sábado, 7 de janeiro de 2023

História de um preto-velho - mais um conto de Fernanda Mesquita

 

História de um preto-velho - mais um conto de Fernanda Mesquita




Era um dia frio, como tantos outros na Serra de Petrópolis...

Lá iam os negros escravos cumprir com sua nova missão: ajudar a construção de uma passagem de linha férrea que ligasse o Rio de Janeiro à Serra da Estrela e assim, sua Majestade e toda a corte imperial poderiam enfim ter mais conforto para chegar às casas de veraneio que cresciam cada vez mais imponentes na Cidade Imperial.

-Socorro! - Gritava um escravo preso em um buraco que o capataz havia feito para que os negros fossem postos lá como forma de castigo e assim aprendessem que não havia outra alternativa a não ser trabalhar.

Só que este escravo já estava preso há dias, tinha fome, sede e as mãos sangravam devido ao trabalho excessivo a que fora exposto naqueles dias frios de Inverno.

Ninguém ouvia o negro escravo, pois os buracos eram feitos aos montes e distante da via férrea para que não houvesse contato com os outros escravos. Depois que o negro morria, jogavam terra em cima do buraco e, com o decorrer do tempo surgiu o “Cemitério dos Escravos”, como ficou conhecido mais tarde.

Mais de cem anos se passam...

-Estou cansada!Podemos parar aqui um pouco pra descansar? - Diz Ana para os outros dois amigos.

-Acho que sim! - Diz Alex - Creio até ser um ótimo lugar para acamparmos por hoje. Já vai escurecer, estamos caminhando desde o começo da Serra sem parar. Vamos ficar aqui hoje e continuar pela manhã bem cedo. Tudo bem pra você Raul?

-Por mim... - Resmungou Raul que não gostou nem um pouco da idéia de refazer a pé, a 845 metros de altitude o “caminho do ouro”, como ficou conhecido na época de D. Pedro II.

Os jovens armaram suas barracas, buscaram lenha e sentiam a brisa fria que já chegava, quando apareceu caminhando ao longe um senhor, que ao chegar perto dos meninos, perguntou:

-Posso me sentar um pouco em frente à fogueira que vocês fizeram pra me esquentar um pouco? Estou cansado...

O velho foi se sentando em um toco de árvore perto da fogueira e os jovens, sem entender de onde veio aquele velho, consentiram e fitaram-no por alguns minutos.

Antes que eles dissessem alguma coisa o Velho começou a falar:

-Lugar sofrido foi esse aqui, para satisfazê o bem estar dos brancos, muitos negros sofreram e morreram aqui, sabiam? Pés e mãos sangravam, mas o trabaio não podia parar, nem criança escapava do trabaio pesado . Tinham que carregar pedras e, muitas pedras foram colocadas em cima das “cova” onde jaziam os corpos dos escravos. As crianças não tinham trapos pra vestir e os mais véios muitas das veiz tinha que deitar sobre a criança pra mó dela não morre di frio... Fizeram uma Zenzala pra deixá os escravos por aqui mesmo,então sempre que dava,nóis pegava uns mato que desse pra cubri as criança que muitas das veiz morria di frio... Quando o capataz queria castiga nóis, tacava fogo nos mato que servia pra cubri as criança e deixava todo mundo trancafiado dentro da senzala, aspirando aquela fumaça toda, e muitas das veiz os pequeno morria porque num agüentava, né fio, a fumaçada que durava muitas horas... Triste di si vê, mas nóis num pudia grita nem fala nada, pra mó di num se jogado nas cova funda mato adentro e fica lá agonizando até a morte... Vida de nós foi sofrida, fios!

Com os olhos arregalados, diante do velho que ali falava, Raul disse:

-Mas, mas... você é... quer dizer era... um negro escravo? Você... - e, antes que ele concluísse, o velho com um meio sorriso falou:

-Sim fio! Sou um Preto-Velho escravo, que aqui muito sofreu e hoje venho através da Umbanda ajudar a todos que de mim precisam, e muitos outros igual a mim estão hoje ajudando num terreiro a praticá o amor, a caridade a todos que di nós precise viu, fio?

E, com a manhã chegando, o velho se levantou e foi caminhando pra dentro das matas.

Ana, completamente atordoada com tudo o que ouvira durante toda aquela noite, não teve tempo de temer aquele velhinho que mostrava nos olhos toda uma saga de vida sofrida e antes que ele sumisse na mata fria e úmida, ela gritou:

-Ei! Qual é o nome do Senhor?

-E o velho, já bem longe, gritou em voz bem firme:

-Pai Miguel é o meu nome.

Raul, não acreditando naquilo tudo, correu atrás do velhinho, achando tudo ter se tratado de uma brincadeira de muito mau gosto. Chegando no ponto que o velho sumiu, Raul topou em uma pedra e, olhando pra baixo viu escrito na pedra: ”P. Miguel.”

Alguns anos mais se passaram, quando os jovens, visitando um terreiro de Umbanda em uma festa em homenagem aos Pretos-Velhos, mais uma vez tiveram uma grande surpresa:

Lá na frente, um Preto-Velho comandava a gira e, com os olhos marejados de alegria dessa vez, disse:

-Que todos os fios que vieram aqui hoje consigam recebê as graças de Nosso Pai Maior, e que os véio que aqui estarão hoje, ajudem a todos suncês no caminho da evolução espiritual!

E o Nego Velho, olhando para os três que ali se encontravam no meio da multidão, que ansiava para entrar, ergueu os braços e falou:

-Venham cá meus fios, venham dá um abraço nesse Nego Véio, que esperava por suncês há muito tempo!

-E os três numa só vozsussuraram : ”Pai Miguel??!”

E foi assim que começou o caminho dos três jovens na prática da caridade naquele terreiro de Umbanda junto de Pai Miguel das Almas....