiro ao alvo com arco e flecha, se o prêmio é insignificante, atira com perícia”.
Se o prêmio aumenta, prevê Chuang-Tzu, você se atrapalha. Se o troféu vale ouro, tem os nervos destruídos. “Sua perícia é a mesma nos três casos.
Quem olha com demasiada firmeza para fora confunde-se por dentro.” No século 20, toda essa sabedoria milenar ganhou roupa nova pelas mãos do biólogo americano Jon Kabat-Zinn, hoje com 72 anos.
Quando ainda era um estudante do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts) no início dos anos 1970, Zinn assistiu a uma palestra de um mestre zen que mudou sua vida.
Na época, as filosofias vindas da Índia chegavam às universidades trazidas pelo interesse dos jovens.
Expandir a mente era a palavra de ordem nas comunidades hippies e para isso valiam drogas, rebeldia e misticismo. Os mais famosos adeptos dessa moda foram os Beatles.
Eles contribuíram com a onda ao viajar para um retiro do guru Maharishi no norte da Índia, arrastados até lá pelo guitarrista George Harrison, o “Beatle Tranquilo”.
Em Massachusetts, Kabat-Zinn viveu um contentamento parecido. Seu modo de lidar com o mundo havia mudado depois do dia em que começara a meditar.
Questionava-se como a ciência poderia explicar isso. Até que, em 1979, após um retiro, veio a ideia. Ele criou uma clínica experimental com outros dois colegas e passou a ensinar técnicas budistas a pacientes com dores crônicas.
“As reações vieram rapidamente. Os pacientes nos diziam que aquilo havia mudado suas vidas”, diz ele no vídeo de uma de suas aulas, que ministra até hoje.
Os voluntários não apenas passaram a relatar níveis menores de dor, mas conseguiam manter distância em relação à doença, se identificando menos com os sintomas e mais com as pessoas que realmente eram.
O programa, estruturado em oito semanas de aulas e deveres de casa, foi incorporado pela faculdade de medicina da Universidade de Massachusetts e ganhou o nome de Redução do Stress Baseada em Mindfulness (MBSR), ou só a última palavra mesmo.
É a base para todas as aplicações usadas na área da saúde hoje. Do Brasil à China, bulimia, vício em drogas, ansiedade e até esquizofrenia são tratadas com a técnica.
Mas por que esse e não qualquer outro método contemplativo se espalhou pelo mundo? E por que esse nome, “mindfulness”, uma palavra incomum até no inglês, em vez da boa e velha “meditação”? Afinal, ambos têm raízes numa única tradição milenar.
“O que Jon, que não tem formação monástica, fez foi simplificar experiências em um programa de oito semanas”, diz a bióloga Elisa Kozasa, pesquisadora do Instituto do Cérebro do Hospital Albert Einstein e uma das pioneiras no estudo do bem-estar no Brasil.
Hoje, ela analisa os efeitos do tai chi em idosas e da meditação em mulheres em altos cargos de gerência. Conhece bem o ambiente acadêmico e sua engrenagem, duas coisas que ajudam a explicar a popularidade de Kabat-Zinn.
Ao fazer aulas com roteiro e marcar um tempo de tratamento, ele definiu condições observáveis, algo essencial para a ciência. Se alguém queria convencer cardiologistas a prestar atenção no silêncio, era importante estabelecer dados comparáveis.
O que não quer dizer que dois meses tragam a cura de todos os males. “Oito semanas não mudam a vida de ninguém. Não é uma experiência mística nem uma droga psicotrópica.
O que faz diferença é uma prática consolidada, que leva anos e disciplina para se firmar”, defende Elisa. Fato é que, com o mindfulness, a meditação pôde, enfim, ser pesquisada em detalhes.
Deixou a religião como ponto facultativo e ganhou força entre quem prefere acreditar só na ciência. E a ciência não teve dúvidas: hoje, cerca de 30 estudos sobre o assunto são publicados por semana em revistas científicas.
Capitalismo zen
No Vale do Silício, epicentro planetário da tecnologia, uma onda corporativa de mindfulness tomou corpo na última década depois que um engenheiro empolgado convenceu os chefes a abrir espaço para aulas de meditação e inteligência emocional na sede do Google, ao sul de São Francisco.
Chade-Meng Tan já era “o cara que está sempre feliz” antes da empreitada e, depois dela, ficou sendo o cara que criou o Search Inside Yourself, programa interno para funcionários do Google.
Em 2013, o SIY virou um instituto dedicado a ensinar técnicas de mindfulness a outras empresas poderosas, como o conglomerado midiático de Ariana Huffington, o Huffington Post.
Assim, a ideia se espalhou e, um pouco como ocorreu com a ioga 20 anos antes, embarcou em uma comercialização intensa, impulsionada pelo estilo de vida da Costa Oeste americana. Em 2015, segundo a consultoria IBISWorld, a indústria da atenção plena movimentou US$ 984 milhões nos EUA.
Parte da gastança vai, por exemplo, para Nova York, onde jovens com bons empregos pagam US$ 200 por mês para ter a carteirinha de uma bem decorada “academia da meditação”.
Ou para a Whole Foods, rede de supermercados orgânicos que faz sucesso entre os abastados e colocou recentemente a “Mindful Mayo” em suas prateleiras, uma maionese “muito atenta”.
Ao contrário de rótulos vazios, algumas iniciativas podem casar bem consumo e equilíbrio. Adaptar a sabedoria milenar para um contexto digital fez o aplicativo de meditação Headspace conquistar 6 milhões de usuários em 150 países.
A voz do britânico Andy Puddicombe, seu criador, é suave, capaz de acalmar – ou adormecer – os iniciantes que fecham os olhos no meio da tarde.
O treinamento de mindfulness está disponível todas as horas do dia em sessões de duração flexível, de dez minutos a uma hora, em que o usuário medita guiado por áudio.
Criar o app foi a maneira que Andy, um ex-monge de 44 anos, que hoje vive com a mulher e o filho em Venice Beach, na Califórnia, onde gosta de surfar, encontrou para atingir o grande público.
No app, um desenho simpático de um cérebro com roupa de ginástica vai ganhando músculos à medida que a disciplina se mantém. O número de conectados ao redor do planeta também aparece em tempo real na tela da plataforma (28.076 no momento em que esta frase foi escrita).
Entre uma prática e outra, animações explicam o Universo sob a ótica budista, mas sem nunca mencionar a religião. Um exemplo? “Tudo muda o tempo todo, inclusive você.”
Revista Superinteressante
Postado por Dharmadhannya