Manuel se sente no fundo do poço, e diz para si mesmo: “aonde eu vim amarrar meu burro? Procurar ajuda num terreiro de macumba já é o fim, mas vir assistir a marmanjos se arrastando de joelhos, fazendo cara de criança, brincando e comendo doce, aí já é ridículo.
O que estou fazendo aqui? Deixe-me ir embora, rápido!”.
Ao se levantar para ir embora, alguém o segura pelo braço e diz: “Entre.
É a sua vez. Aquela criança vos chama”.
Manuel observa o médium incorporado com os braços levantados, chamando-o.
“Ai, ai. E agora? Bom, vamos ver no que dá!”. Entrou.
A criança lhe sorri. Manuel sério.
- Tio, me dá a sua mão.
- Olha, eu só quero um passe. Tenho de ir. Ainda tenho compromisso para hoje – diz Manuel.
- Sim, tio. Me dá as duas mãos e fecha os olhos.
Manuel sente uma leve vibração, convidando-o ao relaxamento, respira fundo, enchendo-se de paz. Manuel pensa: “nossa, há quanto tempo não tenho um momento de paz”.
O menino fala enquanto dá um passe espiritual, puxando do reino dos encantados essências para impregnar em Manuel:
- Tio, lembra quando você era criança e brincava na rua, lembra tio?
- Sim, uma bola foi meu único brinquedo, o único que tive em toda a minha curta infância. E eu adorava brincar de bola. Qualquer vão entre duas coisas era um gol.
- Tio, vem brincar comigo.
- Não, eu não posso, tenho mil problemas a resolver.
- Tá bom, tio. Deixa-me acabar o passe. Tio, à noite, quando você ia dormir, você rezava?
- Sim, mas não me lembro como era, faz muito tempo.
- Tio, acabou. Vai com DEUS, tio!
Manuel volta de seu pequeno transe, leve, como se tivesse deixado lá uma construção que jazia em suas costas. Mas, volta a pensar: “Não adianta. Foi gostoso, mas não resolveu meus problemas. Eles vão bater a minha porta logo, logo”.
Na volta pra casa, Manuel vai que é só recordações, se lembra tanto das alegrias quanto das tristezas, da dureza da infância pobre e das alegrias feitas de quase nada.
De repente, na calçada, quica a sua frente uma bola de futebol daquelas modernas. Manuel, contagiado pela nostalgia, não pensa duas vezes e mete uma bica na bola, que subiu as alturas e foi dar com a vidraça de uma casa velha abandonada.
Com o estardalhaço da vidraça ruindo, as casas vizinhas acenderam as luzes e
Manuel saiu correndo e rindo tal qual uma criança que fez uma traquinagem.
Correu até sua humilde casa a adentrou a porta aos soluços de cansaço.
Deitou-se na cama, fechou os olhos e se lembrou da oração que fazia quando pequeno.
Manuel se viu criança, colocou as duas mãos no peito e adormeceu com uma prece no coração. Sonhou lindos sonhos de uma vida passada, onde havia a alegria que ainda está por vir.
Acordou com os mesmos problemas, mas renovado.
Na outra semana, estava lá no terreiro novamente. Desta vez era gira de caboclos e perguntou ao entrar:
“QUANDO VAI TER OUTRA GIRA DE CRIANÇA?”.
IBEJI IBEJADA!