"Preto Velho aqui chegou,
ele veio pra saravá,
Preto Velho é meu Vô Chico,
Vovô Chico do meu Gongá.
Saravando e dançando,
com sua bengala na mão.
Velho Chico saravando,
dano aos filhos sua benção."
Vovô Chico é um velhinho simpático, com um sorriso largo de
criança. Ele trabalha para a caridade nos Terreiros de Umbanda com
muito carinho dispensado a seus consulentes e aos Médiuns
trabalhadores, principalmente ao Médium que traz ele na coroa.
Ele tem como ponto forte escutar os problemas de seus consulentes
com uma grandiosa paciência, podendo o consulente falar, desabafar,
reclamar, chorar por horas, sem que ele corte a sua fala, apenas
ouvindo, pitando seu cachimbo de fumo seco e folhas de alecrim. E volte
e meia dando uma baforada com sua "fumacinha mágica" sobre o Ori de
seu consulente, para lhe acalmar, tranquilizar ou apenas fazer uma
limpeza de aura ou espírito.
E após os desabafos dos consulentes, ele como um psicólogo divino
e com seu ar paternal, segura nas mãos da pessoa, como que a
abençoasse, e fala seus conselhos, suas receitinhas de livramento, sua
visão sobre os caminhos a serem tomados.
Vô Chico era escravo em uma fazenda produtora de cana de açúcar,
muito provável na região Nordeste do Brasil, e pelos dizeres do
próprio, seria lá por volta do século XVII.
Filho de negros escravizados também, Chico sempre teve os
ensinamentos das magias e benzeduras de seus antepassados, que
aprendeu com extrema dedicação desde menino.
Uma dessas benzeduras e magias que ele aprendeu, foi o trabalho de
cura através da junção da terra, água e ervas, que era feito pelo seu
tataravô em alguma região perdida no continente Africano.
Dessa junção entre elementos eram feitos esfregaços, compressas,
banhos e até chás, por intermédio dos Orixás Omulú/Obaluaiê e Nanã
Buruquê, que são muito respeitados na região africana, se fazia curar
moléstias graves, envenenamentos por picada de serpentes, feridas
diversas, além de retirar espíritos obsessores que invadiam o corpo e
a mente de pessoas.
Esses ensinamentos foram passados para o seu trisavô, e depois a
seu bisavô, que foi passado a seu avô, que veio como escravo para o
Brasil e logo foi passado a seu pai, também escravo, e por fim a ele.
Chico cresceu numa fazenda, na qual o senhor de escravos era um
ser totalmente avesso aos negros, para ele o negro realmente não era
visto como ser humano, não era um ser de Deus, não era para ser
respeitado.
Esse coronel de crueldade nos atos, ficou conhecido como o
"eliminador de escravos fujões", pois ele tinha o prazer de
colocar no tronco, açoitar e assassinar negros que teimavam em fugir,
dizendo ele ser um exemplo ruim aos seus negros que trabalhavam até
16 horas por dia, sem uma alimentação adequada, sem um lugar para
descansar, sem cuidados com a saúde, além de serem maltratados e
açoitados de uma forma tão covarde, que nem os mais fortes dos
animais aguentariam tais ações contra eles.
O coronel com seu olhar demoníaco sabia dos dons de Vô Chico, e
isso lhe incomodava demais, pois era ele, o Velho Chico, quem ia em
busca de curar as feridas abertas nos corpos dos negros, feridas essas
feitas pelas chibatas do coronel e de seus feitores tão cruéis como
era cruel o próprio coronel.
Por dezenas de vezes o coronel idealizou levar Chico ao açoite até
a morte, mas após algumas horas de castigo com o negro acorrentado ao
tronco, ele o retirava, pois o coronel, por mais prazer que tinha em
agredir e torturar os negros, sabia que a cada negro perdido era um
grande prejuízo nos trabalhos braçais árduos, e sabia também que o
negro Chico era o melhor "curandeiro" da região, e seria uma perda se
não o tivesse para sanar as doenças que espalhavam facilmente por
entre os negros, e até entre os brancos.
Mas o coronel não era de perdoar um negro fujão, e se o tal
tentasse escapar de sua fazenda ele iria atrás e voltaria com ele
acorrentado sendo arrastado pelas estradas empoeiradas, até a volta de
suas terras.
Esses escravos não tinham chances, eram arrastados, torturados,
açoitados e mortos, sem a menor piedade.
Em alguns casos, esses negros fujões eram jogados em frente as
senzalas, para ficar como exemplo a outros negros que por ventura
pensassem em fugir. Esses negros ficavam ali jogados por dias, até que
os próprios negros providenciavam o enterro, ou o jogar do corpo em um
rio de águas profundas da região.
Ao se dar conta que alguns desses negros ficavam jogados ao chão,
inertes, mas ainda com vida, Vô Chico os traziam para dentro da
senzala, e ali fazia suas benzeduras e curas com a junção dos
elementos água e terra mais ervas que ele colhia conforme caso a
caso. Após a recuperação do negro, que o velho Chico mantinha sempre
escondido com ajuda de seus irmãos de senzala, ele com uma sagacidade
incrível, iludia os feitores em prosas longas para que o negro, que
fora salvo por ele, conseguisse sair em meio a escuridão, se
embreando pelas matas para buscar sua liberdade.
Um desses negros que fora salvo pelo amável Chico, ao fugir se
perde entre o breu da noite, e com receio para entre as árvores da
mata fechada, adormece pelo exaustivo cansaço. Quando é despertado se
depara com um grande mulato montado em seu cavalo, lhe apontando uma
arma de fogo. Esse mulato era conhecido na região como "Capitão do
Mato", um jagunço que percorria a região em busca de capturar negros
fujões de todas as fazendas, e trocando-os por algum dinheiro.
Ao torturar o negro fujão, o Capitão do Mato descobre de onde ele
vem, e claro para onde deveria levá-lo.
Ao entregar o negro ao coronel fazendeiro, receber sua recompensa
e partir, o mulato Capitão do Mato deixa o coronel um tanto atônito,
pois ele acreditava que aquele negro estaria já sem vida.
Reconhecendo que o negro fora curado pelo velho Chico, e que não
adiantaria chamar sua atenção ou mesmo levá-lo ao tronco por causa
desse fato, pois ele continuaria fazendo suas curas mesmo as
escondidas, e contudo ajudando os negros a fugir da fazenda, o coronel
também não podendo ceifar a vida do "curandeiro", pois ele ainda
precisaria de suas benzeduras para uma providencial cura aos negros
que não se arriscavam em uma fuga, decidiu então criar um novo modo de
tortura, após a já conhecida tortura feita ao tronco.
O coronel manda fazer um grande poço cavado na terra, de um
formato cilíndrico, profundo, que não daria chances de fuga de
nenhum negro que ora fosse jogado nesse poço. E ainda para que essa
tortura fosse muito mais covarde e maligna, o cruel coronel manda
encher as profundezas desse fundo poço com dezenas e dezenas de
serpentes venenosas, para que assim, aquele que fosse atirado ao covil
não teria a mínima chance de sair com vida.
Os negros fujões, além de estarem em constante guerra com
feitores, jagunços e capitães do mato, e claro com os coronéis
fazendeiros, estimulavam a coragem de outros negros a fazerem o mesmo,
por esse motivo, esses negros que tentavam constantemente uma fuga
eram visto como problemas para o andamento das fazendas, portanto era
sempre melhor eliminá-los.
Quando se espalhou pelas redondezas o modo feito que o coronel da
grandiosa fazenda de cana de açúcar, tinha para eliminar esses negros,
muitos coronéis enviavam negros fujões, normalmente capturados pelos
capitães do mato, ao que ficou conhecido como "Covil de Serpentes",
para serem eliminados, assim sendo não sujariam suas mãos nem de seus
feitores com o sangue dos negros.
E assim o "covil das serpentes" começou a ser utilizado, não só
pelo coronel idealizador, mas por uma grande maioria dos coronéis da
região, para ceifar com a vida daqueles negros desejosos de liberdade
e que esses coronéis achavam uma ofensa e uma falta de respeito
grandiosa.
Conforme foram acontecendo as primeiras mortes, o nosso velho
Chico fica desesperado por não poder conceder a ajuda habitual aos
negros. Tenta argumentar ao coronel, que infelizmente não lhe escuta.
Por algumas vezes, Chico tenta salvar os negros que eram jogados
no "covil das serpentes", em alguns poucos casos ele ainda teve êxito
em seus feitos. Retirava de uma forma sofredora o negro quase morto de
dentro do covil, e embrenhava com ele pelas matas em torno da fazenda,
fazia então suas compressas e banhos, muitas benzeduras e súplicas a
Pai Obaluaiê, Omulú e Nanã Buruquê, para que com seu dom e sabedoria
pudesse fazer da água, terra e ervas o remédio para sanar o
envenenamento das serpentes, além da cura de chagas e quebraduras por
todo o corpo dos negros.
Mas era um trabalho árduo, pois além da dificuldade de retirar os
negros do covil, de fugir com esse negro sem que feitores percebessem,
de conseguir a erva certa para cada caso, do tempo hábil para tudo
isso sem que os negros perdessem totalmente as forças e se entregassem
aos braços da morte, Chico ainda tinha que tentar enganar o coronel
com os corpos inertes de outros negros, já desencarnados, colocando-os
no lugar daquele que ainda teria uma pequena esperança de sobreviver.
Ele tentava incansavelmente, mas o resultado final não estava o
agradando, perdia muitas vidas de seus irmãos, que por mais esforço que
fizesse não tinha como salvá-los.
Noites e noites a fio o velho Chico ficava em oração clamando pela
vida de seus irmãos. Chorava a cada vez que um deles eram torturados,
açoitados, atirados ao "covil das serpentes", e mortos sem a menor
chance de serem salvos.
Por entre o clarão da Lua brilhante, que se resplandecia nas águas
límpidas do rio que corria seu rumo vindo de uma linda cachoeira,
Chico procurava um modo de poder ajudar os negros que capturados
tinham suas sentenças de morte autorizada pelos seus coronéis.
Sentado a margem do rio, por entre o balanço das águas e o brilho
da Lua, ele pega um punhado de terra, a que ele chamava a "terra
sagrada de Senhor Omulú", atira esse punhado de terra nas águas do
rio, e clama a Zambi que o ajudasse.
Ao ser despejado esse punhado de terra nas águas e sobre a luz
brilhante da Lua, Chico tem uma visão, uma visão formada nas águas
vindas da belíssima cachoeira.
Nessa visão ele vê uma pomba branca, serpentes, pessoas em
desespero, chorando, se lamentando, e clamando.
A pomba ia se transformando em uma menina branca, que machucada,
suja e com muitas feridas pelo corpo, chorando, lhe estendia as mãos,
implorando por ajuda.
Vovô Chico, com sua experiência de muitos e muitos anos dentro da
espiritualidade, percebeu que aquela visão era uma resposta a suas
orações, e após refletir por algum tempo voltou a fintar as águas que
corriam sem destino, dentro dele uma luz de esperança se acendeu,
sabia que tinha sido ouvido por Zambi, Oxalá e todos os Orixás que ele
respeitava extremamente. Mas dentro dele ainda tinha algumas dúvidas.
Como poderia fazer para ajudar seus irmãos?
O que aquela visão queria lhe mostrar?
Como agir e em que tempo agir?
E no meio dessas dúvidas, ele fatigado adormece ali mesmo as
margens do rio, e sobre a terra divina de seu Pai Omulú.
Ao adormecer, um sonho invade seu ser, e nesse sonho ele ouve uma voz
vinda juntamente com o som dos ventos, que zuniam como o som de uma
música distante.
Nessa voz ele apenas guardou as frases:
"Nunca desista de salvar um irmão."
"Jamais deixe uma vida ser perdida, seja essa vida de um ser negro ou
branco."
E "Todas as vidas estão ligadas. O salvar a vida de um filho branco
fará retirar dezenas de vidas de irmãos negros da sentença de morte
por covardia. Nunca julgue um inocente pelo verdadeiro culpado. Suas
respostas podem estar nesse ato de amor e caridade."
O velho Chico desperta sobressaltado, sua respiração ofegante vai
se acalmando com a lembrança das frases ouvidas em seu sonho. Num
ímpeto ele se levanta e sai rapidamente em direção ao "covil das
serpentes", como se estivesse prevendo algo de ruim que poderia
acontecer.
Quando estava uns 50 metros do covil, observa a sinhá, esposa do
coronel, um pouco mais distante, colhendo flores com sua Mucama, e ao
lado delas a pequena sinhazinha filha do senhor dos escravos, uma
linda e doce menina de 3 anos de idade.
A menina ao acompanhar o voo de uma borboleta, sai em disparada,
sem dar chances a sinhá ou a mucama impedirem ela de se afastar indo
de encontro ao covil.
Em segundos, entre gritos de desespero da sinhá e da Mucama, a
criança desaparece para as profundezas do poço assassino.
Num ato impensado a mãe da sinhazinha corre e tenta se atirar ao
poço para salvar sua pequena menina, que é contida pela Mucama, que se
agarra a seu corpo num ato de bravura.
O velho Chico ao ver a cena, corre até a borda do poço, observa
dentro sem ver nada, pois a escuridão da profundidade não permitia. E
nesse momento ele decide que arriscaria a própria vida, da mesma
maneira que arriscara tantas outras vezes ao retirar os negros do
mesmo covil.
Chamando outros negros, e com ajuda de cipós, ele desce até o
fundo do covil, clamando sempre pela proteção dos Orixás, para que seu
corpo seja abençoado e imantado e não seja entregue as fatais picadas
venenosas das serpentes assassinas.
Ele chega ao fundo, observa o corpo inerte da criança rodeado
pelas serpentes venenosas. Vai até ela e a pega nos braços, e como de
costume as serpentes se armam em bote de ataque, mas como uma força
suprema elas não fazem nada. E assim o Velho Chico agradecia aos
Orixás que tomavam conta de seu corpo.
Ele é inçado com a ajuda dos negros que sempre se esforçavam para
salvar vidas junto de Vovô Chico. E ao chegar a borda do covil, se
depara com o coronel ajoelhado ao chão, com olhos lacrimejados, em
desespero pela vida de sua única filha.
A sinhazinha estava desacordada, muito ferida e envenenada pelas
picadas das serpentes.
Chico corre com ela aos braços levando-a para a senzala, que
ficara bem mais próximo que a "casa grande", e não tendo tempo a
perder, ali ela seria tratada.
Foram feitas dezenas de benzeduras, mais de uma centena de banhos,
compressas, imantações, noites e noites sem dormir, acalentando o
estado febril da menina.
A Sinhá, mãe da menina, lutava incansavelmente contra a decisão do
coronel de remover a menina dali, para ser levada ao encontro de um
doutor médico no arraial. Ela sentia em seu coração de mãe que, se
Deus permitisse a sua filha ter mais uma chance de sobreviver, essa
chance teria que ser abraçada, com ela dentro da senzala, com o
tratamento, que todos sabiam da eficácia, do nosso querido e
experiente Vovô Chico.
Foram 21 dias de choros, desesperos, rezas, esperanças e de
dedicação da sinhá e do velho negro Chico.
Ao completar 21 dias sem abrir os olhos, a menina desperta olhando
para a sua mãe e Vô Chico, e após alguns segundos para reconhecimento
de local e pessoas, ela num salto se levanta e abraça a mãe com um
sorriso largo, carinhoso, infantil e saudável
A fazenda toda festejou. Negros e brancos, cada um de sua maneira
e sua fé, agradeciam a Deus pela recuperação milagrosa da menina.
O coronel chorava copiosamente abraçando sua pequena menina, a
sinhá beija as mãos sagradas do velho negro que salvara a sua joia
preciosa. Tudo era alegria naquele momento de milagre.
O coronel, em tom de voz sereno, baixo, amigável, vai até Chico e
sem que o negro esperasse, o abraça, agradecendo e exaltando o
respeito que ele, o coronel, passou a ter pelas crenças, benzeduras e
os Orixás do povo negro, inclusive um respeito muito mais intenso por
Chico, seu "Negro Curandeiro".
O coronel ofereceu a Chico algumas terras, uma choupana, uma vida
melhor como forma de agradecimento por ter salvo a vida de sua filha.
Mas Chico, humildemente, com sua voz serena, seu rosto fatigado,
disse ao coronel:
"Agradeço tudo que me ofereceu coronel, mas perdoe o meu ato de
abuso por minha parte. Eu desejaria apenas uma coisa."
E sem deixar o coronel perguntar o que seria, ele continuou:
"Peço encarecidamente em nome de Deus e de nossos amados Orixás,
em nome de todos os negros escravizados dessa terra e em nome de todas
as crianças inocentes, assim como sua pequena filha, que extermine as
torturas e matança de meus irmãos negros, que peça para tapar o poço
chamado de "covil das serpentes", e que ele seja lembrado apenas para
mostrar que brancos e negros são seres humanos, e que brancos e negros
igualmente sentem dores, tristezas, medo, assim como igualmente podem
morrer."
O coronel ao ouvir essas palavras, olhou a sua pequena menina
sorridente, e de imediato mandou tapar o tão temido "covil das
serpentes"
Vovô Chico viveu nessa fazenda até seu desencarne com mais de 90
anos. E até seu último dia de encarnado, ele fazia suas benzeduras,
banhos, imantações e tudo mais que podia para auxiliar nas dores
físicas e da alma de quem necessitasse. Sendo negros ou brancos, não
importava, pois para ele, e agora para o coronel, todos eram seres
humanos e filhos de Deus.
Salve nosso amado Vovô Chico!
Adorei as Almas!