sexta-feira, 20 de junho de 2014

Histórias de Preto Velho



Cenário: Reunião de trabalho mediúnico num centro kardecista (Espírita).

A reunião, na sua fase teórica, desenrola-se sob a explanação do Evangelho Segundo o Espiritismo. Os membros da seleta assistência ouvem a lição atentamente.
Sobre a mesa, a tradicional toalha branca, a água a ser fluidificada e o Evangelho Segundo o Espiritismo aberto na lição nona do capítulo 10.

“O Argueiro e a trave no olho”.

Por que vês tu o argueiro no olho do teu irmão, e não vês a trave que está no teu olho?

O Dr. Anestor, era o dirigente dos trabalhos práticos, tecia as últimas considerações a respeito da lição da noite. O ambiente estava impregnado das fortes impressões deixadas pelas palavras de Jesus Cristo através do Evangelho.
Feita a prece de abertura por um dos presentes iniciam-se as manifestações.
Uma das médiuns fica sob a influência de um espírito estranho. Tomada de uma sacudidela incontrolável, suspirou profundamente e, de forma instantânea permitiu a incorporação de um espírito.
O dirigente, como sempre fez nos seus vinte e tantos anos de prática espírita, deu-lhe as boas vindas, em nome de Jesus.
- Seja bem-vindo, meu irmão, nesta casa de caridade, disse-lhe Dr. Anestor.

O espírito respondeu:

- Zi-boa noite, zi-Fio. Suncê me dá licença prá eu me aproximá de seus trabalhos, Fio?.
- Claro, meu companheiro, nosso centro espírita está aberto a todos os que desejam progredir, respondeu o diretor da mesa.
Todos os presentes perceberam que a entidade comunicante era um Preto Velho, espírito que habitualmente comunica-se nos terreiros de Umbanda. E a entidade continuou:

- Vós mecê tem aí uma cachacinha prá eu bebê, Zi-Fio?.

- Não, não temos, disse-lhe Dr. Anestor. Você precisa se libertar destes costumes que traz dos terreiros, que é o de ingerir bebidas alcoólicas. O Espírito precisa evoluir, completou o dirigente.

- Vós mecê num tem aí um pito? Tô com vontade de pitá um cigarrinho, Zi-fio.

- Ora, meu irmão, você deve deixar o mais breve possível este hábito adquirido nas práticas de terreiro, se é que queres progredir. Que benefícios traria isso a você?
O preto-velho respondeu:

- Zi preto véio gostou muito de suas falas, mas suncê e mais alguns dos médiuns não faz uso do cigarro, Zi-fio? Suncê mesmo fuma e toma suas bebidinhas nos fins de sumana? Vós mecê pode me explicá a diferença que tem o seu Espírito que beberica `whisky' lá fora, de mim que quero beber aqui dentro? Ou explicá prá mim, a diferença do cigarrinho que suncê fuma na rua, daquele que eu quero pitar aqui dentro, Zi-fio?.

O Dr. Anestor envergonhado não pôde explicar, mas resolveu arriscar.

- Ora, meu amigo, nós estamos num templo espírita e é preciso respeitar os trabalhos de Jesus.

O preto-velho retrucou, mas agora já não fala mais como um Preto Velho e transmite a seguinte mensagem:

- Caro dirigente, na escola espiritual da qual faço parte, temos aprendido que o verdadeiro templo não se constitui nas quatro paredes a que chamais centro espírita. Para nós, estudiosos da alma, o templo da verdade é o do Espírito. E é ele que está sendo profanado com o uso do álcool e do fumo, como vêm procedendo os senhores. Como sabeis vosso exemplo na sociedade, perante os estranhos e frente a seus familiares, não tem sido dos melhores. O hábito, mesmo social, de beber e fumar devem ser combatidos por todos os que trabalham na Terra em nome do Cristo. A lição do próprio comportamento é fundamental na vida de quem quer ensinar. E no meu caso o uso do tabaco incinerado não visa o vicio e sim, as descargas na aura dos que me procuram em busca de ajuda nos terreiros de Umbanda, mas esse procedimento tem fundamentos que o digno doutor desconhece por não compreender na totalidade as leis de causa e efeito do mundo astral conhecidas como magia, palavra totalmente expurgada de vosso vocabulário por não conhecer o seu verdadeiro significado, fato esse devido ao vosso amplo orgulho. Refiro-me ao vosso orgulho porque o tratamento a mim dispensado como Preto Velho, deixou claro o vosso despreparo transmitido no tom de sua voz quando a mim se dirigiu, já que julgou-me inferior devido a classe social de uma de minhas existências passadas, desconhecendo que este negro escravo no passado também já foi juiz, também já foi doutor. Se aqui compareço como Preto Velho, tenho com essa conduta o objetivo alerta-los de que é na amizade, na simplicidade e na humildade que se entra no Céu.

Houve grande silêncio diante de tal argumentação segura. Pouco depois, o Preto Velho continuou:

- Perdoe-me pela forma em que os visitei e pelo tempo que lhes tomei de trabalho, vou-me embora, mas antes, tenho a obrigação de alertá-los sobre o tema citado no inicio de vossa reunião, já que o ensinamento que o ilustre doutor ministrou no inicio aos presentes, ao que parece serve para uns e não para outros, o que nos retrata a idéia de uma farsa,  dando a impressão que nosso poderoso Pai tem dois pesos e duas medidas o que todos sabemos não ser a verdade.
Vou-me agora como Preto Velho e deixo aqui um pouco da minha paz que vem de Deus. E recebam todos vocês que militam nesta respeitável Seara os meus sinceros votos de progresso na espiritualidade.


Deu em seguida uma sacudida na médium, como nas manifestações de Umbanda, e afastou-se para o mundo invisível.
O Dr. Anestor ainda quis perguntar-lhe o porquê de falar daquela forma, mas não houve resposta.

No ar ficou um profundo silêncio, uma fina sensação de paz e uma importante lição.

Lição para todos meditarem.